ACÓRDÃO N.º 683 /2021
PROCESSO N.º 860-D/2020
Processo de Fiscalização Abstracta Sucessiva
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
O GRUPO PARLAMENTAR DA CASA-CE veio, nos termos do n.º 1 e da alínea c) do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição da República de Angola (CRA) e do artigo 27.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), intentar acção de fiscalização abstracta sucessiva, tendo por objecto as seguintes normas:
Para tanto, apresentou, em resumo, os seguintes fundamentos:
O n.º 3 do artigo 25.º e os n.ºs 1 a 4 do artigo 29.º, ambos do Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro, dispõem que:
O n.º 2 do artigo 4.º e o n.º 5 do artigo 5.º da Lei n.º 16/91, de 11 de Maio – Lei sobre o Direito de Reunião e de Manifestação, dispõem que:
Entende, pois, o Requerente que as normas legais supra-referidas são inconstitucionais por “violarem efectivamente, normas e princípios constitucionais, incluindo as normas legaisque fixam os limites formais, materiais e procedimentais das leis restritivas, limitativas ou suspensivas da titularidade e exercício de direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na Constituição” (…) porquanto“Os direitos, liberdades e garantias fundamentais, consagrados na Constituição, nunca podem ser restringidos, limitados ou suspensos, na sua titularidade e no seu exercício, através de acto ou regulamento e nem de contrato administrativo ou de operação material, por força do princípio da unidade da Constituição, salvo se, com fundamento na ponderação das circunstâncias de que depende a colisão de direitos ou de interesses legítimos, essa restrição, limitação ou suspensão do direito de titular ou de exercer algum direito, liberdade e garantia fundamental, consagrados na Constituição, resultar, em concreto, de decisão jurisdicional prévia do Tribunal competente, de acordo com o n.º 2 do artigo 174.º e n.º 1 do artigo 177.º, entre outros, e de harmonia com a garantia constitucional de natureza procedimental relativa a processos urgentes, previstos, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 29.º, todos da CRA.”
Assim, concluindo, veio o Requerente dizer que:
Solicitados, por ofícios assinados pelo Juiz Conselheiro Presidente, deste tribunal a pronunciarem-se, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 29.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, vieramos órgãos autores das normas cuja apreciação da constitucionalidade se requere dizer, em resumo, o seguinte:
“A. POR EXCEPÇÃO:
O Decreto Presidencial nº 276/20, de 23 de Outubro, que contém as normas que constituem causa de pedir da petição inicial do requerente,
dispõe no seu artigo 3.º sob a epigrafe "Vigência e aplicação", que as medidas nele previstas vigoram até ao dia 22 de Novembro de 2020; porém, acontece que a petição inicial por via da qual se interpôs a acção do requerente deu entrada no dia 09 de Dezembro de 2020, data em que o referido diploma não mais se encontrava em vigor e, portanto, já não existia no ordenamento legal, o que equivale à falta clara de indicação da causa de pedir.
Outrossim, constatamos que os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção, ou seja, a causa de pedir, não se harmonizam com o pedido ora formulado, pois, a requerente começa por afirmar que, nos termos do artigo 58.º da CRA, o Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo, apenas pode praticar três actos materiais, juridicamente válidos, para restringir os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, no caso, (i) declaração de Estado de Guerra; (ii) declaração de Estado de Sítio e (iii) declaração de Estado de Emergência.
Prossegue alegando que o Decreto Presidencial nº 276/20, de 23 de Outubro, que estabelece as Medidas Excepcionais e Temporárias a Vigorar durante a Situação de Calamidade Pública declarada por força da COVID-19, no seu artigo 25.º com a epígrafe "Actividades e reuniões", bem como o artigo 29.º com a epígrafe "Ajuntamento na via pública", restringem os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
E termina pedindo que sejam declarados inconstitucionais: o Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro, que aprova Medidas Excepcionais e Temporárias a Vigorar durante a Situação de Calamidade Pública, declarada por força da COVID-19 e a Lei n.º 16/91, de 11 de Maio, Lei sobre o Direito de Reunião e Manifestação.
A Lei Orgânica do Processo Constitucional não contém um regime jurídico especial completo sobre os requisitos formais e materiais da petição inicial e consequências da não verificação dos mesmos.
Porém, nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Processo Constitucional, aos processos de natureza jurídico-constitucional, em tudo quanto não esteja expressamente previsto na legislação reguladora do Tribunal Constitucional aplicam-se, com as necessárias adaptações, as normas do Código de Processo Civil, adiante designado CPC.
Por força da referida norma, recorremos ao CPC, para aferir o que regula em relação às situações em que se verifica falta de indicação da causa de pedir e contradição entre o pedido e a causa de pedir na petição inicial.
Consta do CPC, isto na Subsecção VI, sobre nulidade dos actos, artigo 193.ºsobre ineptidão da petição inicial, no seu nº 1, que é nulo todo o processo
quando for inepta a petição inicial.
Continua dispondo o n.º 2 do referido artigo que diz-se inepta a petição inicial nas seguintes situações:
Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;Quando se cumulem pedidos substancialmente incompatíveis.
Do recurso efectuado ao CPC, mormente, no artigo 193.º, resultou que, isto nos termos das alíneas a) e b) do seu n.º 2, a consequência jurídica tanto da falta de indicação da causa de pedir como da contradição do pedido com a causa de pedir é a ineptidão da petição inicial.
No tocante à contradição entre pedido e causa de pedir, esta tem de se evidenciar entre o pedido, enquanto concreta pretensão jurídica formulada pelo autor, e a causa de pedir, enquanto facto ou factos jurídicos que se invocam para sustentar o efeito jurídico ou pedido, deduzido.
