ACÓRDÃO N.º 688/2021
PROCESSO N.º 894-D/2021
(FISCALIZAÇÃO PREVENTIVA DA LEI DE REVISÃO CONSTITUCIONAL)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo dos nºs 1 e 4 do artigo 228.º da Constituição da República de Angola (CRA) e da alínea b) do n.º 2 do artigo 20.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), em processo de fiscalização preventiva e em regime de urgência, a apreciação da constitucionalidade da Lei de Revisão Constitucional (LRC) aprovada pela Assembleia Nacional, aos 22 de Junho de 2021, que lhe foi submetida para promulgação.
Para o efeito, foi notificado o Requerente, Presidente da República, da admissão do pedido e para a observância do disposto no n.º 1 do artigo 229.º da CRA.
De igual modo, em cumprimento do estabelecido na alínea a) do n.º 2 do artigo 16.º da LPC, foi a Assembleia Nacional notificada a pronunciar-se, o que fez por documento assinado pelo seu Presidente, nos termos aqui resumidos:
O Presidente da República submeteu à Assembleia Nacional uma Proposta de Lei de Revisão da Constituição, ao abrigo do artigo 233.º do Regimento Interno da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho, Lei Orgânica que Aprova o Regimento da Assembleia Nacional.
O Presidente da República propôs a alteração dos artigos 14.º, 37.º, 92.º, 100.º, 104.º, 107.º, 110.º, 112.º, 119.º, 120.º, 125.º, 132.º, 135.º, 143.º, 144,º, 145.º, 162.º, 163.º, 169.º, 176.º, 179.º, 181.º, 184.º, 198.º, 199.º, 213.º, 214.º e 242.º, o aditamento dos artigos 58.º-A, 116.º-A, 132.º-A, 198.º-A, 200.º-A e 212.º-A e a revogação dos artigos 192.º e 215.º, bem como do n.º 4 do artigo 182.º e do n.º 1 do artigo 242.º.
Em Reunião Plenária, realizada aos 18 de Março de 2021, a Assembleia Nacional apreciou, na generalidade, a Proposta de Lei de Revisão Constitucional que foi aprovada com 157 votos a favor, nenhum voto contra e 48 abstenções, o que significa ter obtido a aprovação de mais de 2/3 dos deputados em efectividade de funções.
Desencadeado o processo de revisão, a Assembleia Nacional despoletou, previamente, uma auscultação institucional para colher subsídios relativos ao referido processo, tendo auscultado instituições da administração da justiça, da actividade económica, da sociedade civil e cidadania, da actividade religiosa e da academia, totalizando 82 instituições.
Parte importante das contribuições das instituições supra referenciadas foi tida em consideração e serviu de base para elaboração do Projecto de Lei de Revisão Constitucional submetido à discussão na especialidade, em sede da qual foram expurgadas, do mesmo, algumas normas consideradas não conformes.
Resultado da discussão na especialidade, o Projecto de Lei passou a alterar os artigos 14.º, 37.º, 100.º, 104.º, 107.º, 110.º, 112.º, 119.º, 120.º, 125.º, 131.º, 132.º, 135.º, 143.º, 144.º, 145.º, 162.º, 163.º, 169.º, 174.º, 176.º, 179.º, 180.º, 181.º, 182.º, 183.º, 184.º, 198.º, 199.º, 213.º, 214.º e 242.º, a aditar dos artigos 107.º-A, 116.º-A, 132.º-A, 198.º-A, 200.º-A, 212.º-A e 241.º-A e a revogar o n.º 2 do artigo 132.º, a alínea c) do n.º 2 do artigo 135.º, os artigos 192.º e 215.º e o n.º 1 do artigo 242.º.
O Projecto de Lei de Revisão Constitucional foi submetido ao Plenário da Assembleia Nacional para votação final global, no dia 22 de Junho de 2021, tendo sido aprovado com 152 votos a favor, nenhum voto contra e 56 abstenções. O número de votos a favor corresponde a mais de 2/3 dos deputados em efectividade de funções, satisfazendo, assim, a exigência prevista no n.º 1 do artigo 234.º da CRA.
Durante o processo de revisão da Constituição foram aferidos os limites temporais, materiais e circunstanciais de revisão constitucional, previstos nos artigos 235.º, 236.º e 237.º, respectivamente, todos da CRA.
