ACÓRDÃO N.º 702/2021
PROCESSO N.º 871-A/2021
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Armazéns Pedras Negras, Lda, com os demais sinais de identificação nos autos, vem, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso para o Tribunal Constitucional, por estar inconformada com o douto acórdão da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo.
A Recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade da decisão tomada em primeira instância e confirmada pelo Tribunal Supremo que decretou a suspensão da instância com fundamento na existência de uma causa prejudicial.
A Recorrente apresentou alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte vencida no processo n.º 1495/2015, que correu os seus trâmites na 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.
Assim sendo, a Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, prolatado no âmbito do Processo n.º 1415/2015, que correu seus termos naquela instância, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não os princípios constitucionais invocados.
V. APRECIANDO
A 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, decidiu negar provimento ao recurso interposto pela então Recorrente e, em consequência, confirmar a decisão de suspensão da instância tida em 1.ª instância, na 2.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda.
Inconformada, a Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por entender que não existe no caso causa prejudicial que obrigasse a suspensão da instância, não tendo sido a mesma fundamentada, violando-se os princípios constitucionais da legalidade e do processo justo e equitativo.
O conceito de processo equitativo é um conceito amplo, susceptível de diversificada concretização, cuja densificação decorre sobretudo da jurisprudência sobre a matéria.
Assim, conforme ficou consignado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 650/2020, o princípio do julgamento justo e equitativo é um “princípio fundamental de qualquer sociedade democrática, profundamente imbricado com o Estado de Direito (rule of law), não havendo fundamento para qualquer interpretação restritiva e que visa, acima de tudo, defender os interesses das partes e os próprios da administração da justiça, que os litigantes possam apresentar o seu caso ao tribunal de uma forma efectiva; tem como significado básico que as partes na causa têm o direito de apresentar todas as observações que entendam relevantes para a apreciação do pleito, as quais devem ser adequadamente analisadas pelo tribunal, que tem o dever de efectuar um exame criterioso e diligente das pretensões, argumentos e provas apresentados pelas partes e que a justeza (fairness) da administração da justiça, além de substantiva, se mostre aparente (justice must not only be done, it must also be seen to be done).
O direito a julgamento justo e equitativo é um pressuposto do Estado democrático e de direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Ela tem de assegurar um julgamento público e num prazo razoável, bem como as garantias de defesa material – neste sentido, Raul Araújo e Elisa Nunes, Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, FDUAN, 2014, pág. 398.
No caso dos autos, alega a Recorrente que o acórdão recorrido violou o princípio do julgamento justo e conforme por não ter fundamentado a decisão de suspensão da instância com base na existência de uma causa prejudicial.
Dispõe o artigo 158.º do CPC, que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
Esta fundamentação, suscitada pela controvérsia e pela dúvida, deve incidir sobre a explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia no sentido em que o fez. A fundamentação, expressão da legitimidade de exercício jurisdicional, deve satisfazer este requisito, ou seja, deve ser a necessária a explicitar as razões da decisão enquanto escolha e a suficiente a que essas razões resultem patentes para os intervenientes processuais e para a sociedade. Ou seja, não impõe uma enumeração exaustiva de todas as soluções possíveis, mas antes se basta com indicação dos determinantes que a fundam e que simultaneamente arredam outras possibilidades.
É pacífica a jurisprudência (veja-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 662/2021) no sentido de que só a absoluta falta de fundamentação, não apenas a sua insuficiência, determina a nulidade da decisão a que se acolhe o Recorrente. Deve ser uma falta absoluta à qual se assimila a fundamentação que não permita descortinar as razões de decidir, o que se impõe face à razão de ser do dever de fundamentação.
Revertendo ao caso dos autos, a falta de fundamentação invocada pela Recorrente baseia-se no facto de, na sua perspectiva, a decisão não ter sido suficientemente convincente.
Ora, o que a fundamentação visa, é assegurar a ponderação do juízo decisório e permitir às partes – no caso, a Recorrente – o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos.
Conforme elucida J. J. Gomes Canotilho, a fundamentação que se impõe às decisões dos tribunais visa assegurar, essencialmente: (1) o controlo da administração da justiça; (2) exclusão do carácter voluntarístico e subjectivo do exercício da actividade jurisdicional e a abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes; (3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes em juízo um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas – In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina Editora, 2003, pág. 667.
Compulsados os autos, constata-se, à fls. 491-497, que a decisão recorrida está devidamente fundamentada, tendo dado a conhecer as razões de decidir de modo que, nomeadamente, permitiu dissentir.
Não é propriamente por se achar uma decisão injusta que ela esteja, literalmente, inquinada pelo vício da nulidade por falta de fundamentação e, consequentemente, seja inconstitucional por violação do princípio do julgamento justo e conforme.
Assim, quanto a este ponto improcede o recurso.
A Recorrente alega que o acórdão recorrido não observou o princípio da legalidade, uma vez que, conforme decorre das alegações de recurso, “o acórdão recorrido não explicitou nenhum dos pressupostos legais de que depende a prejudicialidade da causa sobre que recai o Processo n.º 127/2011 (sendo que a referência a este processo nem sequer consta do despacho do tribunal de primeira instância, tendo sido ilegalmente acrescentada pelo Tribunal Supremo) em relação à presente acção judicial, tendo-se limitado a afirmar, de forma muito vaga e genérica, sem fundamento, que a relação de prejudicialidade existe”.
O princípio da legalidade, enquanto subprincípio concretizador do princípio do Estado de direito, assegura a todos a lisura dos actos do poder público, através, não só, da restrição e definição das suas funções e competências, mas também da sua subordinação à lei.
Este princípio tem de ser entendido não de uma forma estrita, mas antes e cada vez mais conotada com princípios gerais de natureza programática que se limitam a fixar as grandes linhas de orientação nas áreