ACÓRDÃO N.º 697/2021
PROCESSO N.º 826-B/2020
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam em Conferência no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Fuakatino Bernardete Ndombaxi, melhor identificada nos autos, vem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2 947, que negou provimento ao recurso interposto, por inferir que o mesmo ofende os princípios da proporcionalidade, da dignidade da pessoa humana, do julgamento justo e conforme e da verdade material, previstos nos artigos 1.º, 2.º e 72.º todos da Constituição da República de Angola (CRA) e no artigo 9.º do Código de Processo Penal (CPP).
A Recorrente apresenta (fls. 413 a 418 dos autos), em síntese, as alegações seguintes:
A Recorrente, nas suas contra-alegações para o Tribunal Supremo, levantou um conjunto de factos que o Tribunal de primeira instância teria decidido mal, mas que o Acórdão do Tribunal Supremo não prestou a devida atenção, violando assim, o princípio da proporcionalidade em direito penal, o princípio da dignidade da pessoa humana plasmado no artigo 1.° da CRA e o princípio da verdade material. Com efeito, é convicção da Recorrente que a medida emanada pelo Acórdão não é justa.
Nestes termos, atento aos fundamentos apresentados, vem a Recorrente requerer a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pelo Tribunal ad quem.
O Processo foi à vista do Ministério Público (fls. 420 dos autos) que, promoveu o seguinte:
Inconformada com o acórdão prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo no âmbito do Processo n.º 2947 que a condenou na pena única de 12 anos e 6 meses de prisão maior, veio a Recorrente no Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário por entender que o acórdão recorrido ofende os princípios da proporcionalidade, da dignidade humana, do julgamento justo e conforme e a verdade material, previstos nos artigos 2.º, 1.º e 72.º todos da Constituição da República de Angola e o artigo 9.º do Código do Processo Penal.
A Recorrente fundamenta a sua inconformação que o tribunal ad quem não provou os crimes que foi acusada e conduziram a sua condenação e não individualizou a sua responsabilidade criminal.
Ora, atento aos autos, pode-se perceber que o Tribunal ad quem operou uma nova qualificação dos factos nos termos do artigo 447.º do Código do Processo Penal, resultando daí as novas penas fundamentadas no ponto da subsunção jurídico-penal do seu acórdão.
As penas aplicadas estão dentro das respectivas molduras penais. Nestes termos, somos pela negação do provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, ambos da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é ofendida no Processo n.º 2947 que correu os seus trâmites na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “... podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 2947 que correu naquela instância e cabe verificar se tal decisão ofendeu os princípios da proporcionalidade, da dignidade da pessoa humana, da legalidade e do julgamento justo e conforme e o da verdade material, previstos nos artigos 1.º, 6.º, 65.º n.º 4, 72.º, 172.º, 175.º e 179.º, todos da CRA.
V. APRECIANDO
A Recorrente alega que o acórdão recorrido ofendeu princípios consagrados na CRA, pois nas contra-alegações apresentadas no Tribunal Supremo levantou um conjunto de factos que o Tribunal de primeira instância teria decidido mal, mas que o Acórdão recorrido não prestou a devida atenção. Alega também que, em sede de produção da prova, ficou provado que a mesma não sabia que o co-réu carregava consigo avultadas somas de dinheiro (fls. 302 e 316 dos autos) e que os lesados sempre afirmaram que foram dois indivíduos de sexo masculino que efectuaram a troca dos valores falsos, reconhecendo para o efeito apenas o co-réu Alberto Samu Capitão (fls. 211 dos autos).
Outrossim, a Recorrente alega que o acórdão recorrido não apresenta fundamentação ou elementos que justifiquem a alteração da moldura penal, que passou de 2 anos para 12 anos de prisão, violando, assim, o dever de fundamentar as decisões judiciais.
Cumpre agora decidir se o acórdão recorrido ofende ou não os referidos princípios, da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da proporcionalidade, da verdade material e do julgamento justo.
Assim:
A Recorrente alega que o acórdão recorrido ofende o princípio da proporcionalidade uma vez que a mesma foi indevidamente responsabilizada pela prática do crime de burla por defraudação pois, em nenhum momento, foi indiciada como autora ou cúmplice dos crimes praticados pelo co-réu Adalberto Samu Capitão (fls. 211 dos autos) e que os quesitos constantes dos autos são claros, reforçam o facto de que não era do seu conhecimento que o co-réu Alberto Samu Capitão estava a comercializar notas de dólares.
A Recorrente realça, ainda, que o facto cometido e a diferenciação da sanção penal que lhe é aplicada tem de corresponder à medida da culpa no caso concreto, uma vez que o crime é pessoal e intransmissível (n.º 4 do artigo 65.º da CRA).
O princípio da proporcionalidade, aqui alegado pela Recorrente, submete cada um e todos ao império do direito, assente nas noções básicas de racionalidade, eficiência e exclusão do arbítrio, impondo a protecção do indivíduo contra intervenções estatais desnecessárias ou excessivas, que causem aos cidadãos danos mais graves que o indispensável para a protecção dos interesses públicos. É, portanto, inseparável à própria ideia de direito e justiça. Logo, qualquer restrição de uma liberdade garantida constitucionalmente por um direito fundamental deve ser sempre necessária, adequada e proporcional ao mal praticado pelo transgressor e aos fins visados pelo direito penal.
Este princípio (da proporcionalidade) também se inscreve no princípio da dignidade da pessoa humana, que nada mais é do que o fundamento do Estado democrático de direito e os direitos individuais a ele inerentes. É nesta perspectiva que a Recorrente alega, também, que o Acórdão recorrido ofendeu o princípio da dignidade da pessoa humana, ao não ter em atenção as suas contra-alegações e o princípio da separação de culpas. Não é pelo facto de o co-réu ser namorado da Recorrente e terem se deslocado (juntos) para a Província da Lunda-Norte, que a mesma tinha necessariamente que ter conhecimento e estar envolvida na sua conduta criminosa.
O princípio da proporcionalidade vem constitucionalmente consagrado nos artigos 57.º n.º 1, 58.º n.º 3 e 198.º n.º 1, todos da CRA. Segundo Ana Prata, Catarina Veiga e José Manuel Vilalonga, o princípio da proporcionalidade, é o princípio “[...] segundo o qual as restrições de direitos e liberdades fundamentais só podem legitimamente ter lugar desde que proporcionais à gravidade e aos efeitos dos factos cuja prática as fundamenta”. “O princípio da proporcionalidade tem aplicação, nomeadamente, em matéria de penas (quer no momento da sua previsão legal, quer no momento da determinação concreta da medida da pena a aplicar) ”. In Dicionário Jurídico, Direito Penal e Direito Processual Penal, Vol. II, 2.ª Edição, 2009, pág. 391.
Em matéria penal, a exigência de proporcionalidade deve ser determinada pelo equilíbrio existente na relação entre o crime e a pena, ou seja, entre a gravidade do ilícito penal e a pena aplicada. Ou seja, a intervenção penal deve se apresentar de maneira proporcional ao valor que busca preservar, o que implica dizer que qualquer limitação a este bem deve ser obrigatoriamente balanceada, a fim de que ocorra apenas quando for necessário, adequado e proporcional à protecção de outro bem jurídico igualmente relevante.
É, aliás, nesta perspectiva, que o acórdão recorrido (fls. 384 verso) estabelece o equilíbrio e a adequação da sua decisão ao referir, no âmbito da apreciação dos factos, que “Acompanhamos o acórdão recorrido por ser credível a prova recolhida ao longo da instrução preparatória e bem sindicada em audiência de julgamento e discussão da causa, sendo certo que o casal é portador de carácter perverso, gostando de levar vida fácil, não olhando à meios para se enriquecerem, enganando incautos, com cenários fraudulentos. Foi o que fizeram desde o início da operação até à chegada ao Município do Zagi, no qual, venderam notas falsas aos ofendidos Husseine Mohamed Hashi e Sidy El Moktari. Assim sendo, nada mais há para acrescentar que não seja a atribuição da significância jurídica que merece tão reprovável conduta realizada pelo casal.”
Consequentemente, em termos de subsunção jurídico-penal, este mesmo Acórdão pressagia que “Ao decidirem conjuntamente alugar uma viatura em Luanda e com a mesma viajarem à Lunda Norte para comercializarem moeda estrangeira que bem sabiam não ser verdadeira, os réus em co-autoria material cometeram um crime de passagem e colocação de moeda falsa p. e p. pelo art.º 27º n.º 1 e 29º n.º 1, ambos da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro em concurso real de infracções com o crime do tipo de burla por defraudação p. e p. pelo art.º 451 º n.º 1 e 425º n.º 5, do Cód. Penal, ambos sob forma continuada, para os quais se convola a acusação sob o agasalho do art.º 447º do C.P.P.”
Nestes termos, o acórdão recorrido não ofende o princípio da proporcionalidade, nem o princípio da dignidade da pessoa humana, previstos na CRA e aludidos pela Recorrente.
B. Sobre o princípio da legalidade, o direito a julgamento justo e conforme e o dever de fundamentar as decisões
A Recorrente alega que o acórdão recorrido não observou o princípio da legalidade, uma vez que, nas suas contra-alegações para o Tribunal Supremo, levantou um conjunto de factos, a que não se prestou a devida atenção. Por outro lado, apesar de ficar provado, em sede de audiência de julgamento, que a mesma não sabia que o co-réu, carregava consigo avultadas somas de dinheiro, foi condenada na prática do crime de burla por defraudação.
O princípio da legalidade, que a Recorrente alega ter sido ofendido pelo acórdão recorrido, em termos gerais, impõe que ninguém seja obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei. É, portanto, de modo prático, a própria lei que, contendo ordem de comando obrigatório, delimita o próprio poder Público, com vista a não permitir que o Estado exerça um poder injusto, em respeito às máximas latinas: Nullum crimen, nulla poena sine lege (reserva da lei); nulla poena sine crimen (princípio da conexão); Nullum crimen, nulla poena sine lege certa (Princípio da tipicidade) e Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia (proibição da retroactividade).
No âmbito do Direito Penal o princípio da legalidade vem previsto no artigo 1.º do Código Penal vigente, na altura do cometimento da infracção penal, expondo que o “Crime ou delito é o facto voluntário declarado punível pela lei penal”. Mantém-se a sua prescrição no n.º 1 do artigo 1.º do novo Código Penal aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, ao estabelecer que:
“Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática”.
É interessante notar também que a própria CRA, como lei suprema, garante a observância do referido princípio no âmbito penal, nos seus artigos 65.º, 66.º, 67.º e seguintes.
Também o n.º 2 do artigo 6.º da CRA estabelece expressamente o princípio da legalidade ao referir que “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis” e o n.º 2 do artigo 65.º estabelece que “Ninguém pode ser condenado por crime senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados por lei anterior”. Ou seja, trata a Lei fundamental de prevêr limitações ao Estado em matéria penal, onde só poderá haver em regra alguma pena se antes houver uma lei com a sua respectiva sanção.
O acórdão recorrido evidencia que a lei aplicada era a lei vigente na altura, isto é, anterior ao cometimento da infracção criminal e ao consequente julgamento (1/4/2019) ao referir-se a fls. 384 verso e 385 dos autos que “Ao decidirem conjuntamente alugar uma viatura em Luanda e com a mesma viajarem [8 de Junho de 2018, fls. 384] à Lunda Norte para comercializarem moeda estrangeira que bem sabiam não serem verdadeira, os réus em co-autoria material cometeram o crime (...) p. e p. pelo artigo 27.º n.º 1, ambos da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro em concurso real de infracções com o crime (...) p. e p. pelo artigo 451.º n.º 1 e 425.º n.º 5 do Cód. Penal, ambos sob forma continuada, para os quais se convola a acusação sob o agasalho do artigos 447.º do CPP”. “Outrossim, sendo a Ré Fuakatino Bernardete N`dombaxi militar, não se provou o crime de uso e porte ilegal de arma de fogo sem licença ou autorização p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 8.º, 9.º, 123.º e 127.º, todos do Diploma Legislativo n.º 33778, de 22 de Novembro de 1967 e § único do artigo 169.º do Cód. Penal...”
