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ACÓRDÃO N.º 698/2021

 PROCESSO N.º 829-A/2020

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)

Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Maria de Fátima dos Santos Correia Dias e Pedro Duarte Mateus Torres melhor identificados nos autos, vêm ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 379/17, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), por inferir que o mesmo ofende os princípios da tutela jurisdicional efectiva, do dever de fundamentação das decisões judiciais, da omissão de pronúncia, da legalidade, da igualdade, da igual protecção perante a lei, do acusatório, do contraditório, da presunção da inocência,  do inquisitório e da verdade material, bem como o direito a julgamento justo e conforme, previstos no artigo 29.º, 175.º,  no n.º 1 do artigo 177.º, no artigo 72.º, no n.º 2 do artigo 6.º e no artigo 23.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).

O Acórdão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo confirmou a decisão recorrida, que absolveu a Ré Sílvia Beatriz Dias dos Santos, do cometimento do crime de que vinha acusada e pronunciada, e que condenou o réu Pedro Duarte Mateus Torres na pena de 17 anos de prisão maior pela prática do crime de homicídio, na qualidade de autor material, alterando, contudo, a indemnização fixada em Kz. 2.000.000,00, beneficiando do perdão de ¼ da pena aplicada (fls. 512 e segs. e 662 e 663 dos autos).

Os Recorrentes, nos termos do artigo 45 LPC, apresentaram (fls. 723-740v dos autos), individualmente, as suas respectivas alegações.

A Recorrente Maria de Fátima Correia Dias, na qualidade de ofendida (assistente nos autos), alegou, no essencial, o seguinte:  

  1. O processo crime n.º 2159/11-C, que correu trâmites no Tribunal Provincial de Luanda e posteriormente em sede de recurso, processo n.º 739/17, na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que agora se recorre teve como arguidos: Sílvia Beatriz Dias dos Santos e Pedro Duarte Mateus Torres, ambos cônjuges.
  2. No presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (R.E.I) cujas alegações, hic et nunc se oferecem, apenas se pretende sindicar da constitucionalidade da decisão da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferida relativamente a ré Sílvia Beatriz Dias dos Santos.
  3. Assim, trata-se de um R.E.I. parcial, estando a Recorrente conformada com a decisão proferida em relação ao réu Pedro Duarte Mateus Torres.
  4. A ré Sílvia Santos é filha da vítima nos autos e sobrinha da Recorrente e, em vida daquela (vítima), não mantinha boas relações com a mesma, por sinal sua própria mãe biológica, que sempre se queixou junto de familiares próximos de maus tratos, por parte da Ré.
  5. Após a morte de sua mãe, a ré Sílvia dos Santos, não, informou tal facto aos demais familiares tendo tentado ocultar o cadáver, no sentido de não serem conhecidas as reais causas da morte.
  6. Aliás, muito estranho foi o facto de a Ré nunca ter feito participação criminal da morte de sua mãe, muito menos mostrar sinais de preocupação sobre o infausto acontecimento, e,
  7. Mais do que isto, a empregada que trabalhava em casa da arguida, “desapareceu” e nunca houve por parte desta algum interesse em saber da sua localização, de modo a obter algum esclarecimento sobre os factos, visto que no dia sucedido a empregada doméstica encontrava-se em casa.
  8. Este comportamento da Ré, em não informar aos familiares mais próximos sobre a morte de sua mãe, não fazer participação criminal, “tentativa” de ocultar o cadáver, não se importar com o “desaparecimento” da empregada doméstica que estava presente no dia em que ocorreram os factos e a existência de um boletim de óbito adulterado, antes da autópsia, constitui prova mais do que evidente do envolvimento da arguida no crime.
  9. A decisão recorrida, para o desagrado da justiça e do Estado Democrático e acima de tudo de Direito, não fundamentou de forma clara a absolvição, ou seja, a manutenção da decisão de primeira instância que igualmente sem fundamentar absolveu a arguida.
  10. O Tribunal recorrido (3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo) para justificar” a decisão da absolvição da arguida que aqui e agora se recorre diz apenas o seguinte: “Sobre a co-ré Sílvia Beatriz Dias dos Santos, por ter tido uma relação pouco amistosa com a vítima, por sinal sua mãe, recaíram suspeitas sobre ela ter sido a causadora da sua morte; tais suspeitas não passaram mesmo disso; porquanto, ela não se encontrava em casa quando a vítima foi morta, nem se vislumbra nos autos elementos de prova suficiente para se criar com segurança juízo de certeza, para a sua incriminação; pois, persistem dúvidas dela ter consertado com o Réu Pedro a comissão dos factos, devendo, por isso em homenagem ao principio “in dúbio pro reo” ser absolvida, no que corroboramos com o tribunal “a quo”. (páginas 5 e 6 do acórdão recorrido).
  11. O Estado Angolano protege o direito à vida (artigo 30.° da CRA) e isto pressupõe que nos casos em que tenha havido morte violenta ou por intervenção de terceiro, o Estado desenvolva acções concretas para não apenas responsabilizar os perpetradores do infausto, como também assegurar uma justa compensação pelo mal causado aos legítimos representantes da vítima.
  12. Ora, a legalidade da acção penal, a tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA) impõe que quer a investigação, quer o processo e a discussão da causa se revistam do maior rigor possível para apurar não apenas a inocência dos arguidos, mas também, caso se aplique, a responsabilização efectiva dos
  13. Assim, não é possível que dentro da tutela jurisdicional efectiva, da garantia e protecção da vida humana e a legalidade da intervenção penal, não deixem de responsabilizar quem, de forma óbvia e notória, tenha tomado parte de uma acção cujo fim foi pôr termo á vida de uma pessoa de forma egoísta e
  14. O teor da decisão do Tribunal “a quo” corroborada pelo Tribunal “ad quem”, recorrido, e que serviu igualmente para fundamentar a decisão da absolvição é o seguinte: “Factos não provados: A co-arguida SILVIA DOS SANTOS, no dia 17 de Março de 2011, em hora não especificada, entrou com o co-arguido PEDRO TORRES, no quarto da vítima e numa acção rápida e sem ruído a agarraram-na pelo pescoço e a esganaram; A co-arguida SILVIA DOS SANTOS, planeou juntamente com o co-arguido PEDRO TORRES, a morte da vítima,”.
  15. Dar esses elementos por não provados, depois de uma submissão ao crivo crítico de todos elementos que concorreram para o crime, continuar a nutrir o mesmo amor e carinho pelo esposo e não levantar nenhuma suspeita sobre ele, depois de se saber que a morte da vítima foi por esganamento e asfixia e não fazer nenhuma participação criminal contra a empregada, muito menos contra o co-arguido é por si só ilustrativo do seu envolvimento, por isso uma absolvição por dúvida razoável é por si mesmo revelador do descaso que o Tribunal fez à vida da vitima.
  16. Como resulta da jurisprudência da Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos “é dever de Estado proteger a vida humana contra ações injustificadas ou arbitrárias por parte das autoridades públicas e pessoas privadas. O dever do Estado de proteger a vida foi interpretado de forma mais abrangente, incluindo, não só a proibição de matanças arbitrárias por parte de agentes do Estado. Os estados assim como os atores não estatais são conhecidos por violarem o direito à vida. O Estado, porém, tem obrigações legais de respeitar o direito à vida, não o violando e de o proteger mediante proteção de pessoas, no quadro da sua jurisdição, mesmo em relação aos atos de atores não estatais. É jurisprudência e recomendação da Comissão Africana que apesar de um ato ter sido praticado por um indivíduo (privado ou sem autoridade pública) e por isso, não imputável diretamente ao Estado, pode gerar responsabilidade do Estado, não por causa do ato propriamente dito, mas devido a falta de diligências por parte deste Estado em impedir que tais violações tenham ocorrido ou por não ter dado o devido apoio as vítimas”. Logo,
  17. É simples concluir, com a Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos que “o direito à vida é o centro fulcral e a fonte de onde brotam todos os outros direitos, qualquer violação deste direito sem que se tenha observado previamente um processo equitativo, constitui uma privação arbitrária da vida. Por isso, o que aqui se assiste é claramente uma violação do direito á vida em desfavor da vítima e da lesada e a favor dos seus perpetradores. A Recorrente se vai bater mesmo nas instituições
  18. O Tribunal recorrido e, consequente, decisão proferida deixou de proteger o direito fundamental a vida humana, previsto no artigo 30.º da CRA, objecto do
  19. A decisão proferida violou o dever de fundamentação das decisões judiciais, isto porque, no essencial considera apenas que o facto de a arguida não se encontrar no lugar do sucesso, ou seja, o Tribunal recorrido parte infelizmente de um pressuposto errado relativamente a classificação dos agentes em Direito Penal. A arguida embora não tenha executado na qualidade de autora nenhum acto que levasse a morte de sua mãe, mas praticou actos de auxílio na forma de cumplicidade por omissão em crime por acção, por um lado. Por outro lado, a CRA obriga que os Tribunais tomem as decisões com base na “Constituição e na lei”. A decisão recorrida violou igualmente, o artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, sobre a fundamentação das decisões de facto e de direito.
  20. Ensina o ilustre Prof. Grandão Ramos nas suas Lições de Direito Processual Penal, pág. 249, “(...) A convicção do juiz é uma convicção fundamentada, a partir dos dados objectivos fornecidos no processo, com vista a um objectivo específico – DESCOBERTA DA VERDADE MATERIAL OU OBJECTIVA, A VERDADE TAL COMO ELA, NA REALIDADE DOS FACTOS, OCORREU. Ela só é livre no sentido de que não se subordina a determinações formais exteriores. É o critério, o saber, o senso de justiça, a consciência e a clarividência do juiz que determinam, a partir da prova, a decisão do judicial.”
  21. O direito a julgamento justo e conforme é uma garantia igualmente prevista na Constituição. Para além de estar consagrada na CRA também vem regulado no artigo 8.º da Declaração Universal dos Homens e no artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos do Homem. O Tribunal recorrido violou estes instrumentos internacionais, pois nem sequer condenou a arguida como cúmplice, não sendo, assim, justa e conforme, a decisão proferida.
  22. Não nos restam dúvidas que a decisão proferida fere a CRA, pois o legislador, mesmo devendo condena-la como cúmplice não o fez, fixando-se apenas na
  23. Os factos demonstram claramente o envolvimento da Ré, Sílvia dos Santos, no crime, pois, não só conhecia de forma perfeita os planos do co-réu Pedro Torres, mas como também nada fez após a morte da vítima, para responsabilizar os autores do crime.
  24. A “tentativa” de ocultação de cadáver para subtrair-se da justiça, bem como da realização da autópsia, no sentido de esclarecer as causas da morte da vítima é uma prova evidente.
  25. O Tribunal absolveu a arguida Sílvia dos Santos sem fundamentar a sua decisão violando, deste modo, o princípio da fundamentação das decisões judiciais.
  26. O Tribunal recorrido procedeu a uma errada qualificação dos factos e violou igualmente o princípio da descoberta da verdade material, visto que, ao não fundamentar a decisão da absolvição da Ré Sílvia dos Santos, fica provado que não foi ao fundo da questão e consequentemente valorou de forma incorrecta os factos.
  27. O Acórdão recorrido ignorou a “Teoria dos Agentes em Direito Penal”, ou seja, a decisão foi tomada como se o autor material fosse a única forma de agente do crime em Direito Penal.

A Recorrente concluiu pedindo ao Tribunal Constitucional para dar provimento ao presente recurso e declarar inconstitucional o Acórdão do Tribunal Supremo em relação à decisão proferida sobre a ré Sílvia Beatriz Dias dos Santos (fls. 705 dos autos), fazendo-se, deste modo, justiça.

O Recorrente, Pedro Duarte M. Torres (réu), apresenta a fls. 733-748 dos autos, em síntese, as seguintes alegações:

  1. O Acórdão do Tribunal Supremo, ora recorrido viola os princípios constitucionais da legalidade, do acusatório, do contraditório, da defesa, da presunção da inocência, do inquisitório e da verdade material, por ter dado como provados factos sem provas, factos com provas nulas, por condenar o Réu em afronta total à prova constante dos autos e por factos que não constam da acusação, por violar o dever de fundamentação e por omissão de pronúncia.
  2. O Acórdão do Tribunal de 1.ª instância é nulo, porque não concretiza as provas que lhe fundamentam, viola as regras da elaboração do Acórdão e condena em oposição com os seus fundamentos.
  3. Por outro lado, o Acórdão do Tribunal de 1.ª instância ofendeu os princípios constitucionais de defesa, da presunção de inocência, do inquisitório e da verdade material.
  4. O Acórdão do Tribunal de 1.ª instância não se pronunciou sobre os factos arguidos na contestação e condenou judicialmente o Réu sem que o Tribunal tivesse observado legalmente o “número legal dos juízes”, a saber três juízes de direito.
  5. O Acórdão do Tribunal Supremo, tribunal a quo, ora recorrido, proferido no âmbito do Processo n.º 739/17, apenas se pronuncia sobre a desconformidade da qualificação jurídica do Acórdão do Tribunal de 1.ª instância e sobre a falta de número legal de juízes, deixando de se pronunciar sobre os demais pontos das alegações (resumidos nas conclusões).
  6. A lei obriga que o Tribunal se pronuncie sobre todas as questões levantadas pelas partes nas instâncias, no caso, as alegações apresentadas na instância de recurso, sob pena de nulidade da sentença (Cfr. 668.º al. d), do CPC):
  7. Assim o faz para garantir que os pedidos submetidos à apreciação do Tribunal sejam alvo de justiça, quer no sentido de seu indeferimento ou no sentido do seu deferimento;
  8. Não se pronunciar sobre um pedido submetido à apreciação do Tribunal, equivale a denegação de justiça, como que se o Tribunal privasse à parte de ter acesso justiça na “defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”.
  9. À data da decisão, a lei vigente impunha que apenas os Tribunais Colectivos podem conhecer e julgar casos cuja penalidade seja superior à pena de prisão de cinco anos, o que sucede no presente caso (Cfr., artigo 97.º e 45.º n.º 2 e 3, da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, que entrou em vigor no dia 1 de Março de 2015).
  10. Ao não se observar o número legal dos juízes, ou seja, ao funcionar o Tribunal de 1.ª instância como Tribunal Singular (sem os 3.º juízes de direito) ao invés do Tribunal Colectivo, feriu a decisão proferida por aquele Tribunal com nulidade absoluta (Cfr., atrigo 98.º, n.º 7, do Código de Processo Penal).
  11. Apesar do disposto acima, o Tribunal a quo afastou o regime legal com o disposto na Resolução n.º 3/15, de 15 de Abril, no que não é possível no quadro legal e constitucional vigente.
  12. A decisão do Tribunal a quo ao não julgar procedente de que houve a violação do número legal de juízes, com as respectivas consequências, afastando a vigência das normas dos artigos 97.º e 45.º, n.º 2 e 3, da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, que se encontram em vigor na Ordem Jurídica desde o dia 1 de Março de 2015 (ver artigo 105.º da Lei n.º 2/15, de 02 de Fevereiro), violou a CRA e a lei, nomeadamente os artigos 2.º, n. 1.º, 6.º, n.º 2, e 175.º da CRA e o artigo 98.º, n.º 7.º, do Código de Processo Penal, pelo que deve ser declarada inconstitucional, com todos os efeitos legais.
  13. A omissão do Tribunal de 1.ª Instância e do Tribunal a quo das provas concretas que usou para dar como provados determinados factos e dar como não outros factos, em que termos construiu a sua análise crítica das provas, põe em causa o direito de defesa do aqui Réu, Recorrente, Pedro Tores.
  14. O direito de defesa é um direito com natureza constitucional e permite o exercício da tutela jurisdicional efectiva na sua plenitude e abrangência.
  15. Por outro lado, o Réu tem a seu favor a presunção constitucional de inocência, pelo que, em face da insuficiência das provas produzidas perante o Tribunal a quo, sobre a sua culpabilidade, o princípio em causa, que impõe que a condenação apenas se faça nos casos acima de qualquer dúvida razoável, obrigava que absolvesse o Réu Pedro Torres.
  16. As provas constantes nos autos levam, necessariamente, a absolvição do Réu, Recorrente, da acusação pública.
  17. O Tribunal a quo, decidiu em sentido contrário, em manifesta violação da lei e a Constituição ao dar como provado factos sem provas nos autos e contrários à prova nos autos e em alguns casos sem especificar a prova, a sua escolha, determina a douta prova.
  18. O Tribunal a quo viola o regime jurídico da competência do Tribunal Colectivo para julgar, em 1.ª Instância, os factos criminais.
  19. Por outro lado, o Acórdão recorrido viola os princípios constitucionais de defesa, da  presunção de inocência, do inquisitório e da verdade material.

O Recorrente conclui as suas alegações referindo que o Acórdão recorrido viola, pois, os princípios da tutela jurisdicional efectiva, na vertente do acesso à justiça para efeitos de defesa de direitos e interesses legais e da legalidade, previstos no n.º 1 do artigo 29.º; no n.º 1 do artigo 2.º; no n.º 2 do artigo 6.º e no artigo 175.º, todos da CRA; bem como nos artigos 97.º e n.ºs 2 e 3 do artigo 45.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, que estabelece os princípios e as regras gerais da organização e funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum que, igualmente, se designam por Tribunais Judiciais, bem como o artigo 98.º, n.º 7, do Código de Processo Penal (CPP), pelo que deve ser declarado inconstitucional, com todos os efeitos legais e fazendo-se a tão aguardada justiça.

O Processo foi à vista do Ministério Público (fls. 742-744), que, em conclusão, promoveu o seguinte:

Ora, resulta dos autos que a ré Sílvia Beatriz Dias dos Santos foi absolvida pelo facto de o Tribunal no quadro do principio da livre apreciação da prova, ter chegado à conclusão de que embora o comportamento da ré indicie o seu envolvimento na consumação do crime, tais indícios não fazem prova suficiente para desencadear as reacções jurídico-penais. 

A apreciação e a valoração da prova é uma matéria regulada pelo direito processual penal, e, por isso, da exclusiva competência do Tribunal recorrido, não caindo na alçada do Tribunal Constitucional. 

Os princípios e direitos alegadamente violados foram observados e os respectivos fundamentos estão espelhados quer no acórdão do Tribunal ad quem tanto no acórdão do Tribunal a quo confirmado. 

Em relação ao recorrente Pedro Duarte M. Torres, a sua condenação resultou da prova irrefutável produzida nos autos. 

Não se vislumbram sinais de terem sido violados princípios e direitos constitucionalmente consagrados e pelo contrário, o Tribunal ad quem respeitou-os. 

O recorrente foi julgado peio Tribunal Provincial de Luanda que nos termos do número 2 da resolução n.º 1/15, de 29 de Abril, do Conselho Superior da Magistratura Judicial, continua a fazer julgamentos como Tribunal singular. As razões de ser desta decisão estão bem fundamentadas na referida resolução. 

O Tribunal recorrido apreciou e valorou a prova carreada no quadro da livre apreciação desta pelo julgador concluiu ser suficiente para responsabilizar o recorrente, sem ter, para o efeito, violado algum principio, direito e liberdade constitucionalmente consagrado.

Nestes termos, pugnamos pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA 

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE 

Os Recorrentes são ofendida e réu no Processo n.º 379/17, que correu os seus trâmites na 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que, têm legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

 IV. OBJECTO 

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem como objecto apreciar se o Acórdão prolactado pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 379/17, violou ou não princípios, direitos e garantias consagrados na CRA.

V. APRECIANDO

Os Recorrentes apresentaram individualmente as suas alegações em que, para algumas situações jurídicas, referiram-se aos mesmos preceitos fundamentais, aquando da exposição dos factos, contendo estas, por fim, diferentes conclusões e pedidos, essencialmente no sentido do Tribunal Constitucional dar provimento ao presente recurso e julgar inconstitucional o acórdão recorrido.

A Recorrente Maria de Fátima Correia Dias manifesta-se inconformada em relação à decisão absolutória vertente sobre a ré Sílvia Beatriz Dias dos Santos (fls. 705 e 732 dos autos), pois considera que o Acórdão recorrido procedeu a uma errada qualificação dos factos e não foi ao fundo da questão. A decisão foi tomada como se o autor material fosse a única forma de agente de crime em Direito penal. Neste sentido, em seu entender, o Acórdão recorrido ofende os princípios da legalidade, da descoberta da verdade material e da tutela jurisdicional efectiva e não protegeu o direito à vida humana, por ter inobservado o dever de fundamentação das decisões judiciais, bem como viola o direito a julgamento justo e conforme, expressamente previstos na CRA.

O Recorrente Pedro Duarte Mateus Torres fundamenta o pedido da revogação do acórdão recorrido, alegando que este deu como provados factos sem a devida prova e até mesmo contrários às provas existentes nos autos. Por outro lado, o Tribunal de primeira instância condenou-o sem respeitar o “número legalmente exigível de juízes” que deviam julgar, a saber três juízes de direito, para os casos cuja pena de prisão seja superior a cinco anos, o que sucede no presente caso. Assim, o acórdão recorrido inobserva a lei e a Constituição da República de Angola, ofendendo os princípios constitucionais da presunção de inocência, do inquisitório e da verdade material, bem como viola os direitos à defesa e à tutela jurisdicional efectiva.

Deste modo, este Tribunal passa a apreciar algumas questões em conjunto alegadas pelos Recorrentes e, em separado, algumas outras questões, também colocadas pelos Recorrentes como inconstitucionais.

I - Sobre a violação do direito a julgamento justo e conforme e do princípio da presunção de inocência 

O direito a julgamento justo e conforme, alegado pela Recorrente Maria de Fátima Correia Dias, é um direito fundamental que visa essencialmente concretizar o afastamento dos casos de injustiça, pois ampara qualquer cidadão contra intervenções arbitrárias das autoridades, dando-lhes segurança para que não sejam privados das suas liberdades sem antes serem submetidos a um julgamento nos termos da lei vigente.

De acordo com Vasco A. Grandão Ramos, para que haja um julgamento justo e conforme é inegável um processo judicial composto por ...uma sucessão de actividades, actos [estreitamente dependentes uns dos outros] e formalidades que têm em vista a realização do direito penal e, através dela, o restabelecimento da ordem jurídica ofendida por comportamentos humanos, legalmente definidos como crimes. In Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2.ª edição, Editora Escolar, 2015, pág. 10.

O direito a julgamento justo e conforme vem consagrado no artigo 72.º da CRA que estabelece que A todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei”. 

Ora, a Recorrente Maria de Fátima Correia Dias praticou os devidos actos processuais e constituindo-se assistente do Ministério Público, nem sequer reclamou nos termos dos artigos 19.º e 350.º in fine do então vigente CPP e do n.º 4 do artigo 4.º do Decreto-lei n.º 35007, de 13 de Outubro de 1945, sobre os quesitos referentes à matéria de facto (fls. 350, 363 e 387 dos autos), que permitiram, por parte do Tribunal, a formação de um juízo de certeza sobre a existência dos elementos constitutivos do crime e sobre a responsabilidade dos réus (fls. 513, 514 e 519), em observância do disposto no artigo 72.º da CRA.

Em boa verdade, ambos os Recorrentes fizeram-se representar pelos seus mandatários legais e estiveram presentes no Tribunal, foi-lhes presente a acusação promovida pelo Ministério Público (fls. 220), contestaram (fls. 390) e praticaram os demais actos subsequentes, resultando daí a decisão judicial. Por não se conformarem, os Recorrentes interpuseram recurso (fls. 519 e 532), conforme o acórdão recorrido. Por estas razões não se vislumbra qualquer violação ao direito a julgamento justo e conforme.

Por outro lado, o princípio da presunção de inocência, que é alegado pelos dois Recorrentes, é uma garantia processual penal atribuída ao acusado pela prática de uma infracção penal, oferecendo-lhe a prerrogativa de não ser considerado culpado por um acto delituoso até que a sentença penal condenatória transite em julgado. Este princípio visa, portanto, a tutela da liberdade pessoal, impondo ao tribunal a obrigação de comprovar a culpabilidade do indivíduo.

Assim, “necessariamente ligado a este princípio, como seu corolário, está o princípio do in dúbio pro reo”, do qual resulta que ... se o tribunal permanecer em dúvida sobre a veracidade de certos factos ou sobre a realidade de certa prova ou, no limite, sobre a acusação que impende sobre o arguido, o Juiz deve proferir uma decisão que lhe seja favorável. Ana Prata, Catarina Veiga, José Manuel Vilalonga, Dicionário Jurídico, Direito Penal e Direito Processual Penal, 2.ª edição, Volume II, 2008, pág. 395. 

Segundo Vasco Grandão Ramos sempre que a prova produzida seja insuficiente e não conduza à formação de um juízo de certeza sobre a existência da infracção ou de que foi o arguido que o cometeu, deve ser absolvido. Na dúvida decide-se a favor do réu. In Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Colecção Faculdade de Direito - UAN, 2015, pág. 98.

O princípio da presunção de inocência vem consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, segundo o qual Presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Igualmente, vem consagrado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP). O n.º 2 do artigo 14.ºdo PIDCP estabelece que “Toda pessoa acusada de um delito terá o direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada a culpa”. No mesmo sentido, o n.º 1 do artigo 7.º da CADHP prescreve que Toda pessoa tem o direito a que sua causa seja apreciada. Esse direito compreende: (…) b) o direito de presunção de inocência até que a sua culpabilidade seja reconhecida por um tribunal competente.   Não pode haver dúvida razoável da culpa do acusado, caso contrário, verifica-se a presunção da inocência.

Desde logo, não cabe razão aos Recorrentes, pois, o que ambos pretendem alcançar com o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade (uma correcta apreciação ou não das provas) não é da competência do Tribunal Constitucional, uma vez que a este Tribunal compete administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional, conforme os artigos 180.º da CRA e 16.º da LOTC.

Ademais, a verdade é que, nos termos do artigo 655.º do CPC aplicável subsidiariamente ao Processo Penal, ex vi do § único do artigo 1.º do CPP, quer a sentença do Tribunal de 1.ª instância como o acórdão recorrido (fls. 660 segs. dos autos) concluíram, sem dúvidas, que a ré Sílvia Beatriz Dias dos Santos não se envolveu na acção criminosa e que o então réu, ora Recorrente Pedro Duarte Mateus Torres é o único culpado do acto criminoso.

Se não vejamos:

Não é verdade que o acórdão recorrido não tenha respeitado o direito à vida e a dignidade humana, escudando-se, sem argumentos, no princípio in dúbio pro reo para absolver a co-ré, Sílvia dos Santos, conforme alegou a Recorrente Maria de Fátima Correia Dias. O princípio in dubio pro reo só existe neste caso porque o juiz, em vista da prova produzida, não chegou a um juízo de certeza sobre a ocorrência ou não de qualquer situação que justificasse a conduta criminosa imputada à co-ré, Silvia Beatriz Dias dos Santos (fls. 509, 510 e 511 dos autos).

Tanto é assim que a resposta aos quesitos dizem: 2.º A relação da arguida Sílvia e a Vítima era má? Não provado. 4.º A arguida Sílvia maltratava a vítima? Não provado. 6.º Os arguidos tinham a intenção de se apropriarem da residência acima descrita [sita no Bairro Vila Alice]? Não provado. 8.º Na data, hora e local acima referidos, arguida Sílvia entrou para o quarto da vítima e esganou-a? Prejudicado. 9.º Na data, hora e local acima referidos, os arguidos entraram para o quarto da vítima e esganaram-na? Prejudicado. 11.º Os arguidos planearam a morte da vítima? Provado, digo não provado. (fls. 509, 510 e 511 dos autos).

Também não é verdade que o acórdão recorrido ofende o princípio constitucional da presunção de inocência, ao dar como provados factos, em alguns casos, sem especificar a prova, como alega o Recorrente Pedro Torres,  pois, em resultado do julgamento, o acórdão recorrido (fls. 660 a 662  dos autos) fundamenta que os factos descritos e dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância  reproduzem, no essencial, a prova vertida nos autos, suficiente para a  sua responsabilização criminal. É o caso dos quesitos seguintes: 1.º Os arguidos residiam na mesma residência que a vítima, sita no bairro Vila Alice? Provado”. 7.º Cerca das 11h00 do dia 17 de Março de 2011, na residência acima descrita [bairro Vila Alice] o arguido Pedro entrou para o quarto [da] vítima e esganou-a? Provado (fls. 509 a 511 dos autos).

