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ACÓRDÃO N.º 682/2021

PROCESSO N.º 854-B/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Carlos Manuel de São Vicente, melhor identificado nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido a 7 de Outubro de 2020, nos autos do Processo n.º 672/2020, pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.

O Recorrente intentou e fez seguir uma providência cautelar de habeas corpus, que correu termos na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, contra a medida de coacção penal de prisão preventiva que lhe foi imposta pelo Ministério Público, a 22 de Setembro de 2020, no âmbito do Processo n.º 57/20 – DNIAP/PGR.

Para fundamentar o seu pedido, alegou que, considerando o facto de padecer de patologias crónicas, nomeadamente hipertensão, diabetes e hiperplasia benigna da próstata, a sua prisão colocava-o em sério risco de vida, ainda mais em período de pandemia da COVID-19. Argumentou, ainda, que considerando as notícias que têm sido veiculadas na comunicação social, se tinha tornado um alvo fácil no estabelecimento prisional onde se encontra preso, podendo ser vítima de uma acção marginal, como um rapto, resgate, ou mesmo assassinato. A estes factos, acresceu que, não tendo o Despacho que decretou a sua prisão preventiva indicado as razões por que consideravam inadequadas ou insuficientes a aplicação das outras medidas de coacção mais leves, para além de descrever de forma pouco sustentada os factos imputados ao arguido, não indicando os indícios recolhidos que comprovem os factos que lhe eram imputados, o levavam a concluir que a sua prisão era ilegal e arbitrária. Assim sendo, a recusa da sua libertação representaria uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Constituição da República de Angola (CRA).

Por sua vez, o Tribunal Supremo julgou improcedente a providência, por considerar que os factos alegados pelo então Recorrente não se coadunam com a natureza excepcional da providência requerida, uma vez que não eram subsumíveis à previsão do artigo 315.º do Código de Processo Penal (CPP).

Não se conformando com a decisão proferida pela mais alta instância da jurisdição comum, o Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, e, nas suas alegações, formulou conclusões, das quais se destacam:

  1. O ACÓRDÃO RECORRIDO limita-se a invocar que “o requerente vem nos presentes autos arguir factos não subsumíveis no art.º 315.º do Cod. de Processo Penal (o facto de o Recorrente ser portador de doença grave, o que se torna incompatível com a privação da sua liberdade), que por numerus clausus recorta os requisitos de provimento da providência de habeas corpus”, fazendo, assim, uma interpretação restritiva do artigo 315.º do CPP, em clara violação de Convenções e Tratados Internacionais ratificados pela República de Angola, bem como, de vários preceitos constitucionais, máxime o artigo 68.º da CRA, o que se alega para os legais e devidos efeitos. 
  1. O ACÓRDÃO RECORRIDO, ao desconsiderar o estado de saúde do Recorrente e o risco que comporta para a sua vida a privação da sua liberdade em estabelecimento prisional fechado como fundamento legal para o pedido de Habeas Corpus, colocando, com a sua decisão, em risco de vida o Recorrente, viola os artigos 1.º, 2.º, n.º 2, 13.º, 21.º, alínea b), 22.º, n.º 1, 26.º, n.º 2, 28.º, n.º 1, 29.º, n.º 1, 30.º, 31.º, 36.º, 55.º,56.º, 60.º, 64.º, n.º 1.º, 68.º, 174.º, n.º 2, 175.º, 177.º, n.º 1, todos da CRA. 
  1. De todo o modo, contrariamente ao que se invoca no ACÓRDÃO RECORRIDO, o Habeas Corpus apresentado alicerçou-se na alegação e prova de estarmos em presença de uma prisão efectiva e actual, ferida de ilegalidade, em clara violação de princípios de direito internacional que têm equiparação constitucional, porque ratificados pelo Estado angolano, nomeadamente, dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 5.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dos artigos 9.º, 10.º, 14.º, 26.º, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, dos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 26.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, bem como, dos artigos 1.º, 2.º, 6.º, 23.º, 29.º, n.º 4, 31.º, n.º 2, 36.º, 56.º, 57.º, 67.º, n.º 2, 68.º, 174.º, todos da CRA (e, bem assim, dos princípios neles plasmados, máxime dos princípios constitucionais da legalidade, necessidade, da proporcionalidade e da razoabilidade e da presunção da inocência) e, ainda, dos artigos 17.º, 18.º, 19.º, 21.º e 36.º, n.º 2, da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, o que se reitera para os legais e devidos efeitos. 
  1. O ACÓRDÃO RECORRIDO fez, assim, tábua rasa de todos os fundamentos invocados pelo Recorrente no que respeita à alegação e prova de que o despacho que lhe decretou a aplicação da medida de prisão preventiva foi proferido em claro abuso de poder, de forma manifestamente arbitrária, e, por isso, ele próprio, viola as Convenções Internacionais ratificadas pela República de Angola, a CRA e os artigos 17.º, 18.º, 19.º, 21.º e 36.º, n.º 2, todos da Lei n.º 25/15, de 18/09. 
  1. O ACÓRDÃO RECORRIDO viola, também, o princípio da legalidade e o disposto no artigo 28.º da CRA, na medida em que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais são directamente aplicáveis e vinculam todas as entidades públicas e privadas. 
  1. Pese embora o direito constitucional à liberdade não seja um direito absoluto, porque admite restrições, essas restrições encontram-se balizadas pelas regras definidas no artigo 57.º da CRA, entre as quais a de que só podem ser estabelecidas para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo confinar-se dentro dos limites necessários a essa protecção, o que não foi o caso. O ACÓRDÃO RECORRIDO viola, assim, o citado artigo 57.º da CRA. 
  1. (…), o despacho da DNIAP-PGR de 22/09/2020, que aplicou ao Arguido, aqui Recorrente, a medida de coacção pessoal de prisão preventiva assenta em meras suposições vagas e curtas afirmações conclusivas, sem a mínima fundamentação, sem permitir uma acção cognitiva que permita, desde logo, ao Arguido, perceber quais são os factos concretos que o indiciam da prática dos crimes que lhe são imputados. 
  1. O Despacho de 22/09/2020 não indicou, de igual modo, como se lhe impunha por lei, e, muito menos de forma fundamentada, em clara violação dos artigos 18.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro e 57.º da CRA, as razões por que considera inadequadas ou insuficientes, para atender aos interesses processuais que se impõe acautelar in casu, a aplicação de outras medidas de coacção pessoal ao aqui Recorrente. (quando o Recorrente colaborou com a justiça, não podia ausentar-se do País, pois tinha o passaporte caducado, não existia a possibilidade de destruição de provas e eventual continuação da prática criminosa, por não trabalhar na Sonangol e os factos datarem de há vários anos). 
  1. O ACÓRDÃO RECORRIDO, ao indeferir o pedido de Habeas Corpus e, consequentemente, ao manter a prisão preventiva ao Recorrente, quando esta foi decretada em manifesto abuso de poder, está, ainda, e, necessariamente, a conferir ao Recorrente um tratamento desigual face aos outros Cidadãos, o que importa a violação do artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e artigo 23.º da CRA. 
  1. O ACÓRDÃO RECORRIDO, ao omitir pronúncia sobre as inconstitucionalidades e ilegalidades suscitadas no pedido de Habeas Corpus, veda, de igual modo, ao Recorrente o pleno acesso ao direito, à tutela jurisdicional efectiva e ao direito a um processo equitativo, o que constitui uma violação dos artigos 10.º e 29.º, n.º 4, ambos da CRA. 
  1. Podemos descortinar do princípio da presunção da inocência as seguintes consequências: a inadmissibilidade da presunção da culpa (a); o respeito pelos direitos de defesa e do contraditório (b); a proibição da inversão do ónus de prova em detrimento do arguido (c); a consideração do estatuto do arguido como sujeito de direitos (d); a tramitação do processo penal em prazo razoável (e); o princípio in dúbio pro reu (f), a aplicação de medidas cautelares apenas quando as mesmas sejam legais, proporcionais, necessárias e adequadas (g), um controlo jurisdicional efectivo das decisões que afectem os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (h). 
  1. Toda e qualquer prisão decretada em violação dos citados princípios e normas constitucionais, como é o caso, é ilegal, sendo garantido aos Cidadãos o recurso ao Habeas Corpus como medida de protecção dos seus direitos, liberdades e garantias. O acórdão recorrido, ao indeferir o Habeas Corpus apresentado pelo aqui Recorrente, viola os citados princípios e normas constitucionais, o que se invoca. 
  1. O direito à liberdade é uma das directivas constitucionais verdadeiramente estruturadora de um Estado de Direito. Assim, nos casos de determinação judicial da privação da liberdade, exige-se, por força nomeadamente do princípio constitucional da liberdade, um redobrado dever de motivação pela resolução tomada por essa medida cautelar ou de reacção penal. 
  1. O ACÓRDÃO RECORRIDO, ao manter a restrição ao direito fundamental à liberdade do aqui Recorrente, viola os artigos 56.º e 57.º, ambos da CRA. 
  1. O despacho que decretou a prisão preventiva ao Recorrente foi proferido pelo Ministério Público, o qual procedeu aos interrogatórios do Recorrente, o que vai contra os princípios da divisão tripartida dos poderes e o princípio da jurisdição (Acórdão n.º 467/2017 do Tribunal Constitucional) e constitui uma violação clara, nomeadamente, dos artigos 8.º, 9.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como dos artigos 63.º, alínea h), 64.º, 105.º, 174.º, n.º 2 e 186.º, alínea f), da CRA.

