ACÓRDÃO N.º 687/2021
PROCESSO N.º 783-C/2019
(Arguição de nulidade do Acórdão n.º 663/2021)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Rui Manuel Moita, melhor identificado nos autos, veio arguir a nulidade do Acórdão n.º 663/2021, de 2 de Fevereiro, proferido pelo Plenário do Tribunal Constitucional, no âmbito do Processo n.º 783-C/2019, que negou provimento ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade e, em consequência, declarou a constitucionalidade do aresto recorrido do Tribunal Supremo, por não terem sido violados direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de Angola (CRA).
O Reclamante veio arguir a nulidade do Acórdão com os seguintes principais fundamentos:
O Reclamante termina requerendo o atendimento da arguição de nulidade do Acórdão n.º 663/2021.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer a presente arguição de nulidade do Acórdão n.º 663/2021, de 2 de Fevereiro, proferido pelo Plenário, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 666.º, da alínea a) do artigo 669.º e do artigo 670.º, todos do CPC, aplicável por injunção do disposto no artigo 2.º da LPC.
III. LEGITIMIDADE
O Reclamante foi um dos Recorrentes no Processo n.º 783-C/2019, de recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do qual foi prolactado o Acórdão n.º 663/2021, que negou provimento ao pedido de declaração de inconstitucionalidade do aresto recorrido do Tribunal Supremo.
Assim sendo, o Reclamante tem legitimidade para arguir a nulidade do Acórdão proferido por este Tribunal Constitucional, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 26.º do CPC e do artigo 2.º da LPC.
IV. OBJECTO
O objecto da presente reclamação é verificar a alegada nulidade do Acórdão n.º 663/2021, de 2 de Fevereiro, arguida pelo Reclamante, com fundamento na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, segundo a qual: “é nula a sentença: quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, aplicável aos processos da jurisdição do Tribunal Constitucional, por força do disposto no artigo 2.º da LPC.
V. APRECIANDO
O Reclamante alega que o Acórdão n.º 663/2021 padece de nulidade, por violação de regras de competência material do Tribunal Constitucional, pois, na sua perspectiva, o órgão jurisdicional escusou-se de analisar as questões que o Recorrente apresentou no Processo n.º 783-C/2019, mormente o facto do Tribunal Supremo ter proferido uma decisão usando expressões como “cambiantes sociais”, “sanções exemplares”, em violação do princípio constitucional da legalidade.
O Reclamante aduz, ainda, que o princípio da legalidade foi violado porque, no recurso interposto, o Tribunal Constitucional não se pronunciou sobre a falta da imparcialidade do Tribunal Supremo, que agiu com selectividade e arbitrariedade na escolha dos réus e convolou, indevidamente, o estatuto processual de certas pessoas, passando-as de réu a declarante, quando, no exercício de funções, todos agiram tal qual Rui Manuel Moita.
No essencial, o Reclamante considera, finalmente, que o Tribunal Constitucional não analisou a violação do princípio da fundamentação por parte do Tribunal Supremo, que não elaborou, de forma individualizada, os quesitos para cada um dos réus no processo, não apresentou aos réus os quesitos finais e não deu resposta aos quesitos formulados.
Em boa verdade, o legislador constituinte da Carta Magna aprovada em 2010 definiu, a título geral e rigoroso, a função material dos tribunais e procedeu a uma caracterização concreta do sistema jurisdicional vigente, tendo, assim, consagrado o modelo de organização e funcionamento dos tribunais em função de cada jurisdição prevista na Constituição, como disciplinam os artigos 174.º, 176.º e 177.º, todos da CRA.
Com relação à jurisdição constitucional, a assembleia constituinte delineou um quadro descritivo geral, particularmente distinto, da função material deste Tribunal face aos demais tribunais, isto é, da utilidade jurisdicional deste Órgão na realização da justiça inerente à protecção dos direitos fundamentais e interesses legítimos dos cidadãos, tendo fixado, ipsis verbis, a competência de “administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional”, ao abrigo do n.º 1 do artigo 180.º da CRA.
Por força dos princípios do Estado democrático de direito e da legalidade, amparados nos artigos 2.º e 6.º da CRA, a sindicância jus-constitucional das sentenças e decisões dos demais tribunais há-de, com efeito, obedecer sempre às regras de interpretação dos fundamentos dos litígios abrangidos pela função jurisdicional deste Tribunal Constitucional.
Diante da alegação de que determinados aspectos suscitados não foram apreciados no Acórdão arguido de nulidade, questão fundamental é a de saber qual a forma de caracterização das matérias de natureza jurídico-constitucional que, em respeito pelo disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, deviam ser fiscalizadas, mas que, no dizer do Reclamante, não foram, para, por fim, serem analisados os fundamentos da arguição.
Certamente, só por via do exercício de hermenêutica constitucional se torna possível aferir se o Tribunal violou ou não o princípio fundamental do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 29.º da CRA, na perspectiva da proibição da omissão de pronúncia sobre matérias que devesse apreciar, com vista a não violar o dever de protecção dos direitos basilares do Reclamante.
Para os devidos efeitos, a doutrina de J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira, vertida na obra Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, pág. 614, ensina que tais matérias de natureza jurídico-constitucional “terão de ser, desde logo, aquelas que façam da interpretação e aplicação da Constituição o núcleo essencial de uma questão jurídica. Por outras palavras: a questão jurídico-constitucional deve ser conformada nos seus aspectos essenciais por normas de direito constitucional. A jurisdictio constitucional consistirá, desta forma, numa decisão judicial em que os tribunais, e sobretudo o TC, dizem o que é o direito segundo a medida jurídico-material do direito constitucional”.
Ora, este Tribunal, não sendo o único órgão que garante e assegura a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes, uma vez que os demais tribunais também protegem a Lei Fundamental de forma incidental, através do sistema de fiscalização difusa, tem a responsabilidade de realizar a sua justiça sobre questões que justifiquem a aplicação específica das normas constitucionais.
O Reclamante alega que o Tribunal violou o princípio da legalidade por não analisar o facto de o Tribunal Supremo, na prolacção do acórdão, ter usado expressões como “cambiantes sociais” e “sanções exemplares”.
Desde já, o Tribunal agiu dentro dos marcos da legalidade ao não relevar tais expressões, pois não representam o núcleo essencial da questão jurídica controvertida que foi apreciada pelo Tribunal Supremo, muito menos constituem o fundamento da sentença recorrida, ou seja, o fundamento limitado às constitucionalidades suscitadas, conforme determinam o n.º 5 do artigo 21.º da LOTC e a alínea a) do artigo 49.º da LPC.
O ónus de alegar, respaldado no artigo 690.º do CPC, implica a indicação de fundamentos nucleares por que é arguida a nulidade de um acórdão. Em termos concretos, a falta de análise de tais expressões não representa uma omissão de pronúncia, uma vez que, lendo atentamente os autos, de fls. 6031 a 6066, nada leva a concluir que este Tribunal Constitucional deixou de apreciar questões sobre garantias do processo criminal e do julgamento justo, diante da verdade material constante dos autos, quanto à responsabilidade criminal do Reclamante.
O Reclamante acresce às suas alegações que o princípio da legalidade também foi violado, porque, no recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Tribunal não analisou a falta de imparcialidade do Tribunal Supremo, ao ter havido selectividade e arbitrariedade na escolha dos réus e convolação indevida do estatuto processual de certas pessoas, que passaram de réus a declarantes, quando, no exercício de suas funções, agiram tal qual o Recorrente.
Este Tribunal enunciou, no Acórdão posto em causa, a fls. 6048, que o Julgador Constitucional não é um terceiro grau da jurisdição comum, à luz do disposto no artigo 180.º da CRA. Disto decorre a compreensão de que, não possuindo competências para julgar segundo os critérios de facto et de iure, comum na jurisdição dos demais tribunais, a Constituição e a lei não garantem quaisquer direitos de apelar à formulação de juízo de valor sobre determinados factos, tal como o alegado pelo Reclamante, segundo os quais alguns declarantes não foram considerados réus nem condenados.
Como é sabido, as decisões da jurisdição de especialidade carecem de fundamentação, sendo que, em respeito ao princípio do devido processo legal, tutelado nos artigos 6.º, 26.º, 28.º, 29.º, 65.º, 66.º, 67.º e 72.º, todos da CRA, fica este Tribunal adstrito apenas ao dever de fundamentar a sua decisão sobre direitos, liberdades e garantias do Recorrente afecto à sentença condenatória.
Por este motivo, a protecção do princípio da imparcialidade e independência só é exigível com relação ao tratamento que se dê aos arguidos e parte acusadora, ficando o poder de intervenção do Tribunal Constitucional condicionado pelo dever de não apreciar actos, omissões e fundamentos de decisões sobre parte que, claramente, seja inexistente no acórdão recorrido.
Portanto, a Lei Fundamental não confere direito de protecção do princípio da imparcialidade e independência na comparação entre o Recorrente, ora Reclamante, e “outras pessoas… (e não só), que não foram constituídas arguidas”, conforme alegações de fls. 6093, porquanto tais “outras pessoas” não são partes no processo nem foram julgadas pela Suprema Corte da jurisdição comum, cuja decisão foi fiscalizada por este Tribunal Constitucional.
Assim, este Tribunal não acompanha o Reclamante, porque resulta claro dos autos que, ao ser proferido o Acórdão n.º 663/2021, no âmbito do Processo n.º 783-C/2019, foi respeitado o dever de fundamentação sobre o quesito, fazendo menção, a fls. 6043 e 6044, à jurisprudência firmada no Acórdão n.º 336/2014 de que “o direito ao julgamento justo deve ser entendido enquanto imposição da lei de que, aquando da administração da justiça, seja assegurado ao arguido todo um conjunto de garantias previstas, desde o momento da suspeita de cometimento do crime até ao momento da total execução da pena condenatória”.
O Reclamante considera, entretanto, que o Tribunal não analisou a violação do dever de fundamentação pelo Tribunal ad quem quanto a não elaboração, de forma individualizada, dos quesitos para cada um dos réus do processo, bem como a não apresentação aos réus dos quesitos finais e das respostas aos quesitos formulados.
É impreterível clarificar que, em virtude do poder de cognição, previsto no artigo 11.º da LPC, este Tribunal não se restringe a apreciar os argumentos de razão trazidos ao seu conhecimento pelos recorrentes afectos aos processos de fiscalização concreta, na medida em que o controlo da constitucionalidade dos acórdãos recorridos constitui uma solução, em termos de dar provimento ao pedido, só quando houver fundamento bastante, independentemente das alegações juntas aos autos.
Ademais, a disposição da alínea m) do artigo 16.º da LOTC estabelece que o controlo da violação dos direitos, liberdades e garantias fundamentais perpassa pela fiscalização dos fundamentos de direito que determinaram a decisão recorrida ou das omissões que tenham inquinado a constitucionalidade do aresto.
Este Tribunal Constitucional referiu-se aos quesitos finais no Acórdão, a fls. 6044 dos autos, pelo que, no que diz respeito à omissão de pronúncia, que não é o caso, é relevante frisar as notas de Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 143, segundo as quais “são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questões de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Em síntese, este Tribunal Constitucional fiscalizou a constitucionalidade da decisão proferida pelo Tribunal Supremo com base na apreciação das matérias que fazem da hermenêutica constitucional a via justa, digna e inequívoca do controlo das principais questões suscitadas pelo recorrente, ora Reclamante, a fim de salvaguardar os seus direitos, liberdades e garantias protegidos pela Constituição.
Desta feita, é do entendimento deste Tribunal que a presente arguição de nulidade do Acórdão n.º 663/2021, de 2 de Fevereiro, não procede, porquanto, ao abrigo da Constituição e da lei, a decisão não padece de omissão quanto a questões que devessem ser apreciadas.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 16 de Junho de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Victória Manuel da Silva Izata