Por outro lado, entende a Recorrente que o acórdão recorrido, ao alterar a moldura penal de 2 anos para 12 anos de prisão, viola o direito ao julgamento justo e conforme, pois não prestou atenção a factos que o Tribunal de primeira instância teria decidido mal, conforme consta nas suas contra-alegações. Ademais, a Recorrente alega que a Constituição da República de Angola atesta que todos os cidadãos têm direito a um julgamento justo e assegura a pessoalização e a intransmissibilidade do crime praticado por cada indivíduo (fls. 211, 302 e 306 dos autos).
O direito a julgamento justo é um direito fundamental que visa essencialmente concretizar o afastamento dos casos de injustiça, pois, ampara qualquer cidadão contra intervenções judiciais arbitrárias. Segundo Raul Araújo e Elisa Nunes “O direito a julgamento justo é um pressuposto do Estado democrático de direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Ela tem de assegurar um julgamento público e num prazo razoável e garantias de defesa material”. In Constituição da República, Anotada, Tomo I, 2014, pág. 398.
Assim sendo, a concretização da norma processual deve tomar em conta as necessidades do direito material, por ser este o seu fim último, isto é, ... a existência do direito processual penal se justifica pela necessidade da aplicação do direito penal aos casos concretos submetidos a julgamento dos tribunais. É através do direito processual penal que se aplica o direito penal. In Vasco A. Grandão Ramos, Direito Processual Penal – Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2.ª Edição, 2015. Pág. 12.
Como qualquer outro ramo do Direito, a primeira e a principal fonte do Direito processual penal é a Constituição da República de Angola, por isso, os alicerces do direito processual penal são, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado. In Jorge de Figueiredo Dias, Lições de Direito Processual Penal, 1988/89, pág. 27. O direito a julgamento justo e conforme vem consagrado no artigo 72.º da CRA, ao prescrever que a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei.
O n.º 1 do artigo 67.º da CRA garante que qualquer cidadão apenas pode ser submetido a julgamento nos termos da lei e o n.º 2 in fine do artigo 174.º confere competência aos tribunais, ao dirimirem conflitos de interesse público ou privado, para assegurarem a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acusatório e do contraditório e reprimirem as violações da legalidade democrática.
As características próprias de um julgamento justo fundam-se, essencialmente, no direito de estar presente num tribunal, de ter um julgamento público e célere perante um tribunal independente e imparcial e de ter um advogado de escolha. Estas características estão implícitas no artigo 8.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, no artigo 10.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aplicadas na República de Angola ex vi dos artigos 13.º e 26.º da CRA.
Ora, não cabe razão à Recorrente ao alegar que o Acórdão recorrido tenha violado o direito a julgamento justo e conforme, porquanto, a mesma foi acusada pelo Ministério Público, pronunciada e submetida a julgamento pelo Tribunal Provincial da Lunda-Norte, em que esteve presente, os seus mandatários legais praticaram todos os actos processuais sendo-lhes, assim, proporcionado o exercício de direitos, liberdades e garantias. Interpôs recurso da decisão do Tribunal de primeira instância e, inconformada com o Acórdão do Tribunal Supremo, a Recorrente interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da CRA e da lei (artigos 27.º, 28.º e 67.º da CRA), e foi sob tais actos que o Tribunal Supremo decidiu.
No mesmo contexto, a Recorrente alega, também, que o Acórdão recorrido não observou o dever de fundamentar as decisões judiciais, ao alterar a pena aplicada de 2 anos para 12 anos de prisão e condená-la pela prática dos crimes de passagem e colocação de moeda falsa e de burla por defraudação, sem apresentar uma argumentação ou elementos que justifiquem a alteração da moldura penal.
O dever de fundamentação necessita de expressar-se em todas as decisões judiciais e não só. As decisões judiciais devem ter como base argumentos, porque a questão debatida não é evidente e pretende-se defender tal decisão, com vista a persuadir, fundamentalmente, a parte vencida, para que veja um facto que não quer ver, diante da descrição dos factos, da qualificação dos mesmos (factos) e da decisão. O tribunal não pode fundamentar a sua decisão sobre factos que não se tenham apresentado no debate (prova dos factos), pois é nas provas que o Juiz vê ou não vê os factos considerados provados ou não provados.
De acordo com J. J. Gomes Canotilho, as decisões dos tribunais devem ser sempre fundamentadas em razão de propiciar: (1) controlo da administração da justiça; (2) exclusão do carácter voluntarístico e subjectivo do exercício da actividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, 2003, pág. 667.
O dever de fundamentar as decisões, sejam elas interlocutórias, sentença ou acórdão, é imprescindível em qualquer julgamento ou sobre alguma dúvida suscitada pelas partes no processo, com vista a proceder o controlo do princípio da constitucionalidade e da legalidade da função jurisdicional, resultantes da interpretação das leis de forma imparcial, correcta e justa, para que se afaste o arbítrio judicial, conforme consagram os artigos 158.º e 659.º n.º 2 do CPC, os artigos 11.º e 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, que estabelece os princípios e as regras gerais da organização e funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum e o n.º 2 in fine do artigo 1.º do Decreto- Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo.
O acórdão recorrido (fls. 383 a 385) não é uma decisão discricionária, desprovida de fundamentação, como alega a Recorrente, pois, conforme ensina V. Grandão Ramos, A convicção do juiz é uma convicção fundamentada, a partir de dados objectivos fornecidos pelo processo, com vista a uma finalidade específica – a descoberta da verdade material ou objectiva, a verdade tal como ela, na realidade dos factos, ocorreu. Cumpridas, entretanto, as normas de direito probatório, o juiz é livre de valorar, no sentido que entender, “a prova produzida” a tomar a decisão que lhe ditar a sua consciência de julgador. (In Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2.ª edição, 2015, págs. 206/207.
Entrementes, o acórdão recorrido cfr. fls. 384 verso dos autos, fundamenta a sua decisão de convolar para infracção diversa da acusação do Ministério Público, a moldura penal de 2 anos para 12 anos, nos termos do artigo 447.º do CPP que estabelece o seguinte: O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente.
O acórdão recorrido fundamenta que... os réus em co-autoria material cometeram um crime de passagem e colocação de moeda falsa p. e p. pelo art.º 27.º n.º 1 e 29.º n.º 1, ambos da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro em concurso real de infracções com o crime do tipo de burla por defraudação p. e p. pelo art.º 451.º n.º 1 e 425.º n.º 5 do Cód. Penal, ambos sob forma continuada, para os quais se convola a acusação sob o agasalho do art.º 447.º do C.P.P.” (fls. 384v dos autos). Isto porque, em fls. 385 dos autos considera que “O crime de passagem e colocação de moeda falsa é punível com a pena de 2 a 9 anos de prisão maior e de burla por defraudação é punível com a pena de 8 a 12 anos de prisão maior”. Ademais, “por constar do despacho de pronúncia, agravam a responsabilidade penal do réu as circunstâncias: 1.ª (premeditação), 7.ª (ter sido o crime cometido por duas ou mais pessoas), 24.ª (obrigação especial de não cometer, só para a ré Fuakatino Bernardete Ndombaxi, por ser membro das FAA) e a 34.ª (acumulação de infracções), todas previstas nos termos do artigo 34.º do Cód. Penal”.
Nestes termos o acórdão recorrido não violou o princípio da legalidade, nem o direito a julgamento justo e conforme e o dever de fundamentação das decisões.
C. Sobre o princípio da verdade material
A Recorrente alega que foi ofendido o princípio da verdade material, uma vez que o Tribunal recorrido não levou em conta as provas produzidas em fase de discussão e julgamento no Tribunal de primeira instância.
Nesta conformidade alega a Recorrente que o Tribunal Supremo não considerou que:
- foi absolvida pelo Tribunal de primeira instância, de outros crimes de que vinha acusada, pelo facto deste Tribunal não ter obtido provas bastantes para que a pudessem responsabilizar pelos crimes de associação criminosa, detenção, uso e porte de arma de fogo, tendo apenas sido responsabilizada como cúmplice, na prática do crime de burla por defraudação.
- ficou provado que a mesma não sabia que o co-réu carregava consigo avultadas somas de dinheiro e que os valores monetários não pertenciam a Recorrente.
- ficou igualmente provado que a Recorrente era comerciante e a ideia de alugar a viatura foi para que pudesse transportar a sua mercadoria.
O princípio da veracidade ou da verdade material traduz-se na procura da verdade real dos factos que estão em apreciação, de modo que, antes, o tribunal profere o despacho de pronúncia que representa a transição da fase preparatória para a fase de julgamento. É, portanto, uma ... confirmação, pelo juiz, do juízo de probabilidade sobre a existência real do crime e da pessoa do arguido. In Vasco A. Grandão Ramos, 2011/5, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2.ª edição, 2015, pág. 10. Ou seja, confirmação dos indícios tidos como suficientes para a dedução da acusação.
Portanto, enquanto na fase final preparatória o juízo a formular é de probabilidade de futura condenação. Na fase de julgamento faz-se emergir a distinção entre juízo de certeza e juízo de probabilidade. Nesta fase, se reserva o juízo de certeza, a prova dos factos alegados em juízo, e não numa probabilidade. Não é, portanto, um mero preciosismo, é uma imposição legal para que o Tribunal obtenha uma decisão justa e imparcial, dado que a convicção alcançada durante o processo preparatório não reúne as condições necessárias para fazer justiça num Estado de direito.
Significa isto, que é na fase de julgamento, presidida pelo juiz, que se verifica se os mesmos factos alegados pela defesa estão provados, tendo igualmente de verificar se os contra-indícios são concordantes entre si e enfraquecem ou afastam a utilização dos indícios condenatórios. Nota-se que cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório). Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial no âmbito do sistema acusatório.
Porquanto, diferente do Ministério Público que acusa quando existam indícios suficientes da prática do crime e de quem são os seus agentes (artigo 349.º CPP então vigente), o Tribunal pode, tanto condenar, quando existe suporte probatório para uma convicção processualmente fundada sobre a responsabilidade do agente, como absolver sempre que assim não for, diante da defesa e os seus contra-indícios.
Assim, lê-se no acórdão recorrido em fls. 384 e 384 verso, o seguinte: “O Tribunal mediante quesitos recobriu o essencial da matéria controvertida contida no libelo acusatório, oferecendo adequadas respostas”.
“Os réus são namorados e no dia 8 de Junho de 2018 alugaram uma viatura (...) e com a mesma viajaram até a vila mineira do Zagi na Lunda Norte, onde lá postos junto à loja do ofendido Husseine Mohamed Hashi alegaram possuírem Usd 5.200.00, para convertê-los em moeda nacional no valor de Kz. 2.028.000,00”. “... a operação cambial foi efectuada de comum acordo entre as partes, porém, momentos depois de os réus se terem retirado da loja, o ofendido apercebeu-se que os dólares eram falsos”.
“Já no dia seguinte, ou seja, aos 9 de Junho de 2018, os réus postos na empresa Ndombolo, no mesmo Município do Zagi, venderam ao ofendido Sidy El Moktari Usd 9.200.00 falsos, recebendo em troca Kz. 3.640.000,00”.
“O casal alugou a viatura com o propósito de deslocar-se à região leste do País passando por Malange e Saurimo, transportando Usd 44.100,00 contrafeitos e para encobrir as pretensões ilícitas, trazia coisas diversas supostamente destinadas para serem vendidas ao longo do percurso”.
“Finalmente, entenderam os Julgadores que há evidências da ré Fuakatino Bernardete Ndombaxi facilitar o crime do réu Alberto Samu Capitão, pelo facto de ter sido ela quem alugou a viatura, apoiou-lhe na viagem e beneficiou de vantagens monetárias”.
“Acompanhamos o acórdão recorrido por ser credível a prova recolhida ao longo da instrução preparatória e bem sindicada em audiência de julgamento e discussão da causa ...”. “Assim sendo, nada mais há para acrescentar que não seja à atribuição da significância jurídica que merece tão reprovável conduta realizada pelo casal”.
Isto posto, o Tribunal Constitucional entende que o acórdão recorrido não ofende o princípio da descoberta da verdade material alegado aqui pela Recorrente.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional conclui pela inexistência de razões para admitir a ofensa de quaisquer princípios, direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República de Angola, como: os princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da proporcionalidade, da verdade material e do julgamento justo e conforme, alegados pela Recorrente.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 8 de Setembro de 2021.
O JUIZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Jacinto Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Victória Manuel da Silva Izata