ACÓRDÃO N.º 694/2021
PROCESSO N.º 884-B/2021
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Francys Reginaldo dos Santos Bernardo, melhor identificado nos autos, interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade neste Tribunal Constitucional, do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1672/18, que confirmou a sua condenação na pena de 10 anos de prisão maior, pela prática do crime de furto doméstico, p.p. pelo n.º 3 e o § 1.º do artigo 425.º com referência ao n.º 5 do artigo 421.º, ambos do Código Penal vigente à data dos factos.
O Recorrente fundamenta o seu recurso alegando, em síntese, o seguinte:
Conclui, deste modo, em referência à lei mais favorável, pugnando pelo provimento do recurso e que se declare extinta e sem efeito a pena que lhe foi aplicada.
O Processo foi à vista do Ministério Público
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto, nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola” e do § único do citado artigo da LPC.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é réu condenado no Processo n.º 1672/18 da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo pelo que, é parte legítima, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC que preceitua, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso incide na verificação se o Aresto da 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 1672/18 ofendeu princípios ou violou direitos constitucionalmente garantidos.
V. APRECIANDO
Decorre da matéria fáctica que envolve os presentes autos de que, tanto o Tribunal de primeira instância como o Tribunal Supremo, deram como provado que, no ano de 2014, o ora Recorrente, na qualidade de funcionário do Banco de Negócios Internacional (BNI), colocado numa de suas agências, onde acumulava as funções de tesoureiro, balconista e caixa responsável pelo referido posto, a dada altura, no período que decorreu entre Junho e Agosto do ano de 2014, deixou de proceder (como era sua obrigação) sem qualquer justificação plausível, à remessa à tesouraria central do excesso de valores monetários existente no cofre do posto onde trabalhava.
Veio a ser apurado que o Recorrente, aproveitando-se das funções que ocupava no Banco e incumprindo as normas e procedimentos internos, de forma faseada, sem o consentimento dos seus superiores hierárquicos, subtraiu do BNI e gastou em seu proveito uma quantia monetária de 14.836.515,00 (catorze milhões oitocentos e trinta e seis mil e quinhentos e quinze Kwanzas), razão pela qual foi julgado e condenado pela prática de um crime de furto doméstico, o que levou à aplicação conjugada dos artigos 425.º n.º 3, parágrafo 1.º e 421.º n.º 5, ambos do Código Penal vigente na altura.
Entretanto, desavindo com a condenação sofrida, invoca substancialmente, em sede do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, que o acórdão recorrido, em decorrência de erro na qualificação jurídica penal operada, em face da conduta que lhe é imputada, fez desencadear a violação de preceito constitucional referente à garantia de direito fundamental, aos efeitos dos actos amnistiados nos termos da lei. Além de entender que, por força da entrada em vigor da nova lei penal, deixou de ser a sua conduta qualificada como crime de furto doméstico, pelo facto da nova lei penal não prever tal crime.
Assiste-lhe razão?
Pois vejamos:
Entende-se por qualificação jurídico-penal, a subsunção dos factos à lei. “Neste sentido, qualificar os factos é determinar qual o tipo de crime que integram.” Henriques Eiras Guilhermina Forte, in Dicionário de Direito Penal e Processo Penal, 3.ª edição, Pág. 659.
Por conseguinte, sempre se dirá que, tal silogismo judiciário é atinente ao julgador, considerando verificados os factos que formam a previsão legal e o seu responsável.
Neste contexto, é cristalino, hoje, já não se assistir dizer que ao juiz não é necessário indicar quais as normas que devem ser aplicadas à questão em concreto, pois conhece o direito; para aplicá-las, precisa apenas que lhe sejam apresentados os factos.
Ao contrário, discorre precisamente de toda a dogmática concebida em torno da garantia fundamental do dever de fundamentação das decisões judiciais, em homenagem ou respeito aos princípios da legalidade, da independência do Juiz e da imparcialidade das suas decisões, que a fundamentação se impõe que seja tanto de facto, como de direito, na medida em que é igualmente dever do julgador respeitar e aplicar correctamente a lei.
No entanto, não menos verdade a este propósito, é a questão da qualificação dos factos imputados ao réu, igualmente não obrigar o juiz. Com efeito, o que realmente obriga são os próprios factos, vide Vasco A. Grandão Ramos, in Direito Processual Penal - Noções Fundamentais, Editora Ler e Escrever - Leitores Reunidos Lda., 1993, Pág. 370.
No entanto, segundo o raciocínio expendido pelo Recorrente, diante dos factos incriminadores acolhidos nos autos, o tribunal recorrido ao invés de reiterar a sua condenação pela prática do crime de furto doméstico, cuja penalidade era de doze a dezasseis anos de prisão maior, deveria antes condená-lo pelo cometimento de um crime de abuso de confiança, p. p. nos termos do artigo 453.º do Código Penal então vigente, na pena de oito a doze anos de prisão maior, por inexistência dos elementos constitutivos daquele ilícito penal.
Ora, o tribunal sentenciou que em face da mesma factualidade apurada, ser a norma convocada a constante do artigo 425.º n.º 3 e seu parágrafo 1.º, ao invés a do artigo 453.º como alega o Recorrente.
Voltando à questão da determinação ou qualificação do tipo legal de crime, sucede que a sanção penal decorre da transposição de um comportamento concreto em desconformidade a uma norma legal, portanto a tarefa da subsunção desenvolve-se sob a forma de um silogismo, no qual a norma é a premissa maior, o facto (ou conduta) é a premissa menor e o resultado é a sanção.
Todavia, ocorre que essa operação subsuntiva a cargo do julgador e que consiste na interpretação do sentido e termos da norma (in situ), a penal e contextualizá-la na matriz do sistema a que se integra, não é objecto sindicável no âmbito do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como adiante se irá evidenciar.
Isto é, na medida em que se distingue na decisão revidada, o raciocínio seguido pelo julgador, levando a compreender a convicção que formou, tanto sobre os factos como da sua qualificação jurídico-penal.
Decerto, enunciada em sede do presente recurso, à divergência quanto a correcta subsunção ao direito, dos factos dados como provados, tal não determina ipso facto assacar a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, sem que porém, se demonstre ter este Aresto violado direitos ou ofendido princípios constitucionais.
Dito de outro modo, é imperceptível que o julgamento efectuado tenha sido neste sentido injusto, prendendo-se a decisão recorrida, como de resto se observa, em elementos perfeitamente sustentáveis em razão de mantê-la nos termos proferidos pelo tribunal de primeira instância, considerando que o veredicto em causa, ou seja a determinação do tipo legal de crime, resultou evidentemente do exercício hermenêutico elaborado pelo julgador perante o tipo legal incriminador chamado, no caso, em alusão à factualidade apurada.
Paralelamente ao afirmado acima, convém, sobretudo, salientar ou não perder de vista o estipulado pelas disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08 de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, (redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10 de 3 de Dezembro), no que tange à competência do Tribunal Constitucional que, com efeito, se traduz dos preceitos legais em referência, como a de administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional.
Desta sorte, por não se tratar de uma terceira instância de julgamento da matéria de competência dos tribunais de outras jurisdições, não compete ao Tribunal Constitucional o pronunciamento sobre o mérito da decisão da causa.
Portanto, “esta não é uma instância suprema de mérito, ou um tribunal de super-revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo (…) Carlos Blanco Morais, in Justiça Constitucional, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2011, Pág 619.)
Neste sentido, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto actos não normativos, isto é, decisões judiciais e actos administrativos, definitivos e executórios que lesem direitos, liberdades e garantias (ou princípios previstos na Constituição) Rosa Guerra, in O Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade - Problemas de Configuração, do Regime e da Natureza Jurídica, Universidade Católica, Editora, 2017, Pág. 122.
Pelo que, nesta ordem de considerações, não constitui objecto do recurso extraordinário de inconstitucionalidade o reexame concernente à subsunção operada no Acórdão recorrido em virtude da compreensão dos factos apurados e a interpretação da norma penal concretamente aplicada, bem como o tipo legal de crime que foi preenchido pelo então comportamento do Recorrente.
Em resumo, subsumida a conduta do Recorrente ao crime de furto doméstico nos termos sentenciados no Acórdão em crise, asseverando-se como se referiu supra, ressaltado no texto da decisão, suficiente fundamentação de facto e de direito, não se verifica a violação do disposto no artigo 62.º da CRA, tal como no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 11/16, de 12 de Agosto (Lei da Amnistia).
Em outra dimensão, tratando-se a amnistia de “uma causa de extinção da responsabilidade criminal determinada pelo poder legislativo, que elimina genericamente a incriminação dos factos passados” - Henriques Eiras Guilhermina Forte, in Dicionário de Direito Penal e Processo Penal, 3.ª edição, Pág. 59.
No entanto, ocorre que a infracção perpetrada pelo aqui impetrante (furto doméstico, nos termos do n.º 3 e parágrafo 1.º do artigo 425.º, cuja moldura penal abstracta vai dos doze aos dezasseis anos de prisão maior), não foram, por conseguinte, suprimidos os seus efeitos jurídicos com a publicação da Lei da Amnistia em referência, na medida em que resultou deste diploma legal de que apenas eram amnistiados os crimes até 12 anos de prisão, cometidos até 11 de Novembro de 2015.
Contudo, apesar de não ter sido invocado pelo Recorrente, verifica-se que a decisão recorrida não teve em consideração o disposto no n.º 1 do artigo 2.º da Lei da Amnistia em referência, ao determinar que os crimes por ela não abrangidos deveriam beneficiar perdão de ¼ da pena concreta aplicada.
Pelo que não tendo o Acórdão recorrido decidido neste sentido, considera este Tribunal ter sido violado o princípio da legalidade a que está vinculado o julgador por virtude da Constituição e da Lei.
Além das razões acima invocadas, que como se expendeu não mereceram o acolhimento deste Tribunal, alude igualmente o Recorrente, em sede de alegações no presente recurso, que de igual modo deve ser extinta a pena a que foi condenado, em virtude de deixar de existir na lei penal vigente o crime de furto doméstico.
O Recorrente assevera que jamais poderá cumprir a pena de 10 anos de prisão maior, conforme sentenciou o Tribunal Supremo, no acórdão em pauta, atendendo o facto de inexistir na lei penal, ora em vigor, o crime pelo qual foi condenado.
Pelo que, fazendo deste modo, alusão ao princípio da lei mais favorável, vem requerer, por conseguinte, que seja o Tribunal Constitucional a declarar extinta e sem efeito a pena que lhe foi aplicada no Acórdão recorrido.
Ora, não obstante, ser suficientemente compreendido que a intervenção do direito penal decorre da estrita e rigorosa observação do princípio da legalidade, traduzindo-se este no brocado latino “nullum crimen nulla poena sine lege”, entre nós consagrados no artigo 65.º n.º 2 da CRA.
Apesar da expressão jurídica acima referida, é precipitada a conclusão de não poder haver crime e consequentemente pena, que não decorra de uma lei prévia e certa. Entendimento aliás reforçado por Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, ao reputarem que apenas podem ser considerados crimes aqueles que estejam previstos na lei existente antes do conhecimento de qualquer acto delituoso ou criminal. Deste modo, ninguém pode ser condenado por um crime que apenas tenha sido considerado como tal depois da prática do acto que venha a ser definido como delituoso ou criminal. Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, in Constituição da República de Angola anotada, tomo I, 2014 Pág. 381.
O certo é que, no caso em equação, o julgador não usou pois de sua livre criação, para decidir aplicar um instrumento sancionatório não tipificado na lei, ao contrário, encontrava-se estritamente previsto no Código Penal em vigor no momento da condenação, o comportamento observado pelo aqui Recorrente, e a respectiva punição, por isso, não cabendo infirmar o aresto recorrido, porquanto não se demonstra ter infringido o princípio constitucional da legalidade penal.
Noutro aspecto, impõe-se precisar que, quanto à apreciação sobre a invocada causa de extinção da pena não compete a este Tribunal proceder nos termos em que se requer, para o efeito reproduz-se aqui, o que acima se referiu sobre a competência do Tribunal Constitucional e do objecto do presente recurso de inconstitucionalidade.
Na situação em presença, se enuncia dos autos que, pela conduta do Recorrente ocorrida no ano de 2014, o mesmo foi julgado e condenado pelo crime de furto doméstico, ainda na vigência do anterior Código Penal.
Assim, o aresto ora posto em causa foi proferido antes da entrada em vigor da nova lei penal, logo, fundado na existência de uma lei que no momento criminalizava o comportamento observado pelo Recorrente, como acima já este Tribunal se pronunciou.
Com a entrada em vigor da nova lei penal, sendo esta mais favorável, nos termos do que prevê o seu artigo 392.º e tendo em atenção o efeito suspensivo do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, caberá à jurisdição comum pronunciar-se sobre as diferentes causas da extinção das penas, tal como das medidas de segurança e do procedimento criminal, de harmonia com o disposto no artigo 60.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica e de Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum.
Importará acentuar que a aplicação da lei mais favorável configura imperativo constitucional, nos termos em que preceitua o n.º 4 do artigo 65.º da CRA, princípio igualmente acolhido no n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal vigente.
Por tudo quanto exposto considera esta Corte que a decisão ora impugnada viola o princípio da legalidade por não ter observado o estabelecido no n.º 1 do artigo 2.º da Lei da Amnistia, pelo que devem os autos ser expedidos para o Tribunal Supremo a fim de que seja reformada a decisão nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da Lei do Processo Constitucional.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas nos termos do artigo 15.º da LPC.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 7 de Setembro de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Jacinto Prazeres Monteiro Cardoso
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dr. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B da Silva (Relatora)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata