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ACÓRDÃO N.º 676/2021

PROCESSO N.º 838-B/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 I. RELATÓRIO 

Emanuel João Francisco, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 3 de Junho de 2020, da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 517/20, que negou provimento à providência de habeas corpus, por inutilidade superveniente da lide.

O Recorrente vem acusado, pronunciado e condenado em primeira instância, na pena de 12 anos de prisão maior, pela prática de um crime de roubo, em concurso com o crime de ofensas corporais.

O Recorrente tendo sido notificado para apresentar alegações de recurso, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), asseverou no essencial, que:

  1. Foi detido pela primeira vez aos 25 de Março de 2019, porém foi solto mediante termo de identidade e residência aos 2 de Abril de 2019 e conduzido novamente a cadeia, mediante mandado de captura, aos 28 de Maio de 2019;
  2. Foi notificado da acusação aos 18 de 10 de 2019, quando já se encontrava em situação de excesso de prisão, pois tinham decorrido mais de 4 meses sem que tivesse sido notificado da acusação, conforme previsto no artigo 40.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP);
  3. A falta de acusação em tempo útil, como é de lei, é fundamento bastante para o deferimento do pedido de habeas corpus;
  4. O Tribunal recorrido foi infeliz e violou a Constituição e a lei ao negar provimento ao pedido por inutilidade superveniente da lide, pelo facto de ter sido o aqui Recorrente já julgado e condenado em primeira instância;
  5. Estando já em curso o pedido de habeas corpus, à data do julgamento, e verificando-se o excesso de prisão, a prisão do Recorrente não tinha cobertura legal, violando assim os artigos 29.º; 64.º; 65.º; 66.º; 67.º; e 72.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA), bem como o artigo 4.º e o n.º 1 do artigo 40.º, ambos da LMCPP;
  6. Tendo o mesmo interposto recurso da sentença condenatória com efeito suspensivo, a mesma não transita em julgado ficando o Recorrente na situação processual anterior à decisão recorrida, logo, em excesso de prisão até a presente data;
  7. Considerando que a Lei n.º 25/15 não inclui previsão legal que determine o prazo de prisão preventiva que resulta da condenação em pena recorrível, mas também não afasta nos termos dos nºs 1, 2 e 3 do artigo 42.º da LMCPP a possibilidade de ser decretada a restituição da liberdade provisória quando esgotados os prazos da prisão preventiva, o que é aplicável ao presente processo;
  8. O Acórdão recorrido está a denegar justiça e a legitimar uma medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, o que é inconstitucional e ilegal.

O Recorrente termina rogando que seja declarada a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido e, em consequência, que se dê provimento a providência de habeas corpus por excesso de prisão, sendo emitida a competente ordem de soltura para que possa o Recorrente aguardar em liberdade, os ulteriores termos do recurso interposto da sentença condenatória.

Os autos foram à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Ademais, foi observado o requisito do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, nos termos do parágrafo único do artigo 49.º da LPC.

Deste modo, tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente tendo interposto no Tribunal Supremo uma providência de habeas corpus, nos termos do artigo 36.º, da alínea h) do artigo 64.º, dos nºs 3 e 4 do artigo 65.º e do artigo 68.º, todos da CRA, viu o seu o seu pedido ser indeferido.

Pelo que tem, assim, legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme prevê a alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao estabelecer a legitimidade de recorrer extraordinariamente para “…as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.  

 IV. OBJECTO 

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar a constitucionalidade do Acórdão datado de 3 de Junho de 2020 prolactado pela 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento à providência de habeas corpus formulado pelo então Requerente e ora Recorrente, no âmbito do Processo n.º 517/2020, por inutilidade superveniente da lide.     

V. APRECIANDO

É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento ao pedido de habeas corpus formulado pelo Recorrente.

O habeas corpus é uma providência extraordinária destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade, e são pressupostos indispensáveis para a sua concessão a ocorrência de prisão efectiva, actual e ilegal, nos termos do artigo n.º 68.º da CRA.

O provimento do pedido de habeas corpus, à luz da lei processual, em vigor à data de interposição da presente providência, dependia da verificação de um dos pressupostos do artigo 315.º do então Código de Processo Penal (CPP), nomeadamente:

  1. Ter sido efectuada ou ordenada por quem para tanto não tenha competência legal;
  2. Ser motivada por facto pelo qual a lei não autoriza a prisão;
  3. c) Manter-se além dos prazos legais para a apresentação em juízo e para a formação de culpa;
  4. Prolongar-se além do tempo fixado por decisão judicial para a duração da pena ou medida de segurança ou da sua prorrogação.

Para que se aferisse do cumprimento ou não dos prazos legais, nos termos da alínea c) do artigo 315.º do CPP, era necessário proceder ao devido enquadramento com a Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP).

Ora, a lei supramencionada, entretanto revogada pela Lei n.º 39/20, de 11 de Novembro – Aprova o Código de Processo Penal, fixava os seguintes prazos de prisão preventiva, no n.º 1 do seu artigo 40.º:

  1. Quatro meses sem acusação do arguido;
  2. Seis meses sem pronúncia do arguido;
  3. Doze meses sem condenação em primeira instância;

 Alega o Recorrente ser devido o provimento do seu pedido de habeas corpus, por ter sido acusado quando já tinham passado mais de 4 meses desde a data da sua detenção.

Resulta dos autos que o Recorrente foi detido aos 25 de Março de 2019, no entanto, foi posto em liberdade mediante termo de identidade e residência, aos 2 de Abril de 2019, e foi alvo de nova detenção aos 28 de Maio de 2019.

Ora, a detenção, nos termos do que vinha disposto no n.º 1 do artigo 4.º da LMCPP, é o acto processual de privação precária da liberdade, sendo que, para efeitos de contagem do prazo de prisão preventiva, deve relevar todo o tempo de efectiva privação da liberdade.

Se houve uma interrupção nessa contagem, a mesma actua como se de uma suspensão se tratasse, devendo, no entanto, esse tempo ser descontado, para aferição do tempo de prisão.

Assim,

Tendo sido o Recorrente acusado aos 23 de Setembro de 2019, à data encontrava-se o mesmo privado da sua liberdade há 4 meses e 2 dias. Não deixamos ainda de notar que o Recorrente apenas foi notificado da acusação aos 18 de Outubro de 2019.

Ora, sobre a importância da notificação de um despacho ou sentença aos seus interessados, o artigo 228.º do Código de Processo Civil (CPC), no seu n.º 2 dispõe que “a notificação serve para…chamar alguém a juízo ou dar conhecimento de um facto”, e a parte final do n.º 2 do artigo 229.º do CPC complementa ao dispor que “devem também ser notificados sem necessidade de ordem expressa, as sentenças e os despachos que a lei mande notificar e todos os que possam causar prejuízo às partes”.

Logo, os prazos mostram-se cumpridos à data da notificação do despacho ou sentença, aos seus interessados.

Se o aqui Recorrente apenas foi notificado da acusação aos 18 de Outubro, à data já o mesmo se encontrava privado da sua liberdade há 4 meses e 26 dias, logo, estamos diante de uma situação de excesso de prisão preventiva, e o excesso de prisão preventiva é fundamento bastante para o provimento de uma providência cautelar de habeas corpus, nos termos do que vinha previsto na alínea c) do artigo 315.º do anterior CPP.

Havendo excesso de prisão, à data da interposição da providência de habeas corpus, deveria o Tribunal Supremo, em cumprimento da lei, ter dado provimento à referida providência.

A lei não prevê nenhuma situação em que a ilegalidade da prisão possa ser sanada, a única consequência da ilegalidade da prisão é a restituição do arguido à liberdade, cabendo essa responsabilidade ao Ministério Público na fase de instrução, ou ao Juiz nas fases subsequentes, nos termos do n.º 2 do 42.º. da LMCPP já revogada, mas aplicável à data dos factos.

Ademais,

Alega o Recorrente que por via do efeito suspensivo do recurso interposto, permanece em prisão preventiva, sendo que a Constituição no seu artigo 66.º dispõe que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.

Ora, vejamos:

Nos termos da LMCPP, entretanto revogada, a prisão preventiva vigorava até ao momento em que ocorria a condenação em primeira instância, altura em que o réu em questão, estaria privado da sua liberdade, não mais preventivamente, mas em cumprimento de uma pena, que se efectiva com a condenação.

É certo que com a interposição de recurso, com efeito suspensivo, os efeitos dessa sentença, ficavam como que congelados. Logo, e em consonância com a letra da LMCPP, a situação carcerária mantinha-se a mesma, ou seja, se à data da condenação o réu se encontrasse em liberdade, sendo condenado, mas interpondo recurso com efeito suspensivo, a situação carcerária mantinha-se inalterada até à decisão do recurso.

Por outro lado, o mesmo se verifica quando o réu à data da condenação em primeira instância se encontrasse em prisão preventiva, interpondo este recurso da sentença condenatória, com efeito suspensivo, a sua situação carcerária permanecia inalterada devido ao efeito suspensivo do recurso.

De forma a salvaguardar o princípio da presunção de inocência, a omissão legislativa que se verificava na LMCPP foi, entretanto, colmatada, pela Lei n.º 39/20, de 11 de Novembro, que aprova o novo Código de Processo Penal, uma vez que este no seu artigo 283.º fixa os prazos máximos de prisão preventiva, prevendo as situações em que havendo culpa formada, seja interposto recurso com efeito suspensivo.

Por conseguinte, não restam dúvidas que no presente processo está-se perante uma situação de excesso de prisão preventiva, visto que foram efectivamente excedidos os prazos de prisão preventiva, ainda aquando da acusação, pelo que, se tivesse sido ordenada a libertação do arguido por conta do excesso de prisão, em cumprimento da lei, o Recorrente, estaria em liberdade, à data da condenação. Deste modo, ex vi do efeito suspensivo do recurso que o mesmo interpôs, permaneceria nessa condição, em liberdade, aguardando pela decisão do recurso.

Assim, com vista à reposição da legalidade, deve o Recorrente ser restituído à liberdade, pois já se encontravam excedidos os prazos de prisão preventiva à data da interposição da providência de habeas corpus, aguardando nessa condição a decisão do recurso interposto da sentença condenatória de primeira instância.

À guisa de conclusão, o Tribunal Constitucional considera que o Acórdão do Tribunal Supremo consubstancia uma violação do direito à liberdade e da providência de habeas corpus, pelo que o Recorrente deve ser imediatamente restituído à liberdade, o que ora se ordena, devendo o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal acompanhar a respectiva execução, nos termos da alínea e) do artigo 186.º da Constituição da República de Angola.

DECIDINDO 

Nestes termos, 

Tudo visto e ponderado, Acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em: 

 Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional. 

Notifique. 

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 7 de Abril de 2021. 

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente e Relatora) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima d’A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

  Dra. Victória Manuel da Silva Izata