Terminou requerendo a revogação do Acórdão recorrido, por estar ferido de inconstitucionalidade, e a sua substituição por outro que ordene a imediata libertação do Recorrente.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola”.

Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente foi requerente da providência de habeas corpus que correu termos na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, com o n.º 672/2020, pelo que tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é apreciar se o Acórdão prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 672/2020, ofendeu princípios ou violou direitos constitucionalmente protegidos.

V. APRECIANDO 

A CRA determina as circunstâncias em que a liberdade de quaisquer cidadãos pode ser restringida, merecendo, neste sentido, o disposto nos artigos 57.º, 58.º, e 68.º, todos da Lei Magna da República de Angola, uma atenção especial por parte dos tribunais na promoção e administração da justiça.

Como é sabido, a providência de habeas corpus, com tutela constitucional no artigo 68.º da CRA, é “uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar, de forma especial, o direito à liberdade constitucionalmente garantido e que visa reagir de modo imediato e urgente, contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade” (Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, em Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, anotações ao artigo 68.º, págs. 388 a 390).

O pedido de declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido assenta sobre as conclusões que, por força do disposto no artigo 690.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao Processo Constitucional ex vi do artigo 2.º da LPC, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.

Este Tribunal, ao tratar das questões de constitucionalidades suscitadas, no que ao aresto recorrido diz respeito, terá que, pela integralidade do processo, considerar as matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal recorrido, pois foram sobre estas, e apenas sobre estas, que aquele tribunal teve oportunidade de se pronunciar.

O Recorrente intentou uma providência cautelar de habeas corpus contra a medida de coacção penal de prisão preventiva que lhe foi imposta pelo Ministério Público a 22 de Setembro de 2020, no âmbito do Processo n.º 57/20 – DNIAP/PGR.

Para fundamentar o seu pedido, alegou que, considerando o facto de padecer de patologias crónicas, a sua prisão colocava-o em sério risco de vida, ainda mais em período de pandemia da covid-19. E que também poderia ser vítima de rapto, resgate ou assassinato, por se encontrar em estabelecimento prisional, onde seria um potencial alvo de acções marginais. E defendeu a ilegalidade e inconstitucionalidade do despacho que decretou a sua prisão preventiva, pelo facto de (i) não indicar as razões por que consideravam inadequadas ou insuficientes a aplicação das outras medidas de coacção pessoal mais leves, (ii) não descrever com precisão os factos que lhe eram imputados enquanto arguido, e (iii) não indicar os indícios recolhidos que comprovassem esses factos.

O Tribunal recorrido negou provimento à providência requerida, por considerar que o Recorrente arguiu factos não subsumíveis à previsão do artigo 315.º do CPP.

O Recorrente entende que a decisão recorrida viola o dever de fundamentação, os princípios da igualdade, da presunção da inocência, da divisão tripartida de poderes e da jurisdição, das normas constitucionais subjacentes ao exercício do poder judicial, bem como os direitos à liberdade à saúde e à vida.

Vejamos, pois, se assiste razão ao Recorrente.

Relativamente à concepção restritiva do habeas corpus assumida no Acórdão recorrido, é conhecida a fundamentação jus-constitucional perfilhada por este Tribunal, que partilhamos, segundo a qual a providência extraordinária pode e deve ser requerida contra a prisão ferida de ilegalidade. Por essa razão, a omissão de pronúncia aqui referida pelo Recorrente deveria ter sido arguida perante o Tribunal que a proferiu, nos termos no artigo 668.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente ao Processo Penal por força do artigo 1.º do CPP em vigor à altura dos factos.

A questão da relevância constitucional da omissão de pronúncia dos factos que o Aresto recorrido deveria ter conhecido resulta de saber se tais factos constituem fundamento para a inconstitucionalidade da prisão preventiva decretada ao Recorrente.

O Recorrente, na providência de habeas corpus, alegou, em primeira linha, que a prisão preventiva decretada colocava em perigo a sua vida, pelo facto de padecer de doenças crónicas, com risco cardiovascular aumentado, e o seu alojamento em estabelecimento prisional potenciar o risco de contágio de covid-19, o que lhe poderia ser fatal, uma vez que seria doente de risco agravado, e o estabelecimento se encontrar distante das clínicas de referência em matéria de cuidados intensivos.

Sobre estes factos, o Acórdão recorrido refere que não constitui fundamento “…para a procedibilidade do pedido, cabendo a Instituição Prisional providenciar sobre o asseguramento das condições adequadas a sua saúde.

A documentação médica junta aos autos refere que o Recorrente padece de hipertensão arterial (primária), diabetis mellitus tipo 2, sem complicações, e neoplasia benigna da próstata, e que necessita de avaliação periódica em consulta de cardiologia e urologia. O último dos relatórios, junto pelo próprio Recorrente a fls. 30 a 33 verso, é produzido na sequência de consultas e exames, realizados numa clínica de referência, já depois de preso preventivamente, o que demonstra que a recomendação médica de avaliação periódica está a ser cumprida, apesar da medida de coacção penal aplicada.

A protecção especial ao cidadão vulnerável como o Recorrente, por ter idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos e padecer de doenças crónicas, como, aliás, a maior parte dos nossos cidadãos dessa faixa etária, não determina, de per si, a ilegalidade ou inconstitucionalidade da prisão preventiva decretada.

 O risco elevado de contágio em estabelecimento prisional não se tem confirmado na nossa realidade, o Recorrente tem acesso aos cuidados médicos de que necessita, e existem unidades de cuidados intensivos para os doentes de COVID-19 no Município de Viana, onde se encontra situado o estabelecimento prisional em que foi alojado. Portanto, não se vislumbra, na decisão recorrida, qualquer desvalorização da factualidade ou de critérios fundamentais de ponderação (adequação e proporcionalidade) que permita a este Tribunal aferir a existência de risco ou violação do seu direito à saúde e à vida.

As restantes inconstitucionalidades suscitadas assentam na inexistente ou deficiente motivação do despacho que decretou a medida cautelar da prisão preventiva, nomeadamente a falta de:

  1. Indicação das razões por que consideravam inadequadas ou insuficientes a aplicação das outras medidas de coacção mais leves;
  2. Concretização dos factos que lhe foram imputados enquanto arguido;
  3. Descrição dos indícios recolhidos que comprovassem esses factos.

Os requisitos do despacho que manda aplicar uma medida de coacção penal vêm previstos no artigo 21.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), à altura aplicável, nomeadamente:

  1. A descrição sumária dos factos imputados ao arguido;
  2. A indicação dos indícios recolhidos nos processos que comprovem os factos imputados, sempre que essa indicação não possa pôr em risco o êxito da investigação ou a integridade física e a vida dos participantes processuais ou da vítima do crime;
  3. A qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido;
  4. A referência aos factos concretos que preencham os pressupostos da aplicação da medida.

O despacho em questão foi junto aos autos pelo Recorrente (fls. 11 a 13 dos autos), onde se verifica que o Ministério Público afirma existirem fortes indícios de ilicitude da transmissão da posição accionista da Sonangol, E.P, na AAA-Seguros, SA, a favor do Recorrente, indicando como indícios o facto de não existirem nos autos evidências de que o Conselho de Administração da Sonangol, EP terá consentido a tal cessão de acções, e a justificação dada pelo próprio Recorrente, segundo a qual a transmissão resultaria de um acordo verbal entre o então Presidente do Conselho de Administração da Sonangol, EP e ele próprio. Consta, também, a qualificação jurídica dos factos imputados ao Recorrente, e a referência ao facto de se tratar de “uma pessoa conhecida, influente e ter poder financeiro, (…) deslocar-se ao exterior com regularidade, factores que combinados podem facilitar o contacto deste com elementos de prova, tanto no país como no estrangeiro, ainda por carrear nos autos” para concluir que estavam reunidos os pressupostos da aplicação da medida de coacção.

Por sua vez, é notório que o Recorrente não concorda com a fundamentação apresentada no despacho, uma vez que considera que “não analisou convenientemente (e, muito menos, justificou/fundamentou) da necessidade da sua aplicação ser devidamente ponderada pela exigência de inequívoca prova dos seus pressupostos de aplicação e da impossibilidade de, através de outras medidas menos gravosas, assegurar os fins processuais a prosseguir, como é, aliás, uma imposição da CRA” e, por essa razão, considera estar-se perante uma prisão arbitrária, aplicada em manifesto abuso do poder, tendo a decisão que a mandou aplicar incorrido na violação do disposto nos artigos 17.º, 18.º, 19.º, 21.º e 36.º n.º 2, da LMCPP.

Relativamente à questão da violação do dever de fundamentação, este Tribunal Constitucional constata que a nossa Constituição, ao contrário do que acontece com outras, não contém uma disposição autónoma, que estabeleça a obrigação genérica de fundamentação das decisões dos Tribunais, mas considera que está implícita na conjugação de várias disposições combinadas da Constituição angolana, entre as quais o n.º l do artigo 67.°, segundo a qual "ninguém pode ser detido, preso ou submetido a julgamento senão nos termos da lei, sendo garantido a todos os arguidos ou presos do direito de defesa, de recurso e de patrocínio judiciário", conjugado com o n.º l do artigo 177.°, que dispõe que “Os Tribunais garantem e asseguram a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes, a protecção dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos e das instituições e decidem sobre a legalidade dos actos administrativos" e do disposto no n.º 6 do artigo 65.° que consagra que "os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos".

A estas disposições constitucionais acresce o artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que consagra que “Todos são iguais perante os tribunais de justiça. Todas as pessoas têm direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido pela lei, que decidirá quer do bem fundado de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra elas, quer das contestações sobre os seus direitos e obrigações de carácter civil. As audições à porta fechada podem ser determinadas durante a totalidade ou uma parte do processo, seja no interesse dos bons costumes, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, seja quando o interesse da vida privada das partes em causa o exija, seja ainda na medida em que o tribunal o considerar absolutamente necessário, quando, por motivo das circunstâncias particulares do caso, a publicidade prejudicasse os interesses da justiça; todavia qualquer sentença pronunciada em matéria penal ou civil será publicada, salvo se o interesse de menores exigir que se proceda de outra forma ou se o processo respeita a diferendos matrimoniais ou à tutela de crianças.”

Entretanto, na mais recente e moderna legislação infraconstitucional, encontramos o artigo 158.º do CPC, que estabelece “1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.”, bem como o n.º 1 do artigo 17.º, da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro – Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum, que dispõe que “As decisões dos juízes sejam por via de acórdãos, sentenças ou meros despachos, são sempre fundamentadas de facto e de direito.

Estas disposições legais reflectem bem a dimensão garantística do direito de defesa do arguido na CRA. A fundamentação e a motivação das decisões judiciais em geral, e em especial das sentenças/decisões proferidas em processo penais, dado o potencial reflexo nos direitos fundamentais dos visados, são um pressuposto para a sua recorribilidade, pois constituem o objecto do recurso, sobre o qual incidirá toda a actividade de reexame e reapreciação em instância de recurso.

No caso concreto, este Tribunal entende que a alegada falta de racionalidade da fundamentação do despacho que decretou a medida cautelar não violou a garantia da ampla defesa e do acesso ao direito, o direito à liberdade e a presunção de inocência por parte do Recorrente. Como se pode verificar do requerimento da providência de habeas corpus, o Recorrente teve a oportunidade de conhecer e censurar a motivação que esteve na base do despacho em causa, criticando o exercício de ponderação realizado. Por essa razão, pode-se afirmar que a garantia da ampla defesa e o exercício efectivo do direito ao recurso foram assegurados no caso presente.

E mesmo que se considere deficiente a argumentação do magistrado do Ministério Público que proferiu o despacho, com pertinência, ANTUNES VARELA, afirma que “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito” in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 1985, pág. 687.

Por fim, o Recorrente alega que, tendo a prisão preventiva sido decretada por um despacho do Magistrado do Ministério Público, que também tinha dirigido o interrogatório do Recorrente, tal decisão contende com os princípios da divisão tripartida dos poderes e da jurisdição, chamando à colação o Acórdão n.º 467/2017 do Tribunal Constitucional.

Compulsados os autos, este Tribunal verifica que o Recorrente não suscitou esta questão em sede da providência de habeas corpus que correu termos no Tribunal Supremo, pelo que não tinha aquele Tribunal como se pronunciar sobre essa matéria, não podendo, por maioria de razão, este Tribunal, e sobretudo, em sede de recurso extraordinário de inconstitucionalidade, sindicar uma questão que não foi objecto de apreciação e da decisão recorrida.

De qualquer forma, sempre se poderá dizer que os efeitos da inconstitucionalidade declarada pelo Acórdão n.º 467/2017, proferido por este Tribunal, foram protelados até que as autoridades competentes providenciem a admissão e colocação de juízes de garantias junto dos órgãos de instrução preparatória, o que não ocorreu até à presente data, pelo que continuam os magistrados do Ministério Público a ordenar a aplicação das medidas restritivas de liberdade, que poderão ser fiscalizadas pelos actuais juízes de turno.

Aqui chegados, este Tribunal considera que o aresto recorrido e apreciado não ofendeu, nem violou quaisquer princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionalmente tuteladas, invocados pelo Recorrente.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: 

 Sem custas, nos termos da segunda parte do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC).

Notifique.

 

Plenário do Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 25 de Maio de 2021.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Maria de Fátima de Lima d’A. B. da Silva

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Relatora)