ACÓRDÃO N.º 674/2021
PROCESSO N.º 794-B/2020
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
PUMANGOL, LDA, melhor identificada nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que indeferiu liminarmente a Reclamação interposta sobre o indeferimento do recurso, impetrada pela ora Recorrente.
A PUMANGOL, LDA, ora Recorrente, inconformada com a decisão prolactada no Processo n.º 220/13-B4, da 3.ª Secção da Sala de Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, recorreu, tendo o requerimento do recurso sido interposto um dia após o termo do prazo.
O Juiz da causa admitiu o requerimento de recurso, vide fls. 132 dos autos. Entretanto, neste ínterim, o então Juiz relator foi jubilado, tendo sido interinamente substituído pelo Juiz de turno. Este, ao elaborar o saneamento do processo, revogou o requerimento de admissão por extemporaneidade, na sequência da autuação e apreciação de uma reclamação apresentada por Nilton da Costa Pedro Gomes, trabalhador da Pumangol, opondo-se ao despacho de admissão do recurso. Do indeferimento do recurso veio a ora Recorrente aduzir Reclamação ao Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que a não conheceu.
O despacho de indeferimento do Juiz Presidente do Tribunal Supremo sobre a reclamação assenta no facto de, embora o indeferimento de requerimento de interposição de recurso com fundamento na extemporaneidade seja matéria integrante dos pressupostos da reclamação, prevista no artigo 688.º do Código de Processo Civil (CPC), a Reclamante, ao levantar outras questões que não são susceptíveis de impugnação por essa via, determinou o não conhecimento da Reclamação, já que estas matérias não cabiam no âmbito da competência do Juiz Conselheiro Presidente, estabelecido no artigo 688.º do CPC.
Admitido o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, e a Recorrente convidada a apresentar as suas alegações, fê-lo, nos termos seguintes:
O Processo foi à vista do Digníssimo Magistrado do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos e com os fundamentos da alínea a) e do § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
Tem legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade quem tem interesse directo em demandar ou responder à demanda.
A Recorrente é parte vencida no processo que correu os seus termos no Tribunal Supremo, porquanto a sua reclamação não foi conhecida por Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, pelo que tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
Constitui objecto do presente recurso a apreciação da constitucionalidade do Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo que indefere a reclamação interposta relativamente ao Despacho exarado no âmbito do Processo n.º 190/17-B4, da 3.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda.
V. APRECIANDO
A) Questão Prévia
O presente recurso foi interposto contra o despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que recaiu sobre a reclamação apresentada pela Recorrente na sequência de um despacho de indeferimento do recurso ordinário, com fundamento na sua extemporaneidade.
No entanto, embora o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, tenha por objecto sentenças dos demais tribunais, perfilhamos o determinado no Acórdão n.º 405/2016, que refere “o caso em apreço configura um despacho que, nos termos do estabelecido no n.º 2 do artigo 689.º do CPC, põe fim ao processo de reclamação, estando, nessa medida, esgotada a cadeia recursória na jurisdição comum.”.
Nesta esteira, é legítima a apreciação do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, que foi admitido por Despacho do Juiz Conselheiro Presidente, a fls. 55 dos autos.
Vejamos,
B) Questões em apreciação
Temos por ajuizado que a PUMANGOL, LDA, ora Recorrente, vem interpor recurso do Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que dá por não conhecida a Reclamação interposta contra o despacho de indeferimento do recurso, por extemporaneidade, proferido no âmbito do Processo n.º 190/17-B4, que correu termos na 3.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, que o julgou extemporâneo.
Inconformada com o despacho de indeferimento (a fls. 40, 41 e 42) proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo sobre a reclamação, vem recorrer ao Tribunal Constitucional, por entender que o referido despacho ofende os princípios da legalidade, do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme consagrados na CRA.
O pedido de declaração de inconstitucionalidade do Despacho em crise, assenta sobre as conclusões das alegações que, por força do disposto no artigo 690.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao Processo Constitucional ex.vi do artigo 2.º da LPC, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.
a) Sobre a violação do princípio da legalidade
Dita o n.º 2 do artigo 6.º da CRA, que “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar a lei”.
No caso em apreço, a Recorrente argumenta o seu recurso e as inconstitucionalidades suscitadas com a alegação de que o Cartório Judicial da 1.ª instância andou mal por não ter notificado a Recorrente, na pessoa do seu mandatário, mas a um estagiário sem procuração nem substabelecimento nos autos, violando assim as disposições do n.º 1 do artigo 253.º e do artigo 254.º, ambos do CPC.
Igualmente, refere que o Juiz de turno, ao revogar o despacho que julgou procedente e admitiu o recurso interposto pela Recorrente, e indeferi-lo por extemporaneidade, violou o n.º 1 do artigo 666.º do CPC, na medida em que, uma vez admitido o recurso, não era mais sua competência, revogar ou modificar substancialmente o conteúdo do aresto.
Ademais, ainda alega que o juiz, ao ter autuado a reclamação impetrada por Nilton da Costa Pedro Gomes, em que invoca a extemporaneidade do recurso, sem ter permitido nem amparado o amplo direito de defesa, violou o consagrado no n.º 1 do artigo 3.º e no artigo 517.º do CPC.
Em suma, a Recorrente alega que o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, ao recusar-se a conhecer da reclamação, violou o princípio da legalidade consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA.
Ancorado nas alegações acima aludidas, cabe referir que, no essencial, ao Tribunal Constitucional nos termos do artigo 180.º da CRA “…compete, em geral, administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”, pelo que, atribuir ao Tribunal Constitucional a função de dirimir erros de direito cometidos na 1ª instância da jurisdição comum, ou seja transformá-lo num tribunal de 3.ª instância para reapreciar a matéria de prova e realizar novo julgamento sobre matérias de facto, seria o mesmo que colocá-lo no seu topo, o que, obviamente, não é admissível.
Perfilhamos, assim, do que assevera Carlos Blanco de Morais, nomeadamente, “esta não é uma instância de mérito, ou um Tribunal de super-revisão, não lhe compete a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo…” (In Justiça Constitucional, Tomo II – O Direito do Contencioso Constitucional, 2011, Pág. 619).
Igualmente, infere a Recorrente que o Tribunal Supremo, ao recusar-se a conhecer da reclamação com a suposição de que não se observou os requisitos cumulativos do artigo 688.º do CPC, quando apenas um acto dependia da Recorrente, sendo os outros de disposição do juiz da causa, violou o artigo 158.º do CPC, que consagra o dever de fundamentação, comprometendo o princípio da legalidade (n.º 2 do artigo 6.º da CRA).
Sobre a questão supra alegada, vale referir que a dimensão garantística do acesso ao direito consagrado na CRA e na legislação infraconstitucional, aqui retratada no artigo 158.º do CPC, que consagra “1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.”, devem ser dissecadas numa falta de fundamentação absoluta, porquanto, a fundamentação das decisões proferidas pelo juiz da causa, visam unicamente o afastamento do arbítrio jurisdicional, sugerindo ao juiz a necessidade de apresentar a sua motivação aos pronunciamentos decisórios.
A decisão do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo de não conhecimento da reclamação da Recorrente, encontra-se fundamentada legalmente, como se pode visualizar no Despacho “…, parece-nos aqui, que a Reclamante incorre numa pequena confusão, uma vez que, em atenção às questões levantadas, como a nulidade da notificação, o poder jurisdicional do juiz e a revogação do despacho que julgou deserto o recurso, por falta de pagamento de multa, não sejam susceptíveis por via de reclamação. Logo, facilmente inferimos que, o caso sub judice, não cai no âmbito da competência do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, por não ser aferida para efeitos do artigo 688.º do C.P.C.”, pelo que, é entendimento deste Tribunal que não é atendível a alegação da violação do princípio da legalidade, por falta de fundamentação da decisão.
E mesmo que se considerasse como deficiente a argumentação do Juiz, com pertinência, ANTUNES VARELA, afirma que “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito” in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985, pág. 687.
b) Sobre a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva
Alega a Recorrente que o Tribunal Supremo, ao recusar-se a conhecer da reclamação, violou o princípio do cumprimento da sua atribuição da função jurisdicional, denegando justiça e os direitos e interesses legalmente protegidos da Recorrente, enquanto parte processual, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 174.º e o artigo 175.º, ambos da CRA.
Outrossim, alega a Recorrente que o tribunal a quo não deveria ter julgado o recurso extemporâneo, por falta de pagamento de multa e que deveria, atendendo ao princípio da oportunidade, conceder um prazo a, ora, Recorrente para que regularizasse o pagamento, já que ao proceder assim, pôs em causa o princípio de que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos (n.º 1 do artigo 29.º da CRA), bem como, a possibilidade da liquidação da multa a final do processo, conforme disposições combinadas dos artigos 142.º e 143.º, ambas do Código das Custas Judiciais.
Ora, no caso sub judice, a Recorrente foi julgada e condenada pela 3.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, cuja notificação foi apresentada a um advogado estagiário do escritório, sem mandato para o efeito. Não obstante a notificação irregular, mas como inconformado da decisão recorreu da mesma, tendo o requerimento do recurso sido interposto um dia após o termo do prazo. Porém, por não ter pago a referida multa tempestivamente, foi o recurso considerado extemporâneo.
Como refere a ora Recorrente, o Tribunal a quo só declarou extemporâneo o recurso por não ter sido dado a garantia legal do pagamento da multa, por o acto de apresentação do recurso ter sido praticado no primeiro dia útil findo o prazo legal.
É facto, que o n.º 5 do artigo 145.º do CPC refere-se ao pagamento imediato de uma multa quando o acto for praticado no primeiro dia útil ao termo do prazo, pressupondo que, não o fazendo, fica precludido o direito de o fazer.
No entanto, também é verdade que este dispositivo legal deve ser interpretado em conjugação com o Código das Custas Judiciais nomeadamente, o artigo 142.º, que condiciona o pagamento da multa a uma notificação e o artigo 116.º que, apenas, impede que o recurso prossiga, não cominando com a deserção.
Não deixa de ser linear referir, que o controlo da constitucionalidade das leis pressupõe a supremacia da Constituição pelo que, as leis infraconstitucionais não podem pôr em causa princípios e normas constitucionais, nomeadamente o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva.
Dispõe o n.º 1 do artigo 29.º da CRA, designadamente, “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios financeiros”.
Portanto, o que importa à Recorrente é a protecção do direito ao recurso ou seja, a reanálise do seu processo por uma segunda instância. Ao ver coarctada essa possibilidade, apenas por um formalismo processual (não pagamento da multa) vê violado os seus direitos fundamentais de acesso à justiça e a tutela jurisdicional efectiva.
Como assevera o Acórdão n.º 393/2016, que aqui perfilhamos “… é entendimento do Tribunal Constitucional que a falta ou a mora no pagamento das custas, vistos os princípios e valores que emanam da Constituição, não pode ser sancionada com a deserção e o consequente sacrifício do direito fundamental ao recurso e a tutela jurisdicional efectiva.” … a deserção configura mesmo negação do acesso à justiça, pois o fundo da causa não chegou a ser analisado pelos tribunais por virtude de um formalismo processual, ou seja, por impedimentos relativos ao ritual do processo.”.
c) Sobre a violação do princípio do julgamento justo e conforme
A Recorrente alega que quando os tribunais se denegam a fazer justiça ou se negam a conhecer do mérito de um litígio que lhes tenha sido solicitado com fundamento na extemporaneidade, por falta de pagamento de multa, violam o princípio do julgamento justo e conforme.
O artigo 72.º da CRA consagra que “a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo e conforme a lei”. Isto é, o direito a julgamento justo, como asseveram, Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes “é um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente”.
No caso sub judice, o Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo não conheceu da reclamação apresentada, exarando despacho nos termos transcritos:
“Embora o indeferimento do requerimento de interposição de recurso, com fundamento na extemporaneidade, de que refere a Reclamante, seja matéria integrante dos prossupostos da Reclamação para o Presidente do Tribunal ad quem, prevista no artigo 688.º do C.P.C., parece-nos aqui, que a Reclamante incorre numa pequena confusão, uma vez que, em atenção às questões levantadas, como a nulidade da notificação, o poder jurisdicional do juiz e a revogação do despacho que julgou deserto o recurso, por falta de pagamento de multa, não sejam susceptíveis por via de reclamação. Logo, facilmente inferimos que, o caso sub judice, não cai no âmbito da competência do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, por não ser aferida para efeitos do artigo 688.º do C.P.C. Pelo exposto, não é conhecida a Reclamação apresentada”.
Dilucidado o despacho nestes termos, é de referir que, não obstante a Recorrente ter levantado outros quesitos para ver salvaguardado o seu pedido, não assiste razão ao Tribunal Supremo, em virtude de bem ter identificado o objecto da mesma. Pelo que entende este Tribunal que a Reclamação deveria ter sido atendida, garantindo-se, assim, o seu direito fundamental ao recurso e salvaguardando-se, concomitantemente, a garantia da sua ampla defesa e um julgamento justo e conforme.
Ou seja, a Reclamante apresentou ao Juiz Presidente do Tribunal Supremo algumas questões atendíveis para que a causa fosse julgada e outras questões não atendíveis e, em virtude destas, a reclamação não foi atendida.
Portanto, como antedito, coarctar a reanálise de um processo por uma segunda instância, apenas pelo não pagamento da multa devida pela extemporaneidade, como foi feito pelo Tribunal de 1.ª instância, ofende o princípio do julgamento justo e conforme.
Aqui chegados, este Tribunal pugna pelo provimento do recurso, por se ter verificado a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o princípio do julgamento justo e conforme nos termos dos artigos 29.º e 72.º, ambos da CRA, devendo os autos serem remetidos ao Tribunal Supremo, a fim de ser observado o disposto no n.º 2 do artigo 47.º da LPC.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Custas pela Recorrente (artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, LPC).
Tribunal Constitucional, em Luanda, 6 de Março de 2021.
O JUIZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilherma Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B. da Silva (declarou-se impedida)
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Relatora)