II. COMPETÊNCIA
Ao Tribunal Constitucional compete apreciar a constitucionalidade de quaisquer normas e demais actos do Estado, bem como efectuar a apreciação preventiva da constitucionalidade das leis do parlamento, nas quais se enquadra a Lei de Revisão Constitucional, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 180.º da CRA.
A apreciação pelo Tribunal Constitucional das normas de revisão constitucional está prevista na alínea c) do artigo 227.º, conjugada com o artigo 226.º, ambos da CRA, pelo que a validade da presente revisão constitucional depende da sua conformidade com a Constituição.
Os referidos preceitos da CRA são concretizados pela Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), ao inscrever, na alínea g) do artigo 16.º, entre as competências deste Tribunal “apreciar a constitucionalidade dos referendos e da revisão constitucional…”.
Destarte, por força das disposições conjugadas das alíneas a) e b) do artigo 180.º, do artigo 226.º e da alínea c) do artigo 227.º, todos da CRA, bem como da alínea g) do artigo 16.º da LOTC e do n.º 1 do artigo 20.º da LPC, o Tribunal Constitucional é competente para efectivar a fiscalização preventiva da Lei de Revisão Constitucional, conforme pedido formulado pelo Requerente.
III. LEGITIMIDADE
Estatui o n.º 1 do artigo 228.º da CRA que o Presidente da República pode requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante de diploma legal que tenha sido submetido para promulgação, o que confere legitimidade ao Requerente para formular o pedido, em sede da presente fiscalização abstracta preventiva da constitucionalidade da Lei de Revisão Constitucional.
IV. OBJECTO
Ao Tribunal Constitucional importa, antes de mais, proceder à delimitação do objecto de apreciação, maxime, tratando-se da intervenção fiscalizadora, por isso condicionante, em relação a um acto normativo de valor reforçado de um poder soberano e, por regra, incondicionado. Esta intervenção está necessariamente limitada a verificar:
Os limites materiais tipificados no artigo 236.º da CRA consistem no respeito aos seguintes princípios:
Tendo em consideração o estatuído constitucional e legalmente, o objecto de análise do Tribunal Constitucional não abarca a apreciação e decisão sobre o mérito ou demérito das opções e soluções políticas e político-constitucionais do legislador constituinte e soberano.
Em sede da presente fiscalização preventiva da constitucionalidade, o que o Tribunal Constitucional pode fazer, e fá-lo, limita-se ao pronunciamento e deliberação sobre a validade do procedimento e o respeito pelos limites acima elencados, previstos na CRA.
V. APRECIANDO
A presente Lei de Revisão Constitucional (LRC) é a primeira revisão da Constituição da República de Angola (CRA), que foi promulgada a 5 de Fevereiro de 2010.
Importa neste sentido, antes de mais, elencar as leis de revisão constitucional, a partir da Lei Constitucional de 1975.
Assim:
- Primeira revisão: Lei n.º 71/76, de 11 de Novembro;
- Segunda revisão: Lei n.º 13/77, de 11 de Novembro;
- Terceira revisão: Lei Constitucional de 1978;
-Quarta revisão: Lei n.º 1/79, de 16 de Janeiro;
-Quinta revisão: Lei Constitucional de 1980;
-Sexta revisão: Lei n.º 1/86, de 1 de Fevereiro;
-Sétima revisão: Lei n.º 2/87, de 31 de Janeiro;
-Oitava revisão: Lei Constitucional de 1991 – Lei n.º 12/91, de 6 de Maio;
-Nona revisão: Lei n.º 23/92, de 16 de Setembro.
A presente revisão da Constituição implica um duplo comprometimento dos órgãos de soberania envolvidos, designadamente a Assembleia Nacional, no exercício de aprovação do diploma legal em análise e o Tribunal Constitucional, na efectivação da fiscalização preventiva.
No exercício de aprovação da Lei de Revisão da Constituição, a doutrina sobre a matéria concernente ao poder constituinte derivado ensina que este se sujeita, antes de mais, aos limites do poder constituinte originário quais sejam os limites temporais (artigo 235.º), os limites materiais (artigo 236.º) e os limites circunstanciais (artigo 237.º), todos da CRA, que balizam a actuação do Tribunal Constitucional no âmbito da fiscalização preventiva da constitucionalidade de leis de revisão, sob compromisso deste proteger os limites materiais de revisão da Constituição.
As mudanças ou alterações constitucionais ocorrem de diversas formas. Podem ser adoptadas por emendas, reformas, revisões, ou ainda por meio de interpretações decorrentes da concretização e actualização do texto original.
As modernas constituições têm em si o carácter da estabilidade, enquanto fruto do exercício do poder constituinte. Contudo, esta estabilidade nunca é absoluta, compreensão que pode ser ilustrada, exemplificativamente, a partir do que dispunha o artigo 28.º da Constituição Francesa de 1793, nos termos do qual “um povo tem sempre o direito de rever, reformar e modificar a própria constituição. Uma geração não pode submeter as suas leis às futuras gerações”.
Nesta perspectiva, as modificações e as derrogações ao texto original realizadas por este processo agravado e complexo servem para alterar as normas constitucionais que, devido ao passar do tempo, se tenham tornado obsoletas ou que, até mesmo, tenham instituído princípios conflituantes com normas e outros princípios, com o objectivo de aclarar o escopo principal da Constituição, definindo assim a sua linha normativa, determinada pelo próprio texto constitucional. Noutros casos, servem também para superar as censuras de inconstitucionalidade decididas ao longo do tempo pelos órgãos de justiça constitucional.
Por conseguinte, o conceito de revisão constitucional está ligado à ideia de constituições rígidas em oposição às constituições flexíveis, cujas modificações formais e derrogações do texto original se davam por meio de um processo legislativo ordinário, facto que conferia maior discricionariedade para alterar e, muitas vezes, fazer prevalecer os interesses políticos em detrimento dos interesses gerais.
Em resposta a esta problemática, as modernas constituições, incluindo a Constituição da República de Angola, são caracterizadas pela sua natureza rígida. É este carácter que impede que os textos constitucionais sejam alterados de forma arbitrária.
Sendo a CRA uma Constituição rígida, disciplina internamente os procedimentos e limitações especiais pelos quais a mesma pode ser alterada. As características de estabilidade e rigidez impõem algumas condições ao processo de revisão ou alteração, que têm a ver com a qualidade e o número dos órgãos intervenientes neste processo de aprovação, limites formais, e o respeito aos limites temporais, materiais e circunstanciais, consagrados nos artigos 233.º, 234.º, 235.º, 236.º e 237.º, todos da CRA.
Segundo Jorge Miranda “a modificação das Constituições é um fenómeno inelutável da vida jurídica, imposto pela tensão com a realidade constitucional e pela necessidade de efectividade que as tem de marcar. Mais do que modificáveis, as Constituições são modificadas”. In Manual de Direito Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs. 108 e 169.
É nesta perspectiva que, diante da Constituição de 2010, por acto de iniciativa do Requerente e tendo havido a sua aprovação pela Assembleia Nacional, este Tribunal passa a proceder a verificação do cumprimento ou observância dos limites de revisão previstos na CRA, pelo que ora se aprecia a Lei de Revisão Constitucional a fim de se sindicar a sua legitimidade constitucional e evitar que seja promulgada incluindo inconstitucionalidades.
A Lei de Revisão Constitucional, aqui sob fiscalização preventiva da constitucionalidade, propõe-se a alterar trinta e dois artigos, revogar cinco disposições e aditar sete artigos à CRA.
Apreciação sobre o cumprimento dos Limites Constitucionais
A alteração da Constituição requer um procedimento complexo e agravado, se comparado com o procedimento ordinário. Importa particularmente ter em conta neste processo os limites de revisão estabelecidos constitucionalmente, de modo a impedir alterações arbitrárias.
Embora o texto constitucional não contenha uma consagração expressa, o disposto nos artigos 233.º e 234.º da CRA, aponta para o que a doutrina jurídica denomina limites formais, pois, estabelece quais os órgãos com competência de iniciativa de revisão constitucional e quais os procedimentos necessários para que a mesma se efective.
O presente diploma cumpriu com o estatuído nestes normativos, pelo que há legitimidade, não havendo desrespeito pelos limites formais.
O procedimento para aprovação da Lei de Revisão Constitucional é mais agravado e, por isso, diferente do reservado por lei para a alteração das leis ordinárias, pelo que aqui cabe apreciar a conformidade do procedimento seguido em relação às normas constitucionais em vigor.
O Presidente da República exerceu, à luz do artigo 233.º da CRA, o poder de iniciativa de revisão da Constituição.
Compete à Assembleia Nacional, no domínio político e legislativo, aprovar alterações à Constituição, nos termos da alínea a) do artigo 161.º da CRA, para tanto, emitindo leis de revisão constitucional, nos termos do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 166.º da CRA.
As alterações da Constituição são aprovadas por uma maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 234.º da CRA.
A Lei de Revisão Constitucional foi aprovada por 152 votos a favor, nenhum contra e 56 abstenções. Para a observância da maioria qualificada de dois terços dos deputados, em efectividade de funções, seriam necessários 139 votos favoráveis à aprovação da Lei de Revisão Constitucional. O quórum verificado cumpre em larga medida a exigência constitucional.
No que respeita aos limites temporais, de acordo com a doutrina e o próprio enunciado constitucional, consagrado na CRA, a alteração da Constituição é condicionada ao decurso de um espaço temporal. A CRA estabelece o decurso do tempo mínimo de cinco anos a contar da sua entrada em vigor ou da última revisão ordinária, nos termos do n.º 1 do artigo 235.º da CRA. Tendo a Lei Magna entrado em vigor aos 5 de Fevereiro de 2010, nos termos do artigo 238.º e, estando a actual primeira Revisão a decorrer no ano de 2021, isto é, 11 anos depois, o tempo decorrido cumpre amplamente a exigência constitucional.
Por último, os limites circunstanciais determinam a impossibilidade de alterar a Constituição durante a vigência do estado de guerra, do estado de sítio ou estado de emergência.
Quanto aos limites circunstanciais taxativamente previstos no artigo 237.º da CRA, a aprovação da Lei de Revisão Constitucional não foi efectuada no decurso de estado de anormalidade constitucional, isto é, na vigência do estado de guerra, do estado de sítio ou do estado de emergência.
Em relação aos limites circunstanciais, poder-se-á levantar, eventualmente, a questão da legitimidade da alteração da Constituição, por esta ter sido proposta numa fase em que o Executivo decretou o estado de calamidade pública de âmbito nacional, uma vez que são igualmente limitados direitos e liberdades fundamentais.
É nesta perspectiva que Giorgio Agamben, com a célebre frase "necessitas legem non habet'', define o estado de excepção como legitimação da suspensão do ordenamento jurídico por força de uma necessidade com sentido de urgência que ameaça a vida do Estado - in, Estado de Exceção, Editora Biatempo, S. Paulo, 2004 Tradução de Iraci D. Poleti, págs. 11 e 12, 40 e ss.
A ideia de estado de excepção não se configura somente na limitação dos direitos, mas estende-se a todos factores internos ou externos que dificultam o correcto funcionamento do Estado. A limitação dos direitos é parte do estado de excepção, somando-se à alteração da ordem funcional dos órgãos do Estado.
Por conseguinte, a situação de calamidade pública (estado de calamidade pública), embora imponha mecanismos e limitações que assemelham as figuras afins ao estado de excepção e dificultam o pleno exercício de alguns direitos dos cidadãos, o facto de não ter consagração constitucional, enquanto figura como tal, e se fundamentar numa lei de bases (Lei n.º 28/03, de 7 de Novembro, Lei de Bases da Protecção Civil, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 14/20, de 22 de Junho, Lei de alteração à Lei de Bases da Protecção Civil), não apresenta qualquer dúvida sobre a sua legitimidade constitucional.
Devido à pandemia da Covid-19, que afecta a globalidade dos países, em todo o território de Angola está declarada a vigência da situação de calamidade pública. Esta situação não consta do rol incluso da anormalidade constitucional, acima referido, no entanto verifica-se que na sua vigência são impostas algumas restrições ao pleno exercício de direitos dos cidadãos como o direito de ir e vir, a liberdade de manifestação, de reuniões colectivas, dentre outros, devido à cerca sanitária nacional, que se consubstanciam em limitações típicas do estado de excepção constitucional, como já antes referido.
Durante a vigência da Lei n.º 23/92, de 16 de Setembro – Lei Constitucional de 1992, estava previsto o limite circunstancial de que a Lei Constitucional não poderia ser alterada (nem a Assembleia Nacional poderia ser dissolvida) enquanto durasse o exercício de poderes especiais do Presidente da República, assumidos sempre que as instituições da República, a independência da Nação, a integridade territorial ou a execução dos seus compromissos internacionais fossem ameaçados por forma grave e imediata e o funcionamento regular dos poderes públicos constitucionais fossem interrompidos, nos termos do artigo 67.º da Lei n.º 23/92.
Este limite não foi formalmente replicado pela CRA de 2010, ficando, no entanto, a fazer parte da constituição material.
Ainda assim, não se considera que a pandemia actual ameace grave e imediatamente as instituições da República, nem as outras condições elencadas no referido preceito daquela Lei Constitucional, pelo que o Tribunal Constitucional não a inclui entre os limites formais nem circunstanciais retro mencionados.
Pelas razões expostas, o Tribunal Constitucional entende que a aprovação da Lei de Revisão Constitucional respeitou os procedimentos estabelecidos na Constituição e na Lei do Processo Constitucional, não se tendo verificado qualquer desrespeito aos limites formais, nomeadamente de procedimento e de quórum de aprovação, nem dos limites circunstanciais.
Sobre os limites materiais, no intuito de manter o carácter da estabilidade da CRA, esta determina um conjunto de matérias que constituem o núcleo fundamental do sistema constitucional (cláusulas pétreas), cuja alteração pode colocar em causa a própria identidade constitucional (Jorge Bacelar GOUVEIA, Direito Constitucional de Moçambique, Parte Geral, parte especial, IDILP-Instituto do Direito de Língua portuguesa, Lisboa/Maputo, 2015, pág. 659, citado por Waldemar B. de Freitas DIOGO, Limites materiais de revisão constitucional…, pág. 39).
A abordagem seguirá a ordem pela qual os limites materiais são elencados na Lei Magna. Não serão mencionados os limites não abrangidos pelo conteúdo dos artigos relevantes para efeitos da presente fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Artigo 37.º (Direito e limites da propriedade privada)
Com o projecto de alteração da lei de revisão constitucional, além do instituto da expropriação previsto na CRA, adiciona-se uma nova figura, a da apropriação pública.
A expropriação para fins de utilidade pública é um procedimento de carácter ablatório, através do qual a Administração Pública adquire coactivamente os bens de propriedade privada, para a prossecução do interesse público, com a respectiva indemnização. Esta pode ter por objecto os direitos reais sobre os bens imóveis ou sobre a universalidade dos bens móveis.
Os nºs 1, 2 e 3 do artigo 37.º da CRA, mantendo-se inalterados, consagram a propriedade privada nos termos do Estado democrático de direito, isto é, tratando-se de um direito fundamental, a sua expropriação é sempre acompanhada da indemnização, como consagrado em diferentes textos constitucionais.
O instituto jurídico da apropriação pública é uma figura nova no ordenamento jurídico angolano, que expressa a vontade do legislador na tutela do interesse colectivo, acabando por criar uma compressão do direito da propriedade privada face ao interesse público.
O n.º 4 do artigo 37.º da LRC, dispõe que “Podem ser objecto de apropriação pública, no todo ou em parte, bens móveis e imóveis e participações sociais de pessoas individuais e colectivas privadas, quando, por motivos de interesse nacional, estejam em causa nomeadamente, a segurança nacional, a segurança alimentar, a saúde pública, o sistema económico e financeiro, o fornecimento de bens ou prestação de serviços essenciais”. E o n.º 5 do mesmo artigo refere que “Lei própria regula o regime da apropriação pública nos termos do número anterior”.
Segundo entendimento de Carlos Feijó, o legislador constituinte não pode suprimir ou afectar o núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias, mas está autorizado a ampliar esse catálogo de direitos e pode mesmo alterar ou comprimir o seu âmbito, desde que o respectivo núcleo essencial fique salvaguardado, in Constituição da República de Angola, Enquadramento Dogmático – A Nossa Visão, Carlos Feijó e outros, Volume III, 2015, Almedina Editora, págs. 75-76.
Na mesma esteira, Jorge Miranda entende que as leis de revisão constitucional têm de respeitar o conteúdo essencial dos demais direitos, liberdades e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais (ou, porventura, numa visão mais mitigada, o conteúdo essencial do sistema desses direitos, podendo então vir a diminuir o seu elenco ou afectar o conteúdo essencial de qualquer deles, desde que não fique prejudicado o sistema global), in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 5.ª Edição, Coimbra Editora, 2012, pág. 405.
Por sua vez, constata-se que os nºs 4 e 5 estabelecem as balizas para o exercício do instituto da apropriação por parte do Estado cujo desenvolvimento e implicações serão objecto de regulação em legislação infraconstitucional própria, como referido no n.º 5 do artigo 37.º da LRC.
Neste contexto, a consagração da apropriação pública, nos nºs 4 e 5 do artigo 37.º da LRC, enquanto opção política do legislador, respeita os limites materiais de constitucionalidade.
Porém, tendo em conta o direito e limites da propriedade privada, além do interesse público nacional, convém acautelar o reconhecimento do direito à indemnização, quando devida.
B. Sobre a Independência dos Tribunais - alínea i)
ARTIGO 176.º (Sistema jurisdicional)
O Estado de direito congrega vários fundamentos e formas de organização do Estado e, no plano da justiça, é garantido pelo controlo dos actos do poder político através dos Tribunais, organizados em função das suas finalidades jurisdicionais, entre os quais ao Tribunal Constitucional compete, em última instância, administrar a justiça sobre matérias de natureza jurídico-constitucional.
Nesta senda, o Estado de direito definiu as competências sobre matérias constitucionais do Tribunal Constitucional, no artigo 180.º da CRA. Este Tribunal aprecia a constitucionalidade de todos os processos provenientes do Tribunal Supremo, do Supremo Tribunal Militar e da Assembleia Nacional, decorrendo deste fundamento cristalizado pela Constituição a sua relevância máxima e principal no controlo da constitucionalidade de quaisquer normas legais e demais actos do Estado.
A Lei de Revisão Constitucional propõe, no artigo em análise, que “Os tribunais superiores da República de Angola são o Tribunal Supremo, o Tribunal Constitucional, o Tribunal de Contas e o Supremo Tribunal Militar”, alterando-se a disposição originária dos tribunais superiores, mas mantendo as respectivas atribuições, nos termos do n.º 1 do artigo 176.º da CRA, não substitui o Tribunal Constitucional quanto aos poderes de, perante as decisões proferidas por todos os Tribunais existentes, “administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, nos termos da Constituição e da lei”, conforme a Constituição vigente determina e a própria Lei de Revisão Constitucional refere, no artigo 181.º.
Relativamente à organização que o legislador constituinte de 2021 conferiu à norma do artigo 176.º n.º 1 da LRC, sendo uma mudança de paradigma em relação a 2010, ainda assim, esta ordem de precedência é meramente protocolar e não afecta a competência de cada um dos tribunais superiores.
Da leitura atenta das disposições da Lei da Revisão Constitucional e da CRA, pode-se claramente perceber que as decisões do Tribunal Constitucional, sendo este um tribunal de especialidade em matérias de natureza jurídico-constitucional, aquelas prevalecem sobre as decisões dos demais tribunais e quaisquer outras autoridades, incluindo as do Tribunal Supremo.
Conforme defende Carlos Feijó, não há relação hierárquico-funcional entre os quatro tribunais superiores. Isso sem prejuízo de obediência das demais decisões do Tribunal Constitucional, que julga em recurso, e sublinhe-se, em matéria de sua competência, pela inconstitucionalidade de uma norma aplicada por aqueles tribunais, in Constituição da República de Angola, Enquadramento Dogmático – A Nossa Visão, Carlos Feijó e Outros, Volume III, 2015, Almedina Editora, pág. 510.
Consequentemente, é entendimento do Tribunal Constitucional que a norma do n.º 1 do artigo 176.º da LRC respeita os limites materiais previstos no artigo 236.º da CRA.
ARTIGO 179.º, n.º 9 – (Juízes)
O n.º 9 do artigo 179.º da Lei de Revisão Constitucional, estabelece que: “Os juízes de qualquer jurisdição jubilam quando completam 70 anos de idade”.
Entende-se que esta norma é uma opção do legislador constituinte, cujo mérito ou demérito não cabe na análise do Tribunal Constitucional.
Porém, este Tribunal socorre-se da posição de Raúl Araújo, Elisa Rangel Nunes e Marcy Lopes – in Constituição da Republica de Angola anotada, II volume, 2018, pág 555, quando aludem que o facto de os Juízes do Tribunal Constitucional terem um mandato de 7 anos não renovável, nos termos do n.º 4 do artigo 180.º da CRA, esta disposição deve ser sempre conjugada com a constante no artigo 243.º da CRA segundo a qual “a designação dos Juízes dos Tribunais Superiores deve ser feita de modo a evitar a sua total renovação simultânea”.
O fundamento da norma constitucional que regula a nomeação deferida dos Juízes Conselheiros tem como objectivo evitar que se façam modificações de todos os juízes, ou quase todos de uma só vez, o que criaria graves problemas de organização e funcionamento do Tribunal, in Constituição da República de Angola Anotada, Vol. II, Luanda, 2018, pág. 555.
Leva a concluir-se que um juiz de um tribunal superior ao completar a idade de 70 anos, a sua jubilação apenas ocorreria imediatamente se isso não prejudicasse o disposto no artigo 243.º da CRA que impede a total renovação simultânea dos juízes dos tribunais superiores.
A adição deste n.º 9 pode suscitar ainda uma omissão em relação às leis ordinárias vigentes, que prevêem que os Magistrados Judiciais podem jubilar antes dos 70 anos, caso cumpram 35 anos de carreira.
Em conclusão, a norma não só não desrespeita o limite material em referência, como também pode ser interpretada em concordância com outras normas já presentes na CRA e na legislação infraconstitucional.
C) Sobre a Separação e Interdependência dos Órgãos de Soberania- alínea j)
ARTIGOS 181.º n.º 5; 182.º n.º 4; 183.º n.º 4 e 184.º n.º 6
O n.º 5 do artigo 181.º dispõe que “O Tribunal Constitucional remete anualmente o relatório da sua actividade ao Presidente da República e à Assembleia Nacional para conhecimento”. Similarmente preceitua-se em relação ao Tribunal de Contas (n.º 4 do artigo 182.º), ao Supremo Tribunal Militar (n.º 4 do artigo 183.º) e ao Conselho Superior da Magistratura Judicial em relação à jurisdição comum (n.º 6 do artigo 184.º).
Estabelece o n.º 3 do artigo 105.º da CRA, que os órgãos de soberania devem respeitar o princípio da separação e interdependência de funções, princípio este que coincide com o limite material de revisão constitucional previsto na alínea j) do artigo 236.º da CRA.
Em relação aos tribunais, o princípio em referência tem uma dimensão externa, que traduz a ideia da independência dos tribunais em face dos demais órgãos de soberania quer seja, outras entidades estranhas ao poder judicial, a fim de assegurar não somente a sua independência funcional como a aparência desta mesma independência.
Deste modo, a exigência de remessa por parte dos mencionados Tribunais, de um relatório anual da sua actividade aos órgãos de soberania Presidente da República e Assembleia Nacional, contende com aquele limite material de revisão constitucional.
De facto, é essencial para a consolidação do estado democrático de direito, a ausência de suspeições relativamente a influência indevida dos demais órgãos de soberania sobre o poder judicial, pelo que nesta medida, a exigência do envio anual do referido relatório aos órgãos externos a funções judiciais, não permite destrinçar isto mesmo, pelo contrário inclinando-se no sentido de inquinar a confiança pública, num poder judicial funcionalmente independente dos poderes executivo e legislativo.
Se não, vejamos:
O princípio da separação de poderes determina a especificidade de funções dos órgãos de soberania, sem submissão de um ao outro. A submissão deste relatório mesmo que seja somente para efeitos de conhecimento, contende com o princípio supramencionado.
Embora não seja feita qualquer referência à natureza do relatório em causa, pressupondo poder ser de actividade ou de cariz orçamental, e ainda que para mero conhecimento, tal remessa denota uma evidente e clara subordinação destes órgãos para com aqueles.
O Tribunal Constitucional, o Tribunal Supremo e o Supremo Tribunal Militar podem, ao invés, publicar os seus relatórios em Diário da República, sem prejuízo de submeter os relatórios orçamentais ao Tribunal de Contas.
Todos os artigos, ora sob análise, constituem desrespeito aos limites materiais da independência dos tribunais e da separação e interdependência dos órgãos de soberania, nos termos das alíneas i) e j) do artigo 236.º da CRA.
CONCLUINDO
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado
Acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 9 de Agosto de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dr. Manuel Miguel da Costa Aragão (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto Bravo Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d´ Almeida Baptista da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata