ACÓRDÃO N.º 681/2021
PROCESSO N.º 848-D/2020
Processo Relativo a Partidos Políticos e Coligações
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Daniel António Afonso, com os demais sinais de identificação nos autos, veio requerer a suspensão do exercício de funções dos órgãos de direcção da FNLA e a nulidade de todos os actos praticados pelo Presidente, Lucas Benghim Gonda, a contar do dia 16 de Fevereiro de 2019, data alegadamente de fim do mandato saído do IV Congresso Ordinário de 2015, bem como o reconhecimento do seu direito à democracia interna, nos termos e prazos previstos nos Estatutos do Partido Político.
Para o efeito, o Requerente apresentou as seguintes alegações:
Em conclusão, o Requerente solicita que:
b. Que seja suspenso o exercício de funções dos órgãos de direcção da FNLA eleitos no IV Congresso Ordinário de 2015, por falta de legitimidade, nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da CRA, do n.º 2 do artigo 29.º e do artigo 34.º, conjugados com o n.º 1 do artigo 22.º e com o n.º 1 e a alínea b) do n.º 2 do artigo 20.º, todos dos Estatutos da FNLA;
c. Que sejam reconhecidos os direitos aos militantes da FNLA, previstos nas alíneas c), d), e) e h) do n.º 2 do artigo 9.º dos Estatutos.
Convidado o Requerido Lucas Benghim Gonda, Presidente do Partido Político FNLA, a apresentar as suas contra-alegações, veio este enunciar o seguinte:
Em resumo, o Requerido pede que seja declarado improcedente o pedido de suspensão das funções do Presidente do Partido, por ser atentatório ao princípio da estabilidade política e funcional dos órgãos do Partido e seja declarado improcedente o pedido de nulidade dos actos praticados pelo Presidente da FNLA, por serem próprios e resultarem das competências conferidas pelos Estatutos.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer processos de impugnação de deliberações de órgãos de partidos políticos ou de resolução de quaisquer conflitos internos que resultem da aplicação dos seus Estatutos e convenções partidárias, nos termos das disposições combinadas da alínea c) do n.º 2 do artigo 180.º da Constituição da República de Angola (CRA), da alínea d) do n.º 1 do artigo 63.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), e do n.º 2 do artigo 29.º da Lei n.º 22/10, de 3 de Dezembro – Lei dos Partidos Políticos (LPP).
III. LEGITIMIDADE
A legitimidade processual activa é aferida mediante o interesse directo que a parte tem em demandar e a legitimidade processual passiva decorre do interesse directo da contraparte em contradizer.
O Requerente é militante da FNLA, pelo que tem legitimidade pelo manifestado interesse em demandar, e o Requerido é o Presidente do Partido Político, por isso tem legitimidade para contradizer, ao abrigo do artigo 26.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo constitucional ex vi do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto da presente acção é a verificação da conformidade jurídico-legal e estatutária do mandato dos órgãos de direcção da FNLA e dos actos praticados pelo Presidente do Partido Político, Lucas Benghim Gonda, ora impugnados de suspensão e nulidade, bem como dos direitos peticionados pelo Requerente.
V. APRECIANDO
No processo sub judice, o Requerente veio impetrar a declaração de nulidade dos actos praticados pelos órgãos de direcção do Partido Político FNLA, a suspensão do exercício de funções dos respectivos órgãos e o reconhecimento dos seus direitos enquanto militante.
Assim sendo, urge para este Tribunal, com fundamento na Constituição, na lei e nos Estatutos da FNLA, verificar se assiste razão ao Requerente, analisando as seguintes questões controvertidas alicerçadas no objecto da presente acção:
O Requerente questiona se os órgãos de direcção da FNLA, cujo mandato de quatro anos, iniciado em 2015 e alegadamente terminado há mais de um ano, podem exercer funções legalmente válidas, e, consequentemente, requer a nulidade de todos actos sobrevindos desde o dia 16 de Fevereiro de 2019, por entender que foram praticados pelo Presidente do Partido e pelo CC fora do período de vigência dos respectivos mandatos.
Para todos os efeitos, as disposições constitucionais da alínea f) do n.º 2 do artigo 17.º da CRA e ordinárias da alínea n) do n.º 2 do artigo 20.º da LPP estabelecem o dever dos partidos políticos respeitarem a organização e o funcionamento democráticos na definição, em sede dos seus estatutos, de regras e critérios materiais referentes à observância da democraticidade interna.