Pelo que há contradição entre o pedido e a causa de pedir quando o pedido não é corolário ou a consequência lógica da causa de pedir ou dos fundamentos em que assenta a pretensão do autor, do mesmo modo que, num silogismo, a conclusão deve ser a emanação lógica das premissas. Se, em vez disso, o pedido colidir com a causa de pedir, a ineptidão é manifesta.
Há cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis nas situações em que se verifica oposição entre os próprios pedidos.
Como exposto supra, no caso em concreto, a acção proposta teve por fundamento de facto ou causa de pedir o Decreto Presidencial nº276/20, de 23 de Outubro, que, à data da sua interposição, encontrava-se revogado.
A inexistência jurídica do Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro, que contém normas que impulsionaram e fundamentaram o interesse do requerente em interpor a acção, pressupõe a inexistência da causa de pedir.
Ademais, é possível aferir da petição inicial, e aqui ficou provado com a exposição ora feita, que o requerente com as razões de facto e de direito então apresentadas que constituíram a causa de pedir,pretendeu que se declarasse inconstitucional as normas constantes nos artigos 25.º com a epígrafe "Actividades e reuniões", bem como o artigo 29.º com a epígrafe "Ajuntamento na via pública", ambos do Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro, que estabelece as Medidas Excepcionais e Temporárias a Vigorar durante a Situação de Calamidade Pública declarada por força da COVID-19.
Todavia, e contraditoriamente, pediu que se declare inconstitucional, não só as normas constantes dos aludidos artigos que segundo o requerente restringem os direitos e liberdades fundamentais mas, também artigos da Lei n.º16/91, de 11 de Maio, Lei sobre o Direito de Reunião e Manifestação, que não tem ligação directa com o aludido Decreto Presidencial nem este, em caso algum, usou-a como norma habilitante.
Resultando assim não em uma situação de improcedência, isto pelo facto de a causa de pedir não ser bastante para alicerçar o pedido, mas em uma falta de nexo lógico entre o pedido e a causa de pedir.
Pelo que, dúvidas não sobram de que os factos até aqui apresentados, representam causas suficientes de nulidade por ineptidão da petição inicial fundada nas alíneas a} e b} do n.ºs 2 do artigo 193.ºdo C.P.C., aplicáveis por força do artigo 2.º da Lei n.º3/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Processo Constitucional.
Nos termos do n.º 2 do artigo 493.º, as excepções dilatórias obstam a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância
ou à remessa do processo para outro Tribunal.
A ineptidão é causa de nulidade de todo o processo e constitui excepção dilatória nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 494.º do CPC.
É sabido que o acesso à tutela jurisdicional efectiva vem consolidado como princípio fundamental no artigo 29.º da CRA; todavia, a garantia de acesso ao judiciário não tem carácter absoluto, podendo e devendo sofrer limitações, sob pena de inviabilizar sua própria efectivação.
De uma forma sintética, o interesse processual é um dos pressupostos da acção que tem por função possibilitar que somente tenham acesso ao judiciário as demandas que dele realmente necessitem, ou seja, de "retirar dos tribunais os litígios, cuja resolução por via judicial não é indispensável, nem necessária, e serve de freio, pois previne a dedução precipitada ou não reflectida de acções”. (Vide MARQUES, J.P. Remédio, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 407).
Sendo assim, ao ajuizar a acção, o autor deve expor na sua petição inicial os fundamentos fácticos e legais que deixem claro ao julgador a sua necessidade de vir a juízo, por não dispor de outros mecanismos hábeis para a obtenção do direito. Portanto, deve ser demonstrada uma "carência objectiva, justificada, razoável e actual de recorrer a juízo”.Além da necessidade, a doutrina refere que deve ser constatada a utilidade do provimento jurisdicional pleiteado. É, por assim dizer, "a aptidão objectiva do provimento jurisdicional requisitado em conferir alguma vantagem ou benefício juridicamente efectivo, segundo o sistema jurídico vigente”.
Verifica-se não haver interesse processual, sendo este um dos pressupostos processuais que, embora não esteja consagrado legalmente, a doutrina aceita a sua existência, vislumbrando-se na Lei algumas normas que se traduzem em manifestações desse pressuposto.
O interesse processual entende-se assim como a necessidade objectiva de o autor usar do processo; portanto, para que o autor possa mover uma acção deverá estar em uma situação em que objectivamente careça de tutela jurisdicional, ou seja, deve requerer a tutela jurisdicional quando se pretenda satisfazer uma necessidade justificada, razoável e fundada, o que não se verifica incasu.
O interesse processual releva-se essencialmente do lado do autor e a sua falta determina o indeferimento liminar da petição ou a absolvição do réu da instância, consoante o momento em que a falta for detectada.
Acolhendo o binómio necessidade-utilidade, e a título de direito comparado, o Tribunal da Relação de Lisboa já manifestou seu entendimento: "O interesse em agir consiste na necessidade e utilidade da demanda considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões invocadas e a sua verificação basta-se com a necessidade razoável do recurso à acção judicial".
O interesse de agir tem a função pública primordial de impedir que acções carentes do pressuposto tenham acesso aos tribunais.
Ao lado do interesse público, o referido pressuposto desempenha também a importante função de protecção dos interesses do réu, o qual não deve ser accionado judicialmente sem justa causa, ou seja, não poderá ser incomodado com uma acção judicial quando não lhe deu motivo.
Em Angola, o legislador não inseriu no CPC expressa previsão do interesse processual.
Todavia, tanto a doutrina como a jurisprudência maioritária classificam-no como um pressuposto processual, embora haja divergência sobre se seria um pressuposto relativo às partes ou ao objecto da demanda.
Acolhemos, pois, o entendimento de que o interesse processual deve ser considerado um dos casos de excepção dilatória inominada, prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 288.º do CPC. Por conseguinte, sendo o autor carente de interesse processual, deve o juiz absolver o réu da instância, podendo inclusive fazê-lo de ofício, conforme disposto no artigo 495º do CPC.
E, sequencialmente, foi publicado, no dia 20 de Novembro, o Decreto Presidencial n.º 298/20 - Medidas Excepcionais e Temporárias a Vigorar Durante a Situação de Calamidade Pública Declarada Por Força da COVID-19, que no seu artigo 41.º revogou expressamente o Decreto Presidencial n.º 276/20, de 25 de Maio.
Assim, 19 dias antes da interposição da referida acção já não existia fundamento, por inexistência da norma.
Constata-se, deste modo, que, no caso em concreto, o artigo 3.º sob a epígrafe "Vigência e aplicação" do Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro, dispõe que "as medidas nele previstas vigoram até ao dia 22 de Novembro de 2020", pelo que aquando da interposição da presente acção, o Decreto Presidencial e as suas normas que constituem fundamento da presente acção já se encontravam revogadas pelo artigo 41.º Decreto Presidencial n.º 298/20, de 20 de Novembro, sobre Medidas Excepcionais e Temporárias a Vigorar Durante a Situação de Calamidade Pública Declarada Por Força da COVID-19.
Outrossim, dispõe o artigo 28.º da Lei do Processo Constitucional que “o pedido de apreciação da constitucionalidade prevista no n.º1 do artigo 230.º da Constituição da República de Angola não está sujeito a prazo, podendo ser apresentado a todo o tempo, enquanto a norma se mantiver em vigor'.
Nesta ordem de ideias, os fundamentos fácticos e legais do requerente demonstram uma carência não actual de recorrer a juízo, pelo que a
utilidade do provimento jurisdicional pleiteado não é constante, ou seja, já não existe, o que significa que não existe interesse processual por parte do requerente.
Sendo o interesse processual um dos casos de excepção dilatória inominada, prevista no artigo 288.º, n.º 1, e) do CPC. Por conseguinte, sendo o autor carente de interesse processual, deve o juiz absolver o réu da instância; inclusive ex-ofício, conforme o disposto no artigo 495.º do CPC.
B. POR IMPUGNAÇÃO:
A principal inconstitucionalidade alegada pelo requerente está ligada aos artigos 25.ºe 29.º doDecreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro.
Alega o requerente que as normas são inconstitucionais: (i) por violarem as normas do artigo 28.º e 57.º da CRA - restrição não autorizada a direitos fundamentais - e, (ii) por violarem as normas das alíneas b) e c) do artigo 164.º da CRA, violação da reserva de lei formal da Assembleia Nacional.
Nenhuma das razões apresentadas pelo requerente pode proceder, pelas razões que a seguir aduzimos.
As medidas fixadas no Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro, foram tomadas ao abrigo da declaração de situação de calamidade pública determinadas através do Decreto Presidencial n.º 142/20, de 25 de Maio.
A possibilidade de declaração da situação de calamidade pública e os efeitos daí decorrentes, resultam de autorização legal expressa nos termos das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 2.ºe da alínea c) do n.º 2 do artigo 11.º da Lei n.º28/03, de 7 de Novembro, com a redacção dada pela Lei n.º14/20, de 22 de Maio.
Ora, é esta Lei formal da Assembleia Nacional, aliás em conformidade com grande parte da legislação em direito comparado e em direito internacional (vide na Itália o "Código de Protecção Civil" e em Portugal a "Lei de Bases da Protecção Civil"), que confere ao Titular do Poder Executivo, a faculdade de, uma vez reconhecido o perigo ou a iminência de perigo de ocorrência de situação que possa pôr em causa de modo grave a convivência social, determinar um conjunto de medidas de natureza administrativa, ablativas ou não, que incidam sobre os direitos e bens dos cidadãos.
Assim, é num primeiro momento através de Lei Formal da Assembleia Nacional, que se procede a autorização para o condicionamento de alguns direitos fundamentais, obedecendo a disciplina do disposto nas alíneas b) e c) do artigo 164.ºda CRA.
Como expresso na reserva de administração que decorre da interpretação do princípio da separação de poderes, presente no n.º 1 do artigo 2.º e no n.º 3 do artigo 105.º da CRA, e por uma impossibilidade óbvia de previsão absoluta por parte do legislador de todos os modos de condicionamento do exercício do direito em casos específicos, a Lei optou por uma redacção aberta no artigo 4.º Lei da Protecção Civil, deixando a normal margem de discricionariedade administrativa para que o Presidente da República proceda, nos casos específicos, ao condicionamento do exercício dos direitos que se revelem necessários para a melhor gestão da situação de calamidade declarada.
Com efeito, verifica-se que não é possível extrair daí uma qualquer inconstitucionalidade por "violação de reserva de lei formal" uma vez que, o Decreto e as medidas nele constantes são emitidos com base em autorização expressa de Lei da Assembleia Nacional.
Uma vez resolvida a questão da reserva de Lei Formal, cumpre saber se o conteúdo dos artigos 25.ºe 29.º do decreto sub judice são materialmente inconstitucionais.
Da alegada inconstitucionalidade material dos artigos 25.º e 29.º do Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro.
Alega o requerente a inconstitucionalidade dos artigos 25.º e 29.º do citado Decreto Presidencial, resultando algo confusa a sua argumentacão uma vez que não se percebe se os artigos são inconstitucionais por violação do "princípio daconstitucionalidade", presente nos artigos 6.º e 226.º da CRA ou se são inconstitucionais por ser inconstitucional a Lei n.º 16/91, de 11 de Maio, sobre o Direito de Reunião e de Manifestação.
Quanto ao artigo 25.º, não se vislumbra qualquer tipo de violação ao princípio da constitucionalidade, uma vez que tudo que o artigo faz é regular o exercício do direito de reunião nos casos em que exista risco de transmissão do vírus.
Ao exigir, no seu n.º 3, que as reuniões, em espaço fechado, que ultrapassem o limite de 150 pessoas fiquem sujeitas "à autorização prévia das autoridades sanitárias" mais não faz do que harmonizar o exercício do direito de reunião com as necessárias medidas de protecção colectiva exigidas em períodos de pandemia.
Simplesmente permitir que em espaços fechados, e por isso mais susceptíveis à circulação do vírus, se realizassem reuniões sem qualquer limite de pessoas seria descurar totalmente do papel do Estado, enquanto garante da segurança colectiva,conforme consagrado no artigo 21.º da CRA.
O direito de reunião continua a poder ser plenamente exercido - não valendo aqui as alegações feitas pelo requerente sobre a "violação do conteúdo essencial do direito"- apenas condicionado, em alguns casos, à verificação das condições ideais de segurança, pelo que é descabido falar-se em inconstitucionalidade de qualquer tipo.
Quanto ao artigo 29.º, sob a epígrafe "ajuntamentos na via pública", e apesar de também pouco fundamentado o pedido da requerente, parece-nos estar directamente associado à questão das manifestações na via pública.
Importa, a título inicial, referir que a norma está construída de forma abrangente implicando toda e qualquer concentração na via pública, susceptível de aumentar significativamente o risco de contágio da COVID- 19, não sendo admissível interpretação que a restrinja ao âmbito das manifestações públicas.
Em segundo lugar, e como já adiantado acima, a norma foi emitida no uso da competência conferida pela alínea d) do número 1 do artigo 4.º da Lei nº 28/03, com a redacção dada pela Lei n.º 14/20, que permite que em casos de declaração de situação de calamidade pública possam ser tomadas medidas administrativas que incidam sobre "as actividades que envolvem a participação massiva de cidadãos".Qual será então a possível causa de inconstitucionalidade do preceituado no artigo 29.º alegada pelo requerente?
Cumpre então verificar se entre a autorização constitucional e legal para condicionar direitos e a norma constante do Decreto Presidencial, existirá alguma desconformidade.
Note-se que está hoje assente na doutrina jurídica que a maior parte das normas de direitos fundamentais, possuem a estrutura normativa de princípios (vide Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, 2.º Edição, São Paulo, 2009, pp. 90 e ss.), significando isto que elas possuem uma regulação variável, reportando-se a sua previsão a condutasindeterminadas, mas determináveis estabelecendo assim uma abertura na sua configuração que será densificada consoante as circunstâncias do caso concreto.
Ou seja,
Elas não são configuradas constitucionalmente como absolutas, permitindo a Constituição que, ou via legislativa ou via judicial, se proceda a uma harmonização do seu conteúdo com o conteúdo de outros direitos fundamentais ou outros bens jurídicos dignos de protecção.
Também é o caso para a norma do artigo 47.ºda CRA, agora subjudice em que claramente se tipificou, "in fine", que o seu exercício é feito nos termos da Lei.
Ora, essa redacção específica do enunciado normativo atribui desde logo uma competência genérica ao poder legislativo (Assembleia Nacional) para a intervenção no modo de exercício do direito fundamental à manifestação.
Essa intervenção condicionadora é justificada pela existência de outros direitos ou bens que no caso concreto possam entrar em conflito com o exercício do direito à manifestação.
É mister verificar que a própria Legislação internacional, e mais especificamente o artigo 29.ºda Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), recebida na ordem jurídica angolana pela cláusula de abertura fixada no artigo 26ºda CRA, estabelece expressamente que “a fim de satisfazer as justas exigências da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática" é possível limitar legalmente os direitos, ou seja, fica firmado que os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados, não abrangendo todas as situações, formas ou modos pensáveis de exercício.
Significa isto que os direitos conferidos pela constituição estão sujeitos sempre a uma reserva geral de ponderação, ou seja, em certos casos, será possível, por conflitualidade de bens, comprimir o seu espaço normal de acção com vista ao exercício de outros direitos desde que não se viole o chamado conteúdo essencial, conforme a disciplina do n.º 2 do artigo 57.º da CRA "in fine".
Ora, como é de notar, foi o que aconteceu no Decreto referido, em que, uma vez autorizada por Lei da Assembleia Nacional a Declaração da Situação de Calamidade Pública por força de pandemia cientificamente comprovada, o Presidente da República estabeleceu medidas específicas para o condicionamento de alguns direitos com vista à salvaguarda da saúde pública.
Na norma em questão, e no pressuposto comprovado pela Organização Mundial da Saúde de que os ajuntamentos físicos são susceptíveis de amplificar a hipótese de transmissão do vírus (vide documento da OMS: "Key planning recommendations for mass gatherings inthe context ofCOVID-19, Interimguidance", de 29 de Maio de 2020), procedeu-se a um condicionamento do exercício do direito específico: no caso, podem ser realizados ajuntamentos, neles incluídas as manifestações, conquanto eles obedeçam a critérios específicos sendo que um deles é o número de pessoas por grupo.
E norma diferente não poderia ser estabelecida porque, basicamente, risco de concentração de pessoas cm situação de pandemia por doença facilmente transmissível decorre da possibilidade do patógeno sertransmitido de uma pessoa infectada para uma pessoa não infectada, o que pode ocorrer de diferentes maneiras, mas para a situação de ajuntamentos, a transmissão pela respiração e pelas membranas mucosas provavelmente representa o perigo mais comum, sendo que o método mais eficaz e menos invasivo é a utilização de máscara facial e a limitação de pessoas juntas num mesmo espaço com o devido distanciamento físico.
Assim sendo, ao lado do direito à livre manifestação de ideias existe o dever do estado de promover e proteger a saúde pública, o que foi feito através da harmonização dos dois bens em causa.
Justificada que está a norma do ponto de vista da protecção da saúde pública, resta a pergunta de saber se da maneira que está configurada ela impede o exercício do direito à livre manifestação pública de ideias e contestação, ou seja, se a norma do artigo 29.º do Decreto Presidencial viola o conteúdo do direito fundamental previsto no artigo 47.º CRA?
De novo, a resposta é de sentido negativo.
Repare-se que o direito à manifestação, do modo que é configurado pela Constituição, não é um "direito colectivo" que tenha de ser exercido necessariamente em grupos: a livre expressão pública das ideias já garante o exercício pleno do direito à manifestação ainda que feita individualmente.
Neste pressuposto, o Decreto Presidencial procedeu à regulamentação do exercício deste direito, nas condições específicas da situação de calamidade, por tempo determinado e sustentado numa situação de facto, sendo possível o livre exercício da expressão pública de ideias ou contestação, conquanto seja feito por grupos de 5 pessoas, separados em distância razoável insusceptível de causar contaminação em massa.
Nestes termos,não é possível extrair daqui uma restrição injustificada, desproporcional, mas sim um mero condicionamento temporário e quematerialmente não impede o exercício do direito.
De resto, essa noção de condicionamento do exercício de direitos por limites imanentes decorre do modo próprio como a CRA estabelece os direitos fundamentais: eles devem ser exercidos "nos termos da Lei". É a redacção expressa do n.º1 do artigo 47.ºque diz que o direito a manifestação é garantido a todos "nos termos da lei".
A lei, como demonstrado acima, permite que nos casos de declaração de situação de calamidade o Titular do Poder Executivo possa condicionar o exercício de certos direitos com vista a defesa das condições gerais da vida em sociedade, e desde que sejam proporcionais para a garantia dos direitos que visam proteger.
Por estas razões e por não se vislumbrar qualquer impedimento ao direito previsto no artigo 47.º e que possa violar o seu conteúdo essencial, sendo que a possibilidade de condicionamento está prevista na Lei nº 28/03, com a redacção dada pela Lei nº 14/20, as normas do Decreto Presidencial em análise devem ser constitucionais por decorrerem de lei e por materialmente garantirem o respeito pelos direitos, liberdades e garantias e serem conformes ao princípio da proporcionalidade.
C. DO PRECEDENTE CONSTITUCIONAL
O precedente constitucional é entendido como a decisão judicial tomada em um caso concreto, que pode servir como exemplo para outros julgamentos similares, ou seja, um precedente constitucional é qualquer decisão do Tribunal Constitucional que venha a ser utilizado como fundamento de outra decisão judicial a ser proferida em um processo posterior.
Existe na ordem jurídica constitucional angolana, na jurisprudência constitucional, um precedente judicial do Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 123/2010, do Processo n.º162/10 - recurso ordinário de inconstitucionalidade, que em situação análoga ao caso sub judice os Juízes Conselheiros, negaram procedência à acção pelo facto de a norma referenciada, já não estar a vigorar e, portanto, ser inexistente na ordem jurídica angolana.”
Assim, o Requerido pugna pelo não conhecimento do mérito e, consequentemente, o Tribunal Constitucional:
Julgue improcedente a acção ora formulada por ineptidão da petição inicial fundada nas alíneas a) e b) do nºs 2 do artigo 193º do CPC, e acto contínuo, absolva o requerido da instância nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 288.º e nºs 2 do artigo 493º, ambos do CPC.
Se não for este o entendimento, pede na mesma que seja o pedido do requerente julgado improcedente por falta do pressuposto processual interesse processual e que seja o requerido absolvido da instância, pois, o interesse processual, configura um dos casos de excepção dilatória inominada, prevista na alínea e} do n.º1 artigo 288.º, do CPC.
Se ainda assim não for entendido, se absolva o requerido da instância ou se declare extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 28.º, in fine, da Lei nº. 3/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Processo Constitucional, conjugado com a al. e) do artigo 287.º do CPC, dado o facto de o Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro já tivera sido expressamente revogado à data da propositura da acção.
Ou que, se não for também este o entendimento, que não declare inconstitucionais os artigos 25.º e 29.º do Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro, por estarem em conformidade com a CRA.”
B. A REQUERIDA, ASSEMBLEIA NACIONAL
“O Grupo Parlamentar da CASA-CE intentou junto do Tribunal Constitucional, um recurso de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade da Lei n.º16/91, de 11 de Maio, Lei sobre o Direito de Reunião e de Manifestação, nos termos da alínea c) do n.º2 do artigo 230.º da Constituição da República de Angola, e do artigo 27.º da Lei do Processo Constitucional, com a redacção que lhe é dada pelo artigo 8.º da Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro.
O pedido de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade assenta no pressuposto do solicitante acreditar que o n.º2 do artigo 4.º e o n.º2 do artigo 5.º da Lei n.º 16/91, de 11 de Maio, Lei sobre o Direito de Reunião e de Manifestação, são inconstitucionais, por limitar direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.
Entende o Requerente que a proibição de realização de reuniões ou manifestações com ocupação não autorizada de locais abertos ao público ou particulares, bem como a previsão dos cortejos e os desfiles não poderem ter lugar antes das 19:00 nos dias úteis e antes das 13h aos sábados, violam os limites formais, materiais, incluindo procedimentais das leis restritivas, limitativas ou suspensivas da titularidade e exercícios de direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na Constituição da República de Angola.
O direito de reunião e de manifestação constitui nas sociedades democráticas um dos instrumentos mais potentes da afirmação do pluralismo e do asseguramento da liberdade de expressão às minorias.
O direito à manifestação constitui um veículo de expressão colectiva de pensamento, mensagens e convicções, assumindo na sua dupla natureza de feixe garantido de intervenções individuais em conjunto e de subsistema normativo de garantia, simultaneamente conduta comunicativa e estruturacomunicativa.
Como liberdade de expressão colectiva, a manifestação constitui, na sua vertenteobjectiva, enquanto norma, e subjectiva, enquanto direito individual, uma peça do processo democrático de exercício de liberdades comunicativas.
A Assembleia Nocional consagrou o direito de reunião e de manifestação no ordenamento jurídico angolano, i.e. na Lei Constitucional de 1991 e concomitantemente, na Lei nº 16/91, de 11 de Maio, por considerar ser um mecanismo de expressão do pensamento e manifestação da liberdade de expressão.
A Assembleia Nacional constituinte, atendendo a importância do direito à manifestação, enquanto instituto jurídico indispensável à salvaguarda da dignidade da pessoa humana, consagrou-o na Constituição da República de Angola de 2010, no artigo 47.º, dando uma perspectiva diferente, no que concerne ao horário e aos pressupostos para a sua realização, comparativamente à Lei n.º 16/91, de 11 de Maio.
Fê-lo na convicção de que a sujeição do direito à manifestação à autorização significaria uma restrição do direito de expressão do pensamento e, igualmente, de direitos fundamentais, o que representaria um retrocesso à promoção da dignidade da pessoa humana.
O n.º 2 do artigo 4.º e o n.º 2 do artigo 5.º da Lei sobre o Direito de Reunião e de Manifestação foram concebidos num contexto em que vigorava a Lei n.º 12/91, num sistema diferente ao que se tem hoje.
À data da sua concepção, os preceitos legais invocados pelo proponente obedeciam a normas e princípios materiais da Lei Constitucional.
A Constituição de 2010, ao estabelecer um novo paradigma para o exercício do direito à manifestação, afastou por completo a aplicação da Lei n.º 16/91, de 11 de Maio, por força do princípio da hierarquia normativa, nas matérias que colidem com ela.
Esta interpretação decorre do artigo 239.º da Constituição da República de Angola que consagra expressamente que: "O direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição”.
Assim, as normas cuja inconstitucionalidade se invoca, foram revogadas pela Constituição de 2010.
É em cumprimento das disposições da Constituição que as autoridades têm permitido que, na praxis, as manifestações tenham lugar fora dos marcos plasmados na Lei sobre o Direito de Reunião e de Manifestação.
Do ponto de vista material, a existência daquelas normas, aliás revogadas, não tem obstado o livre exercício do direito de reunião e de manifestação, na medida em que os cidadãos não se baseiam nelas para o exercício dos seus direitos nem as autoridades se baseiam nelas no exercício do seu poder.
Com o dito no articulado acima, fica expresso o pronunciamento da Assembleia Nacional, com a convicção de que a inconstitucionalidade invocada é superveniente e, por causa disso, as normas em causa, porque contrárias à ela, foram revogadas pela Constituição de 2010, por força do estabelecido no seu artigo 239.º.”
Assim a Requerida pugna pela improcedência do recurso.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer da solicitação requerida, nos termos das disposições conjugadas don.º 1 do artigo 230.º da CRA eartigo 19.ºda Lei nº 3/08 de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
O Requerente, GRUPO PARLAMENTAR DA CASA-CE, tem legitimidade para interpor a presente acção de Fiscalização Abstracta Sucessiva, nos termos conjugados da alínea c) do n.º 2 do artigo 230.º da CRA e alínea c) do artigo 27.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é apreciar se o n.º 3 do artigo 25.º e n.º 1 a 4 do artigo, ambos do Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro e o n.º 2 do artigo 4.º e n.º 2 do artigo 5.º, ambos da Lei n.º 16/91, de 11 de Maio, estão em desconformidade com o n.º 1 do artigo 47.º e n.º 2 do artigo 226.º, ambos da CRA, ou com qualquer outo princípio, direito, liberdade ou garantia previstos na Constituição.
V. APRECIANDO
A. DECRETO PRESIDENCIAL N.º 276/20, DE 23 DE OUTUBRO – SOBRE AS MEDIDAS EXCEPCIONAIS E TEMPORÁRIAS A VIGORAR DURANTE A SITUAÇÃO DE CALAMIDADE.
Esta questão enquadra-se nas muitas que se levantam nos mais diversos Estados de Direito quanto às medidas de emergência sanitária adoptadas pelas diversas autoridades de saúde pública na luta contra a pandemia da COVID 19.
No caso dos normativos cuja inconstitucionalidade se suscita, esgotam-se na limitação do número de pessoas que devem integrar uma reunião e autorizações prévias sempre que se pretenda exceder o permitido, bem como os ajuntamentos na via pública e respectiva multa, ou seja, com o direito constitucionalmente garantido da liberdade de reunião e de manifestação.
Discute-se aqui da conformidade constitucional orgânico-formal da norma impugnada, porquantoo artigo 47.º da CRA diz que apenas se deve informar da realização dessas reuniões (e não um pedido de autorização prévia) e consagra a liberdade de reunião.
Porém, estas medidas restritivas e resultantes da declaração do estado de calamidade, são sempre temporárias, devendo serem renovadas por períodos sucessivos, conforme determinam os normativos que regulam estes regimes excepcionais para melhor protecção dos direitos suprimidos pela necessidade de salvaguardar um bem maior como a saúde pública.
Assim que, datando o diploma de 23/10/20 para vigorar até 22/11/20, como expressamente estatui o seu artigo 3.º, quando se intentou o presente recurso de fiscalização sucessiva, a 9 de Dezembro do mesmo ano, já o mesmo não estava em vigor, perguntando-se, se não estaremos perante uma inutilidade superveniente da lide, tal como, de resto, refere o Requerido, Presidente da República.
A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, enquanto causas determinantes da extinção da instância - alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil (C.P.C.) resultam de circunstâncias acidentais que, na sua pendência conduzem ao desinteresse na solução do litígio, induzindo a que a pretensão do autor não possa ou não deva manter-se: seja, naqueles casos, pelo desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, seja, nestes, pela sua alcançada satisfação fora do esquema da providência pretendida.
A inutilidade da prossecução da lide verificar-se-á, quando seja patente a insubsistência de qualquer interesse, benefício ou vantagem, juridicamente consistentes, dos incluídos na tutela que se visou atingir ou assegurar com a acção judicial intentada.
Quer isto dizer que surge quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil.
Na situação em análise, os normativos postos em causa já não estão em vigor desde Novembro, pelo que, numa análise mais precipitada, se poderia concluir por uma inutilidade.
Mas, não é bem assim.
Isto porque, consideramos que os demais diplomas que se sucederam e sucedem mensalmente até que o estado de calamidade pública cesse, mantêm estas normas e outras, pelo que há como que uma renovação desses normativos e não propriamente uma revogação.
Assim, naturalmente que se mantém o interesse numa decisão e o seu efeito útil.
Vem invocar o Requerido, Presidente da República,em resposta ao recurso, o art.º 28.º da LPC de onde resulta expressamente que este tipo de apreciação da constitucionalidade não tem prazo, podendo ser apreciada a todo o tempo enquanto a norma se mantiver em vigor, pelo que, na situação concreta quando o mesmo foi apresentado já as normas tinham sido revogadas.
Neste concreto, valem os argumentos apresentados para a inutilidade quanto à renovação das normas. Como sabemos, os diplomas que regem estas medidas têm obrigatoriamente de serem reapreciados de mês a mês e, relativamente à maioria das normas, onde se incluem estas cuja constitucionalidade foi suscitada, não deixam de estar em vigor porque sucessivamente renovadas.
Nessa medida e sem necessidade de outros considerandos,entendemos que o recurso foi apresentado em prazo.
De igual modo, não existe contradição entre pedido e causa de pedir, na medida em que estão em causa um Decreto Presidencial e uma lei emanada da AssembleiaNacional e os pedidos só são coincidentes porque o Requerente suscita a constitucionalidade de ambos.
Quanto à inutilidade invocada pelo Requerente remetemos para o acima exposto.
Aqui chegados, veremos então da razão da Requerente quanto aos dois normativos que, como referimos inicialmente, se prendem com actividades, reuniões e ajuntamentos na via pública.
O País, como outros a nível mundial, desde 25 de Maio de 2020 que vive num estado de calamidade pública, decretado pelo Presidente da República através do Decreto Presidencial n.º 142/20, decorrente da situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e da doença COVID-19 que justificaram os estados de emergência que se viveram de Março a Maio de 2020 e encontra sustentação legal na Lei n.º 28/03, de 7 de Novembro, com a redacção dada pela Lei n.º 14/20, de 22 de Maio, Lei formal da Assembleia Nacional que confere ao titular do Poder Executivo a faculdade de, reconhecido o perigo ou iminência de perigo da ocorrência de situação que possa pôr em causa de modo grave a convivência social, determinar um conjunto de medidas de natureza administrativa que incidam sobre direitos e bens dos cidadãos, mormente, as adoptadas nesta crise sanitária; na Lei de Protecção Civil, aprovada pela Lei n.º 28/03, de 7 de Novembro, e recentemente alterada pela Lei n.º 14/20, de 22 de Maio.
Nos termos do artigo 4.º da Lei de Protecção Civil, a declaração da situação de calamidade pública pode estabelecer medidas de natureza administrativa que podem incidir sobre o funcionamento dos Órgãos da Administração directa e indirecta do Estado; o exercício da actividade comercial, industrial e o acesso a bens e serviços; o funcionamento dos mercados; as actividades que envolvem a participação massiva de cidadãos, enquanto existir o risco de contágio ou de insegurança dos cidadãos; a protecção de cidadãos em situação de vulnerabilidade; o funcionamento dos transportes colectivos; o funcionamento de creches, infantários, instituições de ensino, lares da terceira idade e lares de acolhimento; o funcionamento do tráfego rodoviário, aéreo, marítimo, fluvial e ferroviário; aprestação de serviços de saúde; a realização de espectáculos, actividades desportivas, culturais e de lazer; o funcionamento dos locais de culto, enquanto existir risco de contágio ou de insegurança dos cidadãos; a mobilização de voluntários; a defesa e controlo sanitário das fronteiras; a prestação compulsiva de cuidados individuais de saúde, com ou sem internamento, no interesse da saúde pública e a definição de cordões sanitários.
Também, os artigos 5.º e 19.º do Regulamento Sanitário Nacional, aprovado pela Lei n.º 5/87, de 23 de Fevereiro, complementado pelo Regulamento Sanitário Internacional-2005, recebido na ordem jurídica angolana pela Assembleia Nacional, através da Resolução n.º 32/08, de 1 de Setembro, legitimam a adopção de medidas adicionais que se configurem indispensáveis para a salvaguarda da saúde e segurança da população.
Dito isto, este Tribunal conclui que a limitação do número de pessoas em reuniões e actividades realizadas em espaços fechados, bem como os ajuntamentos mais do que um número determinado de pessoas nas vias públicas, respectivas sanções e enquadramento legal, encontram previsão legal expressa, quer na Constituição quer nas descritas leis, bem como, nas directivas da Organização Mundial da Saúde (OMS) de forma a evitar a disseminação da doença.
Porém, as medidas a adoptar no âmbito do estado de calamidade pública devem respeitar o princípio da proporcionalidade do agir público, isto é, serem necessárias e adequadas à ameaça que visam combater ou evitar, não podendo, em caso algum, colocar em causa direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como o artigo 58.º da Constituição da República de Angola.
Como se deve então gerir estes direitos de molde a assegurar essa tal proporcionalidade?
Comecemos por referir que os direitos fundamentais não são direitos ilimitados ou ilimitáveis, na medida em que a vida em sociedade por vezes exige algumas restrições para protecção dos direitos fundamentais de outras pessoas ou garantir bens jurídicos de relevo específico como a segurança e ordem públicas, apesar de isso, por vezes, nos poder levar a considerar estar-se perante um estado totalitário.
O mesmo é dizer que os direitos fundamentais podem ser limitados para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos que com eles colidam, mediante a harmonização entre uns e outros, o que importa sempre um sacrifício, total ou parcial, de um ou mais princípios.
A limitação aqui dos direitos de reunião e manifestação, surge da necessidade de protecção em Angola e no mundo, de um bem superior que é a saúde pública e, no limite, o próprio direito à vida que foram de modo violento postos em causa,sem dó nem piedade,com o surgimento desta pandemia da COVID 19 que tem causado um elevado número de mortos e perigado a saúde de milhões de pessoas.
Ora, estando confirmado pela OMS e diversos estudos médicos que este vírus silencioso se propaga através do contacto, quer porque teleologicamente a finalidade de evitar o contágio impõe distanciamento generalizado– como é do domínio público – quer porque há registo que noutras situações de pandemia ser recorrente a adopção de medidas de distanciamento físico, é perfeitamente natural que os diversos Estados tivessem de adoptar medidas que impedissem essa proximidade entre pessoas.
Estas medidas, onde estão incluídas as restrições impostas pelas normas cuja constitucionalidade se suscita, são adequadas para a contenção e mitigação do vírus e indispensáveis ao fim pretendido (evitar o contágio) e são racionais porque as vantagens (um menor número de contágio já devidamente comprovado em diversos Estados quando impõem um confinamento parcial ou mesmo total) são, na situação em que se vive, infinitamente maiores que as desvantagens que, esperamos, sejam temporárias e muito em breve se possa voltar a ter a liberdade perdida com esta e outras restrições a esses direitos fundamentais.
Com efeito, só este quadro legislativo é adequado a um Estado de Direito de emergência sanitária ao possibilitar que se tomem medidas administrativas compagináveis com a dinâmica de uma situação de crise de saúde pública como a que se vive e que a experiência tem demonstrado serem as ajustadas.
As medidas de proibição de ajuntamentos e de limitação do número de pessoas em espaços fechados que vem impugnada nos autos, encontram-se a coberto de toda esta legislação e jurídico-constitucionalmente enquadrada de forma suficiente e adequada ao Estado de Direito, no quadro de emergência sanitária que se vive.
Não procede, por essa razão, o argumento da inconstitucionalidade orgânica e formal das medidas adoptadas nas normas do Decreto Presidencial n.º 276/20, de 23 de Outubro.
Neste concreto, o Requerente vem suscitar a fiscalização da constitucionalidade dos artigos 4.º, n.º 2 e 5.º, n.º 2, ambos da Lei n.º 16/91, de 11 de Maio, na medida em que ao imporem que a realização de reuniões em determinado horário (antes das 19 horas nos dias úteis e 13 horas aos fins de semana) violam os limites formais, materiais, incluindo procedimentais das leis restritivas da titularidade e exercícios de direitos, liberdades e garantias fundamentais consagradas na CRA.
A Requerida Assembleia Nacional referiu e bem que a mencionada Lei foi elaborada no contexto da Lei Constitucional de 1991, sendo que na Constituição de 2010, no seu artigo 47.º, consagra expressamente os direitos à manifestação e à reunião, dando uma perspectiva diferente no que concerne aos horários e pressupostos para a sua realização, comparativamente à citada Lei n.º 16/91.
Com efeito, a Constituição, ao estabelecer um novo paradigma para o exercício do direito à manifestação, afastou a aplicação daquela lei, por força do princípio da hierarquia normativa, nas matérias que com ela colidem.
De resto, acrescenta, tal interpretação resulta do artigo 239.º da CRA que expressamente consagra: “ O direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se desde que não seja contrário à Constituição”.
Assim, a referida Requerida conclui que as normas cuja inconstitucionalidade se invoca, já foram revogadas pela Constituição 2010.
Embora, nos termos do artigo 28.º da LPC citado pelo Requerente, o pedido de apreciação da constitucionalidade prevista nos artigos 230.º e 231.º da Constituição não esteja sujeito a prazo, “podendo ser apresentado a todo o tempo”, o certo é que é a própria norma quem diz,in fine, que isso só será possível “enquanto a norma se mantiver em vigor”.
Assim, não estando em vigor as normas cuja apreciação de constitucionalidade se requere, o pedido é manifestamente extemporâneo.
Ademais, valem “mutatis mutandis” os argumentos expostos quando se abordou da inutilidade superveniente da lide, na medida em que o efeito pretendido já foi alcançado – ou seja, as normas deixaram de vigorar porque desconformes à actual Constituição.
Assim, concluindo-se pela inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287.º do C.P.C. terá a Requerida Assembleia Nacional de ser absolvida da Instância.
DECIDINDO
Nestes termos, tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda,aos 26 de Maio de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima d’A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor (Relator)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata