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 ACÓRDÃO N.º 695/2021

 PROCESSO N.º 877- C/2021

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, Acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 I. RELATÓRIO

Hamilton Kailo Ferreira Muhunga, com os demais sinais de identificação nos autos, veio junto do Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do acórdão proferido, pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2892.

O Recorrente foi acusado, pronunciado e condenado, em primeira instância, a 18 (dezoito) anos de prisão maior, pelo crime de homicídio voluntário simples, p.p. pelo artigo 349.º do Código Penal (CP) e ao pagamento de Kz. 70 000, 00 (setenta mil kwanzas) de taxa de justiça, Kz. 5 000, 00 (cinco mil kwanzas) de emolumentos à sua defensora oficiosa e, concomitantemente, foi condenado a pagar Kz. 1 500 000, 00 (um milhão e quinhentos mil kwanzas), a título de indemnização a família da vítima, conforme fls. 120.

O Ministério Público, por imperativo legal, interpôs recurso da decisão, nos termos do § 1.º do artigo 647.º e do § único do artigo 473.º, ambos do Código de Processo Penal (CPP, vigente à data).

O Recorrente, insatisfeito com a decisão do Tribunal a quo, também interpôs recurso, nos termos dos artigos 645.º, 647.º, 651.º e 655.º, todos do CPP, vigente à data dos factos.

O Tribunal Supremo alterou a pena do arguido, de 18 (dezoito) para 13 (treze) anos de prisão maior, pelo crime acima referido, e consequentemente, condenou-o no pagamento de Kz. 2 000 000, 00 (dois milhões de kwanzas), a favor dos familiares da vítima.

Discordando da decisão do Tribunal ad quem, veio o Recorrente junto desta instância, interpor o presente recurso, alegando essencialmente o seguinte:

  1. Princípio da privação da liberdade, nos termos do artigo 64.º da CRA;
  2. O tribunal a quo durante toda fase de discussão e julgamento, não se dignou em analisar a privação arbitrária do arguido;
  3. … A detenção ocorreu no dia 30 de Setembro de 2017, mas o interrogatório deu-se apenas no dia 2 de Outubro de 2017 e a condenação no dia 5 de Dezembro de 2018, o que para todos os efeitos pode se considerar como um crime de cárcere privado;
  4.  Não foram observados os pressupostos da prisão preventiva… Portanto, a privação foi ilegal e inconstitucional, nos termos do n.º 1 do artigo 64.º da CRA;
  5. Princípio do in dúbio pro reo, da presunção da inocência, cfr. o n.º 2 do artigo 67.º da CRA e da descoberta da verdade material;
  6. O arguido foi julgado e condenado, sem no entanto o próprio tribunal da Comarca de Benguela e o Tribunal Supremo soubessem em concreto o objecto do crime;
  7. Violou-se o princípio da descoberta da verdade material por não ter sido feita a diligência mais necessária e indispensável que é a autópsia ou a exumação do cadáver como meios idóneos para determinar o culpado;
  8. … Não tendo observado todas as diligências que aferissem a culpa do arguido, dúvidas inexistem que se está perante a violação do princípio do in dúbio pro reo e da presunção de inocência;
  9. Princípio da dignidade da pessoa humana, cfr. o n.º 2 do artigo 31.º da CRA;
  10. … Os tribunais a quo e ad quem, ao terem condenado o arguido sem que tenha havido uma prova… a prova entendida como actividade, é também garantia de realização de um processo justo, de eliminação do arbítrio… ;
  11. Princípio da legalidade e Supremacia da Constituição;
  12. … A manifesta ignorância dos prazos para o primeiro interrogatório do arguido e a condenação tardia, fora dos casos previstos pelo artigo 64.º, conjugado com o artigo 6.º ambos da CRA, demonstram um autêntico desrespeito ao texto constitucional…;
  13. O arguido … sofreu e continua sofrendo uma injusta privação da liberdade, porque a experiência da vida, ajuda-nos a dissipar a dúvida segundo a qual, ninguém morre por conta de duas bofetadas de pá, dois dias depois, tal conclusão do Tribunal só seria possível se houvesse autópsia ou exumação do cadáver;
  14. Toda a privação da liberdade que se baseia em arbitrariedade, sem meios de prova idóneos … é contra a dignidade da pessoa humana e deve ser automaticamente sanada, por violar uma das garantias dos Estados constitucionais contemporâneos;
  15. O Tribunal deveria ter assegurado que se respeitasse os direitos, liberdades e garantias do arguido no estrito cumprimento da sua dignidade… e não condenar de forma injusta;
  16. Quando se admite violar os direitos, liberdades e garantias do arguido e o tribunal mostra-se inoperante para a defesa dos mesmos, estamos também de forma categórica a assumir a violação do princípio da legalidade e da supremacia da Constituição…;
  17. Outrossim, ignorou o Tribunal Supremo que ficou privado da sua liberdade, acima do prazo legal, ou seja, foi condenado 14 meses depois da sua detenção;
  18. A condenação pelo crime de homicídio baseou-se em duas bofetadas desferidas ao malogrado, que não sofrera hematomas ou sinais visíveis de agressão;
  19. … No mínimo o arguido deveria ser condenado pelo crime de ofensas corporais e não de homicídio.

O Recorrente terminou as alegações, solicitando que o Acórdão do Tribunal Supremo seja totalmente revogado. 

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

 II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), normas que estabelecem o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”, e do prévio esgotamento nos Tribunais Comuns dos recursos legalmente previstos.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

O Recorrente interpôs recurso da decisão proferida, pela 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do processo n.º 2892, assim sendo tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente nos termos do artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade do acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2892.

V. APRECIANDO

O Recorrente invoca nas suas alegações, que o Acórdão Recorrido violou “o princípio do in dubio pro reo, da presunção da inocência, cfr. o n.º 2 do artigo 67.º o princípio da privação da liberdade, nos termos do artigo 64.º da CRA; o princípio da descoberta da verdade material; o princípio da dignidade da pessoa humana, cfr. o n.º 2 do artigo 31.º e o princípio da supremacia da Constituição e da legalidade cfr. o artigo 6.º todos da CRA.”

A. Sobre a violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção da inocência.

O Recorrente alega que o acórdão recorrido violou o princípio do in dubio pro reo e da presunção da inocência, uma vez que “… foi julgado e condenado sem, no entanto, o próprio tribunal da Comarca de Benguela e o Tribunal Supremo soubessem em concreto o objecto do crime”.

O princípio do in dubio pro reo, tem como substrato a tese de que, sempre que a prova seja insuficiente e não conduza à formação de um juízo de certeza sobre a existência da infração ou de que foi o arguido que cometeu, deve ser absolvido. V. Grandão Ramos, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013,Pág. 79.

Dos autos, constata-se que foram praticadas actividades probatórias e produzidas provas no processo, que conduziram o tribunal à formação do juízo de certeza e que culminou na condenação do Recorrente.

De salientar que os juízes gozam do poder-dever da livre apreciação da prova, atribuindo o valor probatório que julgarem ajustados ao processo, assim, não compete ao Tribunal Constitucional valorar ou graduar os meios de prova, nem determinar as provas que deveriam ser produzidas, que serviriam de base para a condenação do Recorrente, a menos que fosse uma prova imposta por lei ou que a sua produção fosse feita em violação à Constituição, o que não se constata no caso em análise.

Neste ínterim, o Tribunal Constitucional entende que o Acórdão recorrido não ofendeu os princípios do in dubio pro reo e da presunção da inocência estabelecidos nos artigos 2.º n.º 2 e 67.º da CRA.

   B. Princípio da descoberta da verdade material

O Recorrente alega ainda que, foi violado o princípio da descoberta da verdade material “por não ter sido feita a diligência mais necessária e indispensável que é a autopsia ou a exumação do cadáver como meios idóneos para determinar o culpado”.

O Tribunal Constitucional não corrobora desse entendimento, uma vez que os meios de prova invocados pelo Recorrente (autópsia ou a exumação), não são os únicos meios de prova, tampouco, determinantes para alcançar a verdade material. Ora, o julgador no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, pode fazer recurso a outros meios de provas e alcançar a verdade material.

Consta dos autos, a fls. 8, o certificado de morte da vítima, o mesmo detalha que a causa da sua morte resultou de um trauma crânio-encefálico severo, por agressão.

Com base nesse certificado, o tribunal alcançou os factos que constituíam o objecto do processo, pelo que, ao ter prescindido de realizar a produção de outras diligências de provas (autópsia ou a exumação), ainda que desejáveis, não configura, por si só, uma ilegalidade, nem habilita este Tribunal a declarar inconstitucional o acórdão, pois, no sistema processual penal angolano vigora o princípio da liberdade de prova e não o da taxatividade ou vinculação da prova.

De realçar que, o certificado de morte tem o seu valor em juízo, sem perder de vista que não foi o único meio de prova de que se suportou o tribunal para condenar o aqui Recorrente.

Pelo exposto, este Tribunal entende que o Acórdão Recorrido não violou o princípio em causa.

C. Sobre a violação do direito à liberdade e do princípio da supremacia da Constituição e da legalidade 

O Recorrente alega que “o tribunal a quo durante toda fase de discussão e julgamento, não se dignou em analisar a privação arbitrária da liberdade do arguido… a detenção ocorreu no dia 30 de Setembro 2017, mas o interrogatório deu-se apenas no dia 2 de Outubro de 2017 e a condenação no dia 5 de Dezembro de 2018; Ignorou o Tribunal Supremo que o Recorrente ficou privado da sua liberdade, acima do prazo legal, ou seja, foi condenado 14 meses após a sua detenção”.

Nos termos da Lei n.º 25/15 de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), então em vigor, havia lugar a detenção, sempre que se verificassem fortes indícios de que a pessoa praticou uma infracção penal, punível com pena privativa de liberdade, devendo o arguido detido ser interrogado pelo Magistrado do Ministério Público, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas após a detenção.

Compulsados os autos, verifica-se que o Recorrente foi detido no dia 01 de Outubro de 2017 e não no dia 30 de Setembro de 2017, como referiu nas suas alegações, tendo sido submetido a interrogatório, no dia 02 de Outubro de 2017, vide fls. 11, 12 e 13 dos autos.

Tendo em consideração que o Recorrente foi detido no dia 1 de Outubro de 2017 (por haver fortes indícios do cometimento do crime), e logo no dia a seguir à sua detenção (antes de ter decorrido 48 horas), foi apresentado ao Magistrado do Ministério Público para interrogatório, não houve qualquer violação do seu direito a liberdade, visto que a detenção e o interrogatório observaram os pressupostos estabelecidos na lei.

Acresce o Recorrente que “…o Tribunal Supremo ignorou que o Recorrente ficou privado da sua liberdade, acima do prazo legal, ou seja, foi condenado 14 meses depois da sua detenção”.

Os nºs 1 e 2 do artigo 40.º da Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP, vigente à data dos factos), consagrava que:

        1. A prisão preventiva deve cessar quando, desde o seu início decorrem:                                                                                    

  1. Quatro meses sem acusação do arguido;
  2. Seis meses sem pronúncia do arguido;
  3. Doze meses sem condenação em primeira instância.                                                                                                                                                                                                                                                                                                            2. Os prazos estabelecidos nas alíneas do número anterior são acrescidos de dois meses, quando se trate de crime punível com pena de prisão superior a 8 (oito) anos e o processo revestir de especial complexidade…

De acordo com os autos, o Recorrente foi condenado a 14 meses depois da sua detenção, o que para ele configurou uma privação ilegal da liberdade, por excesso de prisão preventiva.

Porém, o n.º 2 do artigo supra, permitia a prorrogação da prisão preventiva para mais dois meses, mediante despacho devidamente fundamentado e respeitando os requisitos.

Compulsados os autos, verifica-se que, de facto, não houve qualquer despacho de prorrogação do prazo da prisão preventiva, conforme se pode vislumbrar a fls. 23 verso e 24, o que significa que a manutenção da prisão preventiva para lá do prazo vertido no despacho que a determinou, atentou contra o direito constitucional à liberdade do Recorrente, conquanto, a prorrogação não opera ope legis, nem de forma automática.

Não obstante, a violação da liberdade provocada pelo excesso de prisão preventiva, deveria ter sido objecto de impugnação autónoma, através do expediente de habeas corpus. A apreciação ou valoração das suas consequências em sede deste processo principal está prejudicada de inutilidade superveniente, visto que a decisão a ser proferida sobre este recurso extraordinário vai determinar, naturalmente, a sua liberdade ou a manutenção da prisão.

Acresce o Recorrente que foi violado o princípio da legalidade e da supremacia da Constituição “a manifesta ignorância dos prazos para o primeiro interrogatório do arguido e a condenação tardia, fora dos casos previstos pelo artigo 64.º, conjugado com o artigo 6.º ambos da CRA, demonstra um autêntico desrespeito ao texto constitucional…”

 A apreciação da violação desse princípio fica prejudicada, uma vez que o Recorrente traz como fundamento a ilegalidade do primeiro interrogatório e o excesso de prisão preventiva, questões já apreciadas e relativamente aos quais, este Tribunal julga impertinente e extemporâneo desencadear os seus efeitos, nesta fase do processo. Pois, o acórdão vai incidir sobre o processo principal, pelo que considera inútil declarar inconstitucional a violação da liberdade aferida, em virtude de ter havido violação dos prazos de prisão preventiva.

Quanto ao excesso de prisão preventiva é impertinente e extemporâneo, nesta fase, desencadear os seus efeitos, pois, o acórdão vai incidir sobre o processo principal, pelo que o Tribunal julga inútil declarar inconstitucional a violação da liberdade ocorrida, em virtude de ter havido violação dos prazos de prisão preventiva.

D. Princípio da dignidade da pessoa humana.

O Recorrente invoca nas suas alegações que foi violado o princípio em epígrafe, “… sofreu e continua sofrendo uma injusta privação da liberdade (…), e que toda a privação da liberdade que se baseie em arbitrariedade, sem meios de prova idóneos (…) é contra a dignidade da pessoa humana e deve ser automaticamente sanada, por violar uma das garantias dos Estados constitucionais contemporâneos”.

Verifica-se a violação desse direito fundamental sempre que não forem respeitados os direitos, liberdades e garantias do ser humano e, consequentemente, se dá a este um tratamento degradante, que ofenda a sua integridade física, moral ou psicológica.

O Recorrente junta, como causa de pedir da violação da sua dignidade, o facto de ver-se privado da sua liberdade e de entender que o julgamento e condenação não assentaram em meios de provas idóneos e, como tal, considera arbitrários. A apreciação quanto à constitucionalidade da privação da sua liberdade e dos meios probatórios já foi feita acima, tendo a mesma decaído, pelo que, o Tribunal Constitucional julga improcedente a invocada violação do princípio em pauta, nos termos do n.º 2 do artigo 31.º da CRA.

 Ante o exposto, o Tribunal Constitucional entende que o Acórdão Recorrido não violou o princípio do in dubio pro reo, da presunção da inocência, estabelecido nos artigos 2.º n.º 2 e 67.º da CRA, o princípio da descoberta da verdade material nem qualquer outro princípio constitucional relevante que determine a declaração de inconstitucionalidade do acórdão.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: 

 Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos, 7 de Setembro de 2021. 

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS 

Dra. Laurinda Jacinto Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva 

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata