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ACÓRDÃO N.º 686/2021

PROCESSO N.º 844-D/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, Acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 I. RELATÓRIO 

AGROWAY, LDA., com os demais sinais de identificação nos autos, requereu um incidente de assistência judiciária no âmbito dos embargos de execução movidos contra a Administração Geral Tributária, na Sala do Contencioso, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Provincial de Luanda.

Inconformada com a decisão de 1.ª instância na parte que lhe indeferiu o pedido de patrocínio judiciário gratuito, interpôs recurso da mesma para o Tribunal Supremo.

O referido Tribunal, por sua vez, negou provimento ao recurso e, em consequência, confirmou a decisão recorrida que indeferiu o pedido de assistência judiciária.

Interposto recurso desse Acórdão para este Tribunal, foi ordenada a produção de alegações, tendo a Recorrente concluído do seguinte modo:

  1. O presente recurso recai sobre o douto Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo que confirma a decisão da primeira instância que indefere liminarmente o seu pedido de assistência judiciária.
  1. Para fundamentar a sua decisão, o Tribunal socorreu-se de uma suposta jurisprudência maioritária – sem citar qual – que alegadamente exige que ao requerer a assistência judiciária gratuita, a Recorrente comprove previamente a insuficiência económica. Isto é, na falta de norma legal apropriada, os meios idóneos (expressão genérica) a que a Lei se refere seria, in casu, além dos extractos bancários, a junção de declaração da Repartição Fiscal competente, atestando a suspensão da actividade ou demonstrando a existência de bens da empresa penhorados em processo de execução ou ainda actas da assembleia de sócios e dos relatórios de contas de exercício económico negativo, entre outros documentos susceptíveis de comprovar efectivamente a alegada insuficiência da pessoa colectiva, com vista a merecer benefícios de justiça gratuita.
  1. Julgando os documentos probatórios apresentados pela Recorrente, o Tribunal ad quem socorre-se da ilação de que se à pessoa singular é exigido a apresentação do atestado de pobreza emitido pelo Governo Provincial, por maioria de razão a determinação da insuficiência económica de uma empresa deve igualmente ser comprovada por documentos emanados por uma entidade pública que ateste que de facto a Recorrente está em situação financeira débil.
  1. O Tribunal ad quem para exigir documentos que a lei não exige, socorre-se da técnica legal de interpretação jurídica e integração de lacunas prevista no artigo 10.º do Código Civil, quando, em boa verdade, o artigo 8.º da Decreto-Lei da Assistência Judiciária não contém qualquer lacuna, o que torna o julgamento interactivo ilegal.
  1. O Tribunal ad quem, ao agir como agiu, substituiu-se ilegalmente ao legislador, criando imposições para a produção de “prova diabólica” que não estão contidas na lei, numa violação grosseira dos direitos, liberdades e garantias da Recorrente, constitucionalmente consagrados.
  1. Importa esclarecer que os extratos bancários que a Recorrente juntou aos autos não foram exarados pela Recorrente, mas sim pelas instituições financeiras bancárias legalmente existentes em Angola.
  1. A decisão do Tribunal ad quem é ilegal por violar o n.º 1 do artigo 29.ºda CRA, coartando a recorrente o acesso aos tribunais para a defesa dos seus direitos por insuficiência de meios.
  1. Também é ilegal a decisão proferida pelo Tribunal ad quem, uma vez que viola a lei expressa, isto é, o artigo 8.º da Decreto-Lei da Assistência Judiciária que dispõe que “a prova de insuficiência económica do requerente pode ser feita por qualquer meio idóneo, designadamente, atestado de pobreza exarado pelo Governo Provincial ou autoridade local e Atestado Médico.
  1. Não pode, pois, o Tribunal exigir meios probatórios que não resultam de um imperativo legal;
  1. Sabendo, como sabia, da dificuldade de se apresentar prova negativa, o legislador foi bastante brando nas exigências dos meios probatórios da insuficiência de recursos por parte de quem queira beneficiar da assistência judiciária.
  1. Para o legislador, basta que a parte apresente qualquer meio idóneo e usou como exemplo um atestado de pobreza passado pelo Governo Provincial e um atestado médico, recorrendo à técnica de enumeração meramente exemplificativa.
  1. A Recorrente juntou aos autos os seus extratos bancários, bem como uma comunicação ao Bairro Fiscal competente em que declarava ao fisco que, por questões económicas, tem a sua actividade comercial suspensa.
  1. Os citados documentos não violam em nada o n.º 5 do artigo 12.º da Decreto-Lei de Assistência Judiciária, uma vez que, num extrato bancário ou no documento que se remeteu à AGT a comunicar a suspensão da actividade comercial, não tem necessariamente de conter a referência de que se destina à prestação de assistência judiciária.
  1. Mesmo que tal referência fosse obrigatória, o legislador não impõe como sanção, pelo facto de os documentos destinados à prova da assistência judiciária não dizerem expressamente a que se destinam, a sua desvalorização como meio probatório.
  1. É jurisprudência dessa Corte que não se deve coartar o direito ao recurso por falta de pagamento de custas judiciais, uma vez que se estaria a violar o artigo 29.º da CRA. Por maioria de razão não pode a Recorrente ser privada do acesso aos tribunais e à defesa, por estar sem condições financeiras de pagar às custas da presente demanda.
  1. O Tribunal ad quem aplicou mal o direito, violando lei expressa, designadamente o artigo 668.º do CPC, as normas do Decreto-Lei n. º15/95 de 10 de Novembro (da assistência judiciária), o n.º 1 do artigo 29.º, bem como, o artigo 2.º da CRA.
  1. O Acórdão do Tribunal ad quem é inconstitucional, ilegal e, consequentemente, nula.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

 III. LEGITIMIDADE 

A Recorrente é parte vencida no Processo n.º 196/17, que correu os seus trâmites na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim sendo, a Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso consiste em analisar se o Acórdão prolactado pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo no âmbito do Processo n.º 196/17, que confirma a decisão da primeira instância que indefere liminarmente o pedido de Assistência Judiciária é inconstitucional, por violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.

V. APRECIANDO

A decisão recorrida – o Acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo de 20 de Março de 2019 – negou à Recorrente o direito à assistência judiciária com fundamento nos artigos 8.º, 9.º, 12.º, n.º 5 e 19.º, todos do Decreto-Lei n.º 15/95, de 10 de Novembro.

A decisão revidenda que indeferiu o pedido de assistência judiciária foi mantida pelo Tribunal Supremo, fls. 89 a 99, com base na seguinte fundamentação que se transcreve:

“Não tendo nos autos a Requerente juntado documentos que preencham o requisito estabelecido no n.º 5 do artigo 12.º da Lei de Assistência Judiciária, que comprovem a sua insuficiência de meios económicos, tendo-se limitado a juntar uma cópia de um requerimento dirigido ao Bairro Fiscal solicitando a suspensão da actividade comercial (note-se que nem a resposta a este pedido foi dada a conhecer ao Tribunal no sentido de verificar se houve ou não deferimento da pretensão apresentada), entendemos de todo não estarem preenchidos os requisitos exigidos pela referida Lei para a atribuição da assistência judiciária à Requerente, pelo que a decisão do Tribunal a quo que indeferiu liminarmente o pedido de assistência judiciária é válida, nos termos dos artigos 8.º, 9.º, n.º 5 do artigo 12.º e 19.º, todos da Lei da Assistência Judiciária – Decreto-Lei n.º 15/95, de 10 de Novembro”.

São, pois, as normas consubstanciadas nos referidos artigos 8.º e 12.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 15/95, de 10 de Novembro, que importa apreciar no presente recurso.

O artigo 8.º tem a seguinte redacção:

“Artigo 8.º

(Meios de prova de Insuficiência)

A prova da insuficiência económica do requerente pode ser feita por qualquer meio idóneo, designadamente, atestado de pobreza passado pelo Governo Provincial ou autoridade local e por Atestado Médico”.

Por sua vez, o artigo 12.º tem o seguinte teor:

“Artigo 12.º

(fundamentos)

  1. O requerente deve alegar sumariamente os factos e as razões de direito que interessam ao pedido, oferecendo logo todas as provas.
  2. Na petição o requerente mencionará os rendimentos e remunerações que recebe, os seus encargos pessoais e de família e as contribuições e impostos que paga, salvo caso de presunção previsto no artigo 9.º.
  1. Dos factos referidos na primeira parte do número anterior não carece o requerente de oferecer prova, mas o juiz mandará investigar a sua exactidão quando o tiver por conveniente.
  1. Nenhuma entidade pública ou privada poderá recusar-se a prestar, com carácter de urgência, as informações que o tribunal requisitar sobre a situação económica do requerente de Assistência Judiciária.
  1. Os documentos destinados a instruir o pedido de Assistência Judiciária devem referir expressamente o fim a que se destinam”.

A Constituição da República de Angola, ao garantir no seu artigo 29.º o “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”, impõe, no seu sentido material, a proibição de denegação de justiça por insuficiência de meios económicos.

Tal direito fundamental comporta no seu núcleo essencial o direito à informação e consulta jurídica e ao patrocínio judiciário, sendo este tido como elemento nuclear da garantia constitucional de “acesso ao direito e aos tribunais”.

A Constituição estabelece, outrossim, o carácter universal do reconhecimento do direito ao patrocínio judiciário, tal como inculca desde logo o uso da expressão “a todos” do n.º 2 do artigo 29.º do diploma fundamental, não se admitindo nem prevendo qualquer distinção entre pessoas singulares e colectivas, nem entre pessoas colectivas que desenvolvam uma actividade com fins lucrativos e as outras pessoas.

Contemplando o sistema de acesso ao direito e aos tribunais, distinguem-se duas vertentes, de informação jurídica e protecção jurídica, das quais a segunda reveste duas modalidades – consulta jurídica e apoio judiciário (artigo 29.º, n.º 2 da CRA). Existem, por sua vez, duas formas de apoio judiciário: dispensa de despesas judiciais e pagamento dos serviços de advogado (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 15/95, de 10 de Novembro).

Embora o exercício e as formas do “direito ao patrocínio”, sejam, pelo n.º 2 do artigo 29.º da Constituição, relegados para a lei, o que é certo é que, dada a implicação a que acima se faz referência, a lei ordinária não poderá estabelecer condicionantes ou requisitos tais que dificultem ou tornem por mais difícil o exercício daquele direito ou, ainda acentuadamente, restrinjam o respectivo conteúdo, sob pena de aqueloutro direito de acesso aos tribunais não passar de um direito formal.

Por esta razão, apesar da formulação do artigo 8.º da Lei da Assistência Judiciária referir-se às pessoas singulares, a verdade é que reconhece-se a universalidade do reconhecimento do direito ao patrocínio judiciário, segundo o qual o direito de acesso aos tribunais, de que é componente essencial o patrocínio judiciário, é assegurado pela Constituição “a todos” (artigo 29.º), o que logo inculca o reconhecimento da aplicabilidade da lei também às pessoas colectivas.

Assim, por meio de interpretação extensiva da norma contida no artigo 8.º da lei, pode-se inferir que as pessoas colectivas gozarão do direito à assistência judiciária quando comprovada a sua insuficiência económica para fazer face aos encargos do processo, aferida designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço. Assim, nos casos em que o “preço da justiça” seja insuportável para aquelas entidades, impede-se que o acesso à justiça seja impossibilitado por insuficiência económica.

Os documentos apresentados pela Requerente ao Tribunal a quo, não são meios idóneos a fazer prova de que não tem meios económicos para suportar os encargos de uma causa judicial.

Perante os custos colectivos da justiça suportados pelos impostos e escassez de meios do Estado, é tolerável constitucionalmente que o acesso à justiça suportado pelo Estado esteja sujeito à prova de insuficiência económica, mediante meios idóneos.

Apesar da enumeração no artigo 8.º, relativamente aos meios de prova, ser meramente exemplificativa, documentos como os extratos bancários apresentados pela Recorrente não comprovam, por si só, a insuficiência económica.

Além do mais, tratando-se de uma sociedade comercial que, pela sua natureza, tem fins lucrativos, os requisitos de prova devem ser mais exigentes, demonstrando-se, por exemplo, os últimos relatórios de contas, registo de pagamento de Imposto Industrial ou de IRT que tenha sido apresentada e respectiva nota de liquidação (se já tiver sido emitida) ou, na falta da declaração, certidão passada pelas Finanças, documentos de prestação de contas dos três últimos exercícios findos ou dos exercícios findos desde a constituição, no caso de esta ter ocorrido há menos de três anos ou o balancete do último trimestre, isto é, documentos emanados de alguma entidade pública que ateste a situação económica da empresa.

Isto porque a razão última das sociedades comerciais não justifica, de modo idêntico ao das pessoas físicas, a promoção das condições de acesso à justiça. Nestas últimas, a dimensão de acesso à justiça consubstancia uma dimensão da própria dignidade da pessoa humana insusceptível de limitações pela escassez de meios económicos. Naquelas outras, a sua finalidade específica e a razão de ser torna aceitável que o acesso à justiça seja por elas exclusivamente providenciado. Quando assim não seja possível, torna-se necessário que a requerente apresente documentos que permitam inferir, de forma verosímil, a sua insuficiência económica para suportar os custos do acesso à justiça.

Em face das considerações anteriores, conclui-se que a igualdade de tratamento entre pessoas colectivas com fins lucrativos e as outras pessoas jurídicas, em matéria de patrocínio judiciário, apesar de imposta pela Constituição, não deve ser densificada e regulada nos mesmos termos, visto que a diferenciação é justificada pela diversidade de condições, sustentada por razões de interesse público.

Assim sendo, deve o presente recurso ser considerado improcedente, por não ter o Acórdão recorrido postergado o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.

DECIDINDO         

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em: 

 Sem custas nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, 15 de Junho de 2021.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 

Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Victória Manuel da Silva Izata