II. Sobre a violação do dever de fundamentar as decisões judiciais

Alegam também os Recorrentes que o acórdão recorrido não responde à obrigação de que as decisões dos tribunais judiciais devem ser sempre fundamentadas.

O dever de fundamentação das decisões judiciais deve estar assente em qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, bem como deve o juiz abordar todas as questões apresentadas pelas partes, motivando com precisão o seu julgamento e declarando a lei, sob sua responsabilidade, para que se afaste o arbítrio judicial e se permita a fiscalização da actividade jurisdicional. Este dever jurídico impõe ao julgador a necessidade de motivar os seus pronunciamentos decisórios, conferindo-lhes legitimidade democrática e constitucional, conforme o disposto no artigo 72.º da CRA, no n.º 1 do artigo 158.º e no n.º 2 do 659.º, ambos do CPC, nos artigos 11.º e 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica e de Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum (LOFTJC), do n.º 2 in fine do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 4-A./96, de 5 de Abril, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo.  

Em boa verdade, o acórdão recorrido teve em atenção que a convicção do juiz é uma convicção fundamentada, a partir de dados objectivos fornecidos pelo processo, com vista a uma finalidade específica - a descoberta da verdade material ou objectiva, a verdade tal como ela, na realidade dos factos, ocorreu. Vide Grandão Ramos, Vasco, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2.ª Edição, 2015, págs. 206 e 207.

Tanto é assim que:

O acórdão recorrido fundamenta, por exemplo, que: Sobre a co-ré Sílvia Beatriz Dias dos Santos, por ter tido uma relação pouco amistosa com a vítima, por sinal sua mãe, recaíram suspeitas sobre ela ter sido a causadora da sua morte; tais suspeitas não passaram mesmo disso; porquanto, ela não se encontrava em casa quando a vítima foi morta, nem se vislumbra nos autos elementos de prova suficiente para se criar com segurança juízo de certeza, para a sua incriminação; pois, persistem dúvidas dela ter consertado com o Réu Pedro a comissão dos factos, devendo, por isso, em homenagem ao princípio “in dúbio pro reo” ser absolvida, no que corroboramos com o tribunal a quo. In fls. 662 e 662v dos autos.

Também em relação ao Recorrente Pedro Duarte Mateus Torres, o acórdão recorrido fundamenta a sua decisão quando, por exemplo, a fls. 662 dos autos refere que: A versão apresentada pelo Réu Pedro Duarte Mateus Torres não é de acolher, na medida em que contrariada pela matéria fáctica apurada nos autos, porque no mesmo dia dos factos, foi visto pela testemunha Henrique de Almeida Felipe (fls. 482 a 486), na varanda, a discutir com a vítima proferindo impropérios como “porra”, “caralho”, “porque fizeste isto”, para no período da tarde, vir a saber-se que ele (réu) viajou para a cidade do Sumbe, quando a vítima já tinha perdido a vida, sendo, portanto, o último a ser visto a abandonar a residência da vítima.

Ademais, no acórdão recorrido lê-se que: Os depoimentos das testemunhas e dos declarantes arrolados ao processo (fls. 413, 415, 424 a 422, 478 a 481 e 483 a 486), os antecedentes entre ambos, aliados ao exame de autópsia a que a vítima foi submetida, levam a concluir ser o Réu o responsável pelo passamento físico da vítima. Ora, quanto a nós [Tribunal Supremo], não restam dúvidas ter sido o réu o autor dos factos que lhe são imputados, pois, a inocência que alegou em audiência de discussão e julgamento, não procede, porquanto, a prova carreada nos autos é concludente, devendo, por isso, ser responsabilizado pela sua conduta homicida. Vide fls. 662 e segs. dos autos.

Verifica-se assim, que o acórdão recorrido não é uma decisão discricionária, não se baseou em razões de natureza subjectiva, nem é produto de voluntarismo, pois o Tribunal Supremo fundamentou a sua decisão tendo em atenção o objecto do recurso interposto, conforme prescreve o n.º 1 do artigo 158.º e o n.º 2 do 659.º, ambos do CPC, nos artigos 11.º e 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica e de Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum (LOFTJC).

III - Sobre a ofensa aos princípios da legalidade e da descoberta da verdade material

Alega o Recorrente Pedro Torres que o Tribunal de 1.ª instância condenou-o judicialmente sem que tivesse observado o número legalmente exigível de juízes, a saber, três juízes de direito. A lei vigente impunha que apenas os Tribunais Colectivos pudessem conhecer e julgar casos cuja pena de prisão fosse superior a cinco anos, o que sucede no caso vertente. Assim, em seu entender, a decisão proferida por aquele Tribunal constitui uma nulidade absoluta, violando o princípio da legalidade previsto no n.º 1 do artigo 2.º da CRA.

O princípio da legalidade é a maior garantia de observância dos direitos do cidadão, é essencial para a segurança jurídica e demais valores consagrados na lei e na Constituição. O princípio da legalidade vem consagrado nos artigo 2.º, 6.º e 175.º da CRA. O n.º 1 do artigo 2.º encerra este princípio ao referir-se que a República de Angola tem como fundamento o primado da Constituição e da lei; o n.º 2 do artigo 6.º estabelece uma hierarquia, pois determina que a Constituição é a Lei Suprema; e o artigo 175.º estabelece a independência e imparcialidade dos tribunais, estando estes sujeitos à Constituição e à lei.

Assim, porque o sistema de controlo da constitucionalidade angolana é feito por todos os tribunais, incluindo os tribunais de jurisdição comum, os juízes devem declarar a inconstitucionalidade das normas que se afiguram inconstitucionais e aplicar a Constituição na defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais (n.º 1 do artigo 28.º e 239.º da CRA).

Quando um determinado tribunal, no âmbito do seu poder jurisdicional, não tem competência para julgar determinado crime, resulta daí uma declaração de incompetência, que é reconhecida e declarada oficiosamente pelo próprio órgão ou que pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido ou pelo assistente, até ao trânsito em julgado da decisão final (artigos 138.º a 145.º do CPP).

A propósito da Resolução n.º 1/15, de 29 de Abril, do Conselho Superior da Magistratura Judicial, que orienta os juízes a não aplicarem o disposto no artigo 48.º da LOFTJC, quanto a composição do tribunal, aqui alegada pelo Recorrente Pedro Torres, constitui matéria a ser conhecida e decidida no âmbito de um processo de fiscalização sucessiva, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 26.º da LPC, ou de um recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 36.º da LPC, se decorrer de sentença final proferida pelo Tribunal da causa.

Esta questão, aqui alegada pelo Recorrente, tem já jurisprudência do Tribunal Constitucional firmada no Acórdão n.º 614/2020, de 29 de Abril, pelo que, não ocorre conhecê-la e dela decidir fora do âmbito de um recurso ordinário de inconstitucionalidade ex vi da alínea b) do n.º 1 do artigo 36.º da LPC.

Assim, tal como foi colocada a referida questão no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não pode o Tribunal Constitucional apreciar a inconstitucionalidade da norma, quer seja decorrente da deliberação do CSMJ nos termos da Resolução n.º 1/15, de 29 de Abril ou da norma prevista na LOFTJC, restando apenas aferir a inconstitucionalidade decorrente do recurso extraordinário de inconstitucionalidade do acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 379/17, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, interposto pelos Recorrentes.

Não obstante, é imperioso referir que o Tribunal Supremo sustenta que a matéria inerente ao tribunal colectivo previsto na LOFTJC,  na sua aplicação efectiva, está dependente da criação de condições materiais e humanas (Cfr. Resolução n.º 1/15, de 29 de Abril, do Conselho Superior da Magistratura Judicial e nºs 1 e 2 do artigo 45.º, n.º 1 do artigo 91.º e  artigo 93.º, todos da LOFTJC.

Logo, não se vislumbra a ofensa ao princípio da legalidade pelo facto da audiência de julgamento e acórdão do Tribunal a quo ter sido realizada e decidida com apenas um Juiz e dois Assessores, conforme se lê nos autos (fls. 467, 472, 477, 482, 493, 496 e 512 e 519). O n.º 2 da referida Resolução n.º 1/15, de 29 de Abril, do Conselho Superior da Magistratura Judicial, estabelece que Enquanto não forem criados os Tribunais de Comarca e as condições para a admissão de novos juízes que permitirão o funcionamento dos Tribunais Colectivos, os tribunais existentes deverão continuar a fazer julgamentos como tribunais singulares.

Também a Recorrente Maria de Fátima Correia Dias alega que o acórdão recorrido ofende o princípio da legalidade da acção penal por não ter o Tribunal desenvolvido acções concretas para a responsabilização efectiva dos arguidos diante da morte violenta ocorrida e ter tomado a decisão como se o autor material fosse a única forma de agente do crime em Direito Penal.

Tal facto não corresponde à realidade, pois decorrem do Acórdão recorrido relatos que consubstanciam de modo genérico o sujeito penalmente responsável, independentemente da sua forma de comparticipação (autores, cúmplices ou encobridores), conforme estabelecem os artigos 19.º e segs. do Código Penal vigente na ocorrência dos factos. Neste sentido, aliás, foi na qualidade de co-arguida que a co-ré Sílvia dos Santos foi acusada (fls. 220 e 220v dos autos), pronunciada (fls. 296 e 297 dos autos) e julgada.

Conforme bem explicita o acórdão recorrido, não tendo havido elementos de prova suficientes para se criar com segurança um juízo de certeza para a sua incriminação, não obstante a relação pouco amistosa que mantinha com a vítima, por sinal sua mãe, foi a co-ré absolvida (fls. 660 e 661 dos autos) em homenagem ao princípio in dúbio pro reo.

Por outro lado, a Recorrente, Maria de Fátima Correia Dias, realça que a vida e dignidade humanas devem ser respeitadas e protegidas e não podem apenas ser descartadas por razões simplórias, escudadas no principio do in dúbio pro reo, uma vez que a co-arguida Sílvia dos Santos, de forma sistemática e deliberada, obstruiu a justiça, ocultou o cadáver, falseou o boletim de óbito, encobriu o autor do crime e removeu o cadáver sem participar à polícia. Por esta razão, a Recorrente alega que o acórdão recorrido desrespeitou o princípio da descoberta da verdade material, visto que não foi ao fundo da questão e consequentemente valorou de forma incorrecta os factos.

Ora, o que a Recorrente alega não corresponde à verdade, porquanto, diferente do Ministério Público que acusa quando existam indícios suficientes da prática do crime e de quem são os seus agentes (artigo 349.º CPP), o Tribunal pode, tanto condenar, quando existe suporte probatório para uma convicção processualmente fundada sobre a responsabilidade do agente, como absolver sempre que assim não for, diante da defesa e os seus contra-indícios.

Para o efeito, antes profere o despacho (pronúncia) processual que representa a transição da fase preparatória para a fase de julgamento em que se pronuncia o arguido pelo crime de que vem acusado. O despacho de pronúncia é, portanto, uma ... confirmação do juízo de probabilidade expresso na acusação pública ou privada a respeito da existência do crime, das circunstâncias em que foi cometido, da forma de participação do réu e do seu grau de responsabilidade. In Vasco A. Grandão Ramos, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2.ª Edição, 2015, pág. 290. Ou seja, o despacho de pronúncia é a confirmação dos indícios tidos como suficientes para a dedução da acusação, onde o assistente, querendo, acompanha a acusação pública através de uma acusação subordinada (artigo 349.º CPP).

Portanto, enquanto que na fase final preparatória o juízo a formular é de probabilidade de futura condenação, na fase de julgamento faz-se emergir a distinção entre juízo de certeza e juízo de probabilidade pois, para esta fase reserva-se o juízo de certeza, a prova dos factos alegados em juízo, e não numa probabilidade. Não é, portanto, um mero preciosismo do legislador. É uma imposição legal para obter uma decisão justa e imparcial, dado que a convicção alcançada durante o processo preparatório não reúne as condições necessárias para fazer justiça num Estado de direito.

Significa isto, que é na fase de julgamento, presidida pelo juiz, terá de verificar se os mesmos factos alegados pela defesa estão provados, tendo igualmente de verificar se os contra-indícios são concordantes entre si e enfraquecem ou afastam a utilização dos indícios condenatórios. Nota-se que cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório). Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial no âmbito do sistema acusatório.

No exercício da função jurisdicional (n.º 2 do artigo 174.º da CRA) denota-se claramente que o acórdão recorrido, na mesma esteira da decisão do Tribunal da primeira instância, não considerou as suspeitas que recaíam sobre a ré Sílvia Dias dos Santos como meios passíveis de justificar a sua incriminação, pois como bem o afirma a fls. 662 “tais suspeitas não passaram mesmo disso”. Daí a sua absolvição com base no princípio in dubio pro reo.

Nestes termos, o acórdão recorrido não ofende o princípio da legalidade nem o princípio da descoberta da verdade material alegados pelos Recorrentes.

 IV - Sobre a ofensa dos princípios do acusatório, do contraditório e da ampla defesa e individualização da pena

O Recorrente Pedro Torres exalta que o acórdão recorrido ofende os princípios do acusatório, do contraditório e da ampla defesa e individualização da pena uma vez que foi condenado sem a observância das provas constantes dos autos e por factos que não constam da acusação. Para o Recorrente o acatamento das provas constantes dos autos deve conduzir à sua absolvição.

O princípio do acusatório impõe que a imparcialidade, objectividade e a independência só serão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e de acusação das infracções, somente lhe competindo investigar e julgar dentro dos limites que lhes são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado.  Ana Prata, Catarina Veiga e José Manuel Vilalonga, Dicionário Jurídico, Direito Penal e Processual Penal, 2.ª edição, Vol. II, 2008, Pág. 383.

Este princípio é, portanto, uma garantia do processo criminal que encontra consagração no n.º 1 do artigo 67.º e no n.º 2 do artigo 174.º da CRA, bem como no n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum.

Nestes preceitos certifica-se que os Tribunais são obrigados, no exercício das suas funções jurisdicionais, a assegurar os princípios do acusatório e do contraditório e a reprimir as violações da legalidade democrática. (artigo 379.º do CPP).

O princípio do contraditório e o princípio da ampla defesa encontram-se ligados, na medida em que, a defesa garante o contraditório e por ele se manifesta. Está, portanto, assegurado no âmbito da estrutura acusatória, caracteriza-se por ser uma disputa dirigida por um juiz, a quem, numa posição de independência, incumbe apreciar o caso, entre a acusação e defesa. O juiz não pode decidir com base apenas em prova produzida pela acusação, sob pena da decisão ser considerada nula, uma vez que o princípio (da ampla defesa e do contraditório) faculta ao acusado a possibilidade de efectuar a mais completa defesa quanto à imputação que lhe é realizada.

Este mesmo princípio (do contraditório) consiste em garantir que ninguém sofra os efeitos de uma sentença sem ter tido a possibilidade de uma efectiva participação nela, com vista a sustentar as suas posições jurídicas, de modo a que o Tribunal possa limitar-se a julgar de maneira imparcial. Portanto, o Juiz deve ouvir tanto as contribuições da acusação como as da defesa, com vista a fazer-se cumprir a regra da igualdade de partes ou de “armas”. No processo penal o princípio da igualdade assegura as mesmas oportunidades e possibilidades processuais. Tratamento paritário entre a acusação e a defesa. (artigos 5.º e segs. 349.ºe segs., 379.º e segs. do CPP).

Verifica-se no acórdão recorrido a fls. 662 que os argumentos apresentados pelo então réu Pedro Duarte Mateus Torres em sua defesa, perante os factos de que foi acusado, pronunciado, e posteriormente julgado, que reproduzem, no essencial, a prova vertida nos autos, não foram acolhidos, porque os depoimentos das testemunhas e dos declarantes arrolados ao processo, os antecedentes entre o réu e a vítima, bem como o exame de autópsia a que a vítima foi submetida, não deixaram dúvidas de ter sido o Réu o autor dos factos que lhe são imputados. A prova carreada nos autos é concludente.

Assim, o Tribunal Constitucional constata terem sido observadas as mais amplas garantias do processo criminal, mormente os direitos de defesa e de recurso. Logo, não se vislumbram no acórdão recorrido quaisquer ofensas aos princípios do acusatório e do contraditório.

Nestes termos, o Tribunal Constitucional conclui pela inexistência de razões para admitir que o acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 379/17 ofende quaisquer princípios, direitos, liberdades e garantias consagrados na CRA.

DECIDINDO

Nestes termos

Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:

 Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.



Tribunal Constitucional, em Luanda, 8 de Setembro de 2021.

 

O JUIZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Jacinto Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)

Dr. Carlos Magalhães 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata