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ACÓRDÃO N.º 684/2021

 PROCESSO N.º 817-A/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

 Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 I. RELATÓRIO 

Bom Preço Participações, Lda., melhor identificada nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão de 28 de Maio de 2018, da 1ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 145/15, que negou provimento ao recurso de apelação e confirmou a decisão recorrida que condenou a ora Recorrente no pagamento de uma dívida fiscal no montante de 29 293 828,00 (vinte e nove milhões, duzentos e noventa e três mil e oitocentos e vinte e oito kwanzas).

A Recorrente, tendo sido notificada para apresentar alegações de recurso, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), asseverou, no essencial, que:

  1. O Tribunal Supremo confirmou a decisão do tribunal a quo que condenou a Recorrente no pagamento de uma dívida fiscal no valor de 29 293 828,00 (vinte e nove milhões, duzentos e noventa e três mil e oitocentos e vinte e oito Kwanzas), mesmo depois desta ter demonstrado e suscitado a prescrição da referida dívida;
  2. O Tribunal Supremo confirmou a referida decisão porque entendeu que apesar da dívida estar prescrita tal facto não pode ser considerado, na medida em que a Recorrente admitiu ter sido notificada para pagar a referida dívida, sem que, contudo, a tivesse pago, vindo, posteriormente, a alegar a sua prescrição;
  3. Espanta-se com o facto de na decisão da qual recorre que em sede de questão prévia a fls. 8 a 9, os Juízes Conselheiros da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, afirmam que da decisão recorrida tal como resulta dos autos, não houve julgamento dos factos;
  4. Os Juízes Conselheiros da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo concluíram que a decisão tomada pelo Tribunal a quo, de que se recorreu, não foi fundamentada e, por conseguinte, não houve julgamento de facto;
  5. Estabelece o n.º 1 do artigo 158.º do Código de Processo Civil que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas;
  6. Estabelece a alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto;
  7. Os Juízes da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo ao tomarem conhecimento de que a decisão recorrida foi tomada à margem da lei, porque não fundamentada de facto, deveriam declarar nula a decisão ao invés de ter, ainda assim, confirmado a mesma decisão;
  8. Ao ter confirmado a decisão recorrida, apesar da mesma não estar fundamentada como os Venerandos Juízes afirmam e, portanto, nula, a própria decisão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro é ilegal e inconstitucional, por validar uma decisão (sentença) nula, o que constitui uma violação ao disposto no n.º 1 do artigo 177.º da CRA.
  9. Os actos e omissões fiscais que constituem infracções são sancionadas com multas ou com prisão e, por isso, o direito penal é chamado a intervir, desde logo com a imposição da observância dos grandes princípios que norteiam o direito penal, dos quais destacamos o princípio do inquisitório;
  10. Os Juízes da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo ao terem decidido reconfirmar a decisão do Tribunal a quo mesmo constatando haver falta de clareza na apreciação dos factos, violaram o princípio da verdade material bem como o princípio do in dubio pro reo que encontra amparo constitucional no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, sendo que a decisão recorrida deve ser revogada, porque é inconstitucional;
  11. Em matéria fiscal, sobretudo, naquelas em que se sancionam condutas com multas ou prisão, os princípios do direito penal são chamados a intervir, pelo que a analogia só é admissível se conferir mais direitos à pessoa e, no caso, ao contribuinte;
  12. No caso vertente, o Tribunal Supremo afirma que a prescrição da dívida suscitada pela Recorrente não pode proceder, na medida em que agiu de má-fé, facto que interrompeu a prescrição, nos termos do artigo 334.º do C.C., ou seja, socorreu-se da analogia para fundamentar a sua decisão, mesmo tal analogia significando restrição de direitos do contribuinte ora Recorrente;
  13. Nos termos do n.º 1 do artigo 57.º da CRA a restrição de uma garantia deve constar da Constituição da República de Angola de forma expressa, o que desde logo afasta a interpretação analógica quando se trata de restringir direitos e garantias dos contribuintes;
  14. Concluiu que a dívida não está prescrita porque foi interrompida pelo suposto exercício abusivo de um direito, para além de violar o disposto no n.º 1 do artigo 57.º da CRA, viola os princípios constitucionais da segurança e certeza jurídica e, concomitantemente, o princípio constitucional da confiança.

A Recorrente termina rogando que seja declarada a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido e, em consequência, que se dê provimento ao reconhecimento da prescrição da dívida fiscal.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola

Ademais, foi observado o requisito do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, nos termos do parágrafo único do artigo 49.º da LPC.

Deste modo, tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

III. LEGITIMIDADE

A Recorrente tendo interposto no Tribunal Supremo, um recurso ordinário de impugnação de acto administrativo, viu o seu pedido ser indeferido.

Pelo que tem, assim, legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme prevê a alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao estabelecer a legitimidade de recorrer extraordinariamente para “…as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.  

 IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar a constitucionalidade do Acórdão datado de 28 de Maio de 2018, prolactado pela 1ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que negou provimento ao recurso de apelação e confirmou a decisão recorrida.

V. APRECIANDO

Bom Preço Participações, Lda., ora Recorrente, tendo sido notificada, pelo Serviço Nacional das Alfândegas por via de edital, através de publicação no Jornal de Angola, cuja última publicação é datada de 30 de Maio de 2013, para pagamento de uma dívida aduaneira, devida pela importação de mercadorias, não procedeu ao pagamento, nem indicou motivos justificativos do não pagamento.

Posto isso e não havendo pagamento voluntário por parte da Bom Preço Participações, Lda., o Serviço Nacional das Alfândegas intentou junto do Tribunal Provincial de Luanda uma acção executiva, para pagamento de quantia certa.

A Bom Preço Participações, Lda. opôs-se à execução por meio de embargos, porém viu o seu pedido ser indeferido no Tribunal a quo.

Da decisão que negou provimento ao embargo apresentado, a aqui Recorrente, interpôs um recurso de apelação junto do Tribunal Supremo, recurso este que foi declarado improcedente por esta Corte.

Assim, é submetido à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo que negou provimento ao recurso de apelação formulado pela Recorrente e confirmou a decisão recorrida.

Ora, passar-se-á à apreciação das questões suscitadas pela Recorrente em sede das alegações apresentadas:

  1. Sobre a inconstitucionalidade da decisão

 Alega a Recorrente ser a decisão recorrida inconstitucional, porquanto confirmou a decisão do Tribunal a quo, não obstante ter referido, a título de questão prévia, que não houve julgamento de facto, o que nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC torna nula a sentença por falta de fundamentação.

Logo,

Nos termos do artigo 158.º do CPC, as decisões devem ser sempre fundamentadas, referindo o artigo 668.º do mesmo diploma legal que a falta de fundamentação constitui causa de nulidade da sentença.

A fundamentação é indispensável para que se assegure o respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial e ela permite perceber as motivações do julgador ao firmar a sua convicção sobre os factos submetidos à sua apreciação.

 Aliás, segundo  Pessoa Vaz, "o princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito e no Estado Social de Direito contra o arbítrio do poder judiciário", in Direito Processual Civil - do antigo ao novo Código, Coimbra, 1998, pág. 211.

Dito isto,

Importa relembrar que o objecto submetido à apreciação do Tribunal a quo, no âmbito da oposição à execução por embargos, foi o conhecimento de uma excepção peremptória, no caso a prescrição, que vem prevista na alínea b) do artigo 496.º do CPC.

De referir que a prescrição ocorre quando alguém adquire a possibilidade de se opor ao exercício de um direito, em virtude deste não ter sido exercido durante um certo lapso de tempo (n.º 1 do artigo 304.º do Cód. Civil).

A prescrição é, por isso, juridicamente qualificável como uma excepção, na medida em que permite ao seu titular paralisar eficazmente um direito da contraparte, conforme Luís de Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Volume II, 8.ª Edição, pág. 111.

Ora, nos termos do que vem previsto no n.º 3 do artigo 493.º do CPC, as excepções peremptórias dão lugar à absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.

A Recorrente, ao embargar a execução alegando a prescrição da dívida, implicava para aquela Corte o julgamento de uma excepção peremptória, de modo que a apreciação do Tribunal a quo limitar-se-ia à verificação da prescrição ou não da dívida.

Em suma, tal como referido pelo Acórdão recorrido, não houve um julgamento de facto no Tribunal a quo, houve, tão somente, o conhecimento de uma excepção peremptória.

Pelo que, face ao acima expendido, não se verificou nenhuma violação ao disposto no n.º 1 do artigo 177.º da CRA, nem houve, conforme a Recorrente alega, inconstitucionalidade da decisão.

  1. Sobre a violação dos princípios do inquisitório e do in dubio pro reo

Alega a Recorrente que os actos e omissões fiscais que constituem infrações são sancionadas com multas ou com prisão, pelo que, o direito penal é chamado a intervir, impondo a observância de princípios como o do inquisitório, que se caracteriza por exigir, da parte do Tribunal a realização de todas as diligências de prova necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material.

Prossegue alegando que, à luz do mesmo princípio, o Tribunal estaria impedido de sancionar o contribuinte em caso de dúvida, por falta de elementos de prova bastante, que permitissem a realização da justiça com verdade e objectividade, sendo que tal facto constitui violação do princípio in dubio pro reo.

Porém,

A matéria dos presentes autos é regulada pelo Código Aduaneiro (CA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 5/06, de 4 de Outubro de 2006, sendo que, nos termos do artigo 3.º, são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código Penal e do Código de Processo Penal quanto aos crimes fiscais e aduaneiros e a Lei n.º 12/11, de 16 de Fevereiro, Lei das Transgressões Administrativas, para as transgressões fiscais e aduaneiras, bem como o Código Civil quanto à responsabilidade civil.

Alega a Recorrente que estamos diante de uma infracção penal, ou seja, que a mesma cometeu um crime com a sua conduta, pelo que, convém definirmos o conceito de crime, à luz do Código Penal, que é um facto típico, ilícito, culposo e lesivo de bens jurídicos fundamentais, segundo Orlando Rodrigues, in Apontamentos de Direito Penal, Escolar Editora, 2014, págs. 88-89)

A ora Recorrente ao ter-se colocado numa situação que dificultou a sua localização por parte da Autoridade Tributária, de per si, tal conduta, apesar de ilícita não preenche nenhum dos tipos legais de crimes previstos e puníveis no Código Aduaneiro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 5/06, de 4 de Outubro, pois decorre do princípio constitucional do nullum crimen, nulla poena, sine lege, consagrado no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola (CRA).

Apesar de resultar dos autos que o então Serviço Nacional das Alfândegas não conseguiu localizar a ora Recorrente no endereço que consta da sua sede social, e que esta chegou a entregar dois (2) endereços falsos, tais afirmações não foram provadas, pois não existe nos autos quaisquer documentos que atestem isso.

Por seu turno, não consta dos autos qualquer prova, que ateste que a intenção da Recorrente era a de cometer, a título de exemplo, o crime de fraude aduaneira, previsto e punível na alínea c) do artigo 198.º do CA, segundo o qual, comete o crime de fraude aduaneira quem falsifique ou faça falsificar qualquer documento a apresentar a autoridade competente e relevante para a percepção de direitos e demais imposições aduaneiras.

Aliás, resulta dos autos que a Recorrente, mudou de endereço, poucos dias antes de ser citada para a acção executiva e que não apresentou junto da Autoridade Tributária o seu novo endereço.

 Ainda assim, foi possível ser citada neste novo endereço pelo Tribunal a quo, o que demonstra claramente que a Recorrente com isso não cometeu qualquer crime aduaneiro, pelo que não há lugar à aplicação subsidiária da lei penal e dos seus princípios estruturantes ao presente processo.

  1. Sobre a violação dos princípios da segurança e certeza jurídicas

Refere a Recorrente, nas suas alegações, que o Tribunal ad quem confirmou a decisão recorrida, não obstante ter reconhecido não ter havido fundamentação da decisão, alegadamente porque a prescrição suscitada não podia produzir os efeitos desejados, por ter havido da parte da Recorrente um exercício abusivo do direito.

Continua a Recorrente, alegando que, no entanto, para qualificar o seu comportamento como tendo agido de má-fé, o Tribunal ad quem socorreu-se da analogia para fundamentar a sua decisão, sendo que o recurso à analogia, restringiu direitos do contribuinte, da ora Recorrente, nos termos do artigo 57.º da CRA.

Na verdade, a ratio do artigo 57.º da Constituição da República de Angola é a de servir de baliza ao poder legislativo, como referem Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, ao dizerem que: “A consagração constitucional do princípio da inviolabilidade dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos tem como consequência três aspectos essenciais: a) as matérias relativas a direitos, liberdades e garantias apenas podem ser objecto de restrição ou de limitação nos casos expressamente previstos na Constituição (princípio da reserva da Constituição); b) as restrições ou limitações aos direitos, liberdades e garantias são matéria de reserva absoluta legislativa da Assembleia Nacional; c) o acto legislativo restritivo dos direitos fundamentais deve ser precedido de uma ponderação dos bens envolvidos de forma a que haja o sacrifício mínimo dos direitos fundamentais em jogo”, in Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, Luanda, 2014, pág. 358.

Por conseguinte,  este Tribunal considera que não cabe na interpretação da presente norma constitucional o entendimento alegado pela Recorrente. Ademais, a aplicação dos preceitos do Código Civil ao presente processo, resulta do próprio Código Aduaneiro, que consagra a aplicação subsidiária do Código Civil, de entre outros diplomas, em tudo o que não se mostre previsto no seu texto.

Destarte, é entendimento do Tribunal Constitucional que não resulta da aplicação dos preceitos previstos no Código Civil, qualquer violação à Constituição, concretamente o artigo 57.º da nossa Lei Magna.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, Acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em: 

 Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 15 de Junho de 2021.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente e Relatora) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Victória Manuel da Silva Izata