O vasto suporte doutrinário existente, sobretudo o enriquecimento temático trazido à liça pela obra de Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, Luanda, 2014, pág. 240, disciplina que “um dos princípios essenciais à constituição e funcionamento dos partidos políticos é o da sua organização e funcionamento democráticos. (…)”
Daqui é possível inferir que os partidos políticos devem obedecer à eleição periódica dos seus órgãos como meio de demonstração de democraticidade interna preconizada pela lei e pelos estatutos reguladores.
Em termos documentalmente históricos, a acta de 15 de Fevereiro de 2015, entregue pelo Partido Político e arquivada neste Tribunal, faz prova plena e inequívoca de que, de 13 a 16 de Fevereiro de 2015, foi realizado, em Luanda, o IV Congresso Ordinário da FNLA, que elegeu o Presidente Lucas Benghim Gonda e 411 membros ao CC, à razão de 374 efectivos e 37 suplentes.
Findo o Congresso, o novo CC, na sua I Reunião Ordinária, dentre os seus membros e sob proposta do Presidente da FNLA ora empossado, procedeu à eleição do BP, passando a integrar 81 membros, entre os quais 74 efectivos e sete (7) suplentes.
No supracitado conclave de 2015, foi ainda aprovada em acta a realização, em 2017, do II Congresso Extraordinário não electivo, com vista, sobretudo, a analisar a situação da vida intrapartidária, aprovar o programa de governo da FNLA, a estratégia eleitoral para as eleições gerais e autárquicas, e eleger o cabeça de lista do Partido e os candidatos a deputado às eleições gerais que se avizinhavam.
No entanto, a direcção do Partido realizou o II Congresso Extraordinário de 25 a 27 de Junho de 2018, precisamente no período em que, nos termos dos Estatutos e atendendo o calendário de renovação de mandatos dos órgãos directivos, o Presidente da FNLA devia ter lançado as bases de preparação e organização para concretizar a realização do V Congresso Ordinário, no ano de 2019.
O sobredito II Congresso Extraordinário, por ter sido convocado em sede de uma reunião ordinária do CC de Fevereiro de 2018 e que não reuniu quórum, foi impugnado e declarado inválido pelo Tribunal Constitucional, conforme o Acórdão n.º 509/2018, de 16 de Outubro.
Portanto, após a realização do IV Congresso Ordinário, em 2015, passou a recair sobre a direcção do Partido Político a obrigação de projectar, para 2019, a renovação dos respectivos órgãos, isto é, iniciado os quatro (4) anos de mandato em 2015, o Presidente do Partido devia realizar o V Congresso Ordinário electivo no ano término do mandato, observando, desta forma, o princípio estatutário da eleição periódica dos órgãos.
No conjunto de normas dos Estatutos da FNLA, o n.º 1 do artigo 22.º e o n.º 2 do artigo 34.º traduzem, também, uma particularidade indutiva neste sentido ao estabelecerem que “o Congresso reunirá ordinariamente de (4) quatro em (4) quatro anos…” e “o Presidente da FNLA é eleito pelo Congresso por maioria simples, para um mandato de quatro (4) anos subsequente e renovável, podendo se candidatar nos anos seguintes desde que reúna requisitos…”, respectivamente.
Contudo, a falta de congresso electivo não acarreta a extinção da vigência do mandato actual e a nulidade dos actos dos principais órgãos do Partido. Quer com isto elucidar que a omissão do conclave ordinário não torna juridicamente ineficiente nem enferma de vícios de invalidade o mandato em vigor, pois este apenas cessa com a realização do certame e a tomada de posse dos próximos membros eleitos aos cargos de direcção, como estabelece a norma do n.º 1 do artigo 52.º dos Estatutos da FNLA.
Como é mister constatar, não assiste razão ao Requerente aquando da alegação de que o mandato dos órgãos de direcção terminou em 2019, uma vez que, à luz dos Estatutos do Partido Político, a cessação do exercício de funções dos órgãos directivos da FNLA não depende do facto do mandato ter quatro anos, muito menos de não ter sido realizado o Congresso findo o quadriénio.
Tal como foi acima explanado, o fim do mandato dos órgãos de direcção da FNLA ocorre como efeito jurídico automático da tomada de posse do Presidente democraticamente eleito e dos novos membros efectivos do CC, mediante preparação, organização e realização, de forma livre, justa e transparente, de um congresso validamente convocado para o efeito.
Nesta esteira de pensamento, sem prejuízo do disposto na alínea d) do n.º 4 do artigo 33.º da LPP, quanto à extinção de formações políticas, este Tribunal entende que, em suma, o Presidente do Partido, o CC e o BP ainda gozam de legitimidade para a prática de actos permanentes e regulares, aqui insusceptíveis de declaração de nulidade, pois tais órgãos, por força dos Estatutos da FNLA, encontram-se a exercer funções sob vigência do mandato legitimado pelos votos expressos dos delegados ao congresso de 2015.
O Requerente solicita a este Tribunal a interrupção do exercício de funções dos órgãos superiores da FNLA, eleitos no âmbito do IV Congresso Ordinário de 2015, nomeadamente o Presidente do Partido, o CC e o BP, por alegada falta de legitimidade para a prática de actos e fundamento nos termos do n.º 2 do artigo 29.º, do n.º 2 do artigo 34.º, conjugados com o n.º 1 do artigo 22.º, n.º 1 e alínea b) do n.º 2 do artigo 20.º, todos dos Estatutos, e do n.º 1 do artigo 4.º da CRA.
Atento à disposição constitucional invocada pelo Requerente para, este Tribunal atribuir poderes de suspender o exercício de funções das altas instâncias orgânicas do Partido Político FNLA, importa explicitar, em termos sintéticos, o sentido interpretativo da norma do n.º 1 do artigo 4.º da CRA ao referir que “o poder político é exercido por quem obtenha legitimidade mediante processo eleitoral livre e democraticamente exercido, nos termos da Constituição e da lei”.
O comando legal em causa alude apenas ao direito de exercício de poder político governamental por parte de quem tenha sido legitimado por via de processo eleitoral geral ou autárquico válido, o que não tem que ver com eleições intrapartidárias que os partidos políticos realizam para a legitimação dos seus órgãos internos.
Concomitantemente, as normas estatutárias citadas pelo Requerente não conferem poderes de suspensão de órgãos de formações políticas a este Tribunal, já que a liberdade de constituição de partidos políticos e o seu funcionamento são matérias exclusivas da Constituição e da lei, por se reportarem a direitos constitucionais das pessoas colectivas privadas e, portanto, oponíveis ao Estado.
O Tribunal Constitucional está vinculado ao princípio da legalidade de conformação dos seus actos à Constituição e à lei, como disciplina o n.º 2 do artigo 6.º da CRA nos seguintes termos: “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”..”
Assim, a liberdade partidária pressupõe o respeito aos princípios da proibição de ingerências positiva e negativa de poderes públicos, mormente judiciais, na fundação, existência, desenvolvimento e funcionamento de partidos políticos, de coligações e de grupos de cidadãos eleitores.
Portanto, a igualdade de oportunidade no desenvolvimento da actividade dos partidos políticos e a liberdade partidária, consagradas nos termos conjugados das alíneas b), c) e f) do n.º 2 do artigo 17.º da CRA e dos artigos 2.º, 4.º, 7.º e 9.º, todos da LPP, exigem, deste Tribunal, o respeito pela autonomia das formações políticas e pela vida interna.
Por esta razão, este Tribunal Constitucional, ao dirimir conflitos internos, que resultem da aplicação de estatutos ou convenções, não possui poderes de suspensão plena ou parcial do exercício de funções dos órgãos dos partidos políticos democraticamente eleitos pelos legítimos militantes, excepto nos termos da lei.
Em guisa de conclusão, por inexistência de previsão constitucional e ordinária, entende este Tribunal que, nestas e em condições similares, não possui competências, em razão da matéria, para proceder à suspensão dos órgãos directivos do Partido Político FNLA.
O Requerente solicita o reconhecimento dos seus direitos de militante, previstos nas alíneas c), d), e) e h) do n.º 2 do artigo 9.º dos Estatutos da FNLA.
Os articulados estatutários acima enunciados prevêem os seguintes direitos dos militantes da FNLA:
Este Tribunal considera que tais direitos são garantias fundamentais de liberdade interna. A democracia interna, em geral, exige a formação e o respeito pela vontade legítima dos membros do partido, o asseguramento do direito à actuação efectiva dos militantes dentro do partido, a protecção do direito à liberdade de expressão e as garantias da igualdade de tratamento de todos integrantes dos órgãos do partido por parte do seu Presidente.
Os direitos fundamentais, tal como a liberdade de escolha interna dos representantes políticos e a garantia de participação democrática dos militantes no processo de renovação periódica dos órgãos de direcção, são directamente aplicáveis e vinculam todos os partidos políticos na sua relação com os seus membros, segundo o estatuído no n.º 1 do artigo 28.º da CRA.
Para que haja garantia efectiva dos direitos reclamados pelo Requerente com base nas normas dos Estatutos acima enunciados, é indispensável o cumprimento, no seio da FNLA, das normas estatutárias sobre a renovação dos órgãos de direcção através de acto democrático exemplar, qual seja a realização de congresso que permita aos militantes exercerem o direito de se candidatarem, de elegerem ou serem eleitos a qualquer cargo do Partido.
Neste sentido, vale, com efeito, frisar que a direcção da FNLA realizou, nos dias 28 e 29 de Outubro de 2020, a V Sessão Ordinária do CC, em sede da qual foi convocado o V Congresso Ordinário do Partido para os dias 16 a 19 de Junho de 2021.
Entretanto, compulsada a documentação apresentada a este Tribunal para anotação e aferição da aludida reunião, foi constatada a falta de quórum participativo dos membros efectivos do CC, o que, em termos jurídico-materiais, coloca em causa a validade do anunciado certame ordinário aí convocado para Junho próximo.
A falta de quórum deve-se ao facto da lista de presenças conter assinaturas de membros declarados falecidos, suplentes e de ter sido subscrita por apenas 170 militantes com legitimidade, um número inferior a 188, que corresponde à metade de 374 efectivos do CC mais um, de acordo com a injunção do n.º 2 do artigo 24.º dos Estatutos da FNLA.
Outrossim, ao analisar os autos, a fls. 36, constata este Tribunal que o Presidente do Partido convocou, também, um congresso ordinário para os dias 16, 17 e 18 de Agosto de 2021.
Convocação do género carece sempre de formalização numa reunião do CC, visando o cumprimento do disposto na alínea f) do n.º 3 do artigo 20.º da LPP, quanto ao respeito pelas competências de cada órgão partidário, e do artigo 23.º dos Estatutos, quanto à convocação de congressos por observância dos Estatutos e do Regulamento de Organização e Funcionamento das Estruturas do Partido.
A data de 16 a 18 de Agosto de 2021, decidida para acolher o V Congresso Ordinário, resultou do adiamento, por razões técnicas, logísticas e financeiras, do certame que havia sido antes marcado, na V Reunião Ordinária do CC, de 11 de Setembro de 2019, para os dias 12 a 14 de Dezembro de 2019, conforme atestam o Despacho n.º 18/NE/GP/FNLA/2020, de 17 de Agosto, do Presidente do Partido, e a Resolução n.º 01/CNP/FNLA/2019, de 4 de Dezembro, da Comissão Nacional Preparatória, depositados neste Tribunal pela direcção da FNLA.
Devido à jurisdição exclusiva que exerce sobre questões de natureza político-partidária, este Tribunal Constitucional entrevê a sua prerrogativa de apelar à direcção da FNLA ao cumprimento da Constituição, da lei e dos Estatutos do Partido, devendo realizar, com base em princípios democráticos, o V Congresso Ordinário nos dias 16 a 18 de Agosto de 2021, em virtude da deliberação da reunião válida do CC, de 11 de Setembro de 2019.
A convocação do V Congresso Ordinário, para os dias 16, 17, 18 e 19 de Junho de 2021, fica, entretanto, sem efeito, uma vez que foi convocada na V Sessão Ordinária do CC, de 28 de Outubro de 2020, que este tribunal não anotou nem aferiu, por falta de requisitos cumulativos exigidos por lei.
Desta feita, este Tribunal Constitucional é do entendimento de que a entidade máxima do Partido violou, agindo por omissão na realização de conclave do interesse justo dos militantes, o direito à democracia interna, subsumível ao princípio da eleição periódica dos órgãos de direcção, consagrado na alínea c) do artigo 8.º e na alínea k) do n.º 2 do artigo 20.º, ambos da LPP, bem como no artigo 9.º, na alínea d) do n.º 6 do artigo 2.º, no n.º 2 do artigo 29.º e no n.º 2 do artigo 34.º, todos dos Estatutos da FNLA.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas nos termos do artigo 15.o da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 25 de Maio de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B da Silva
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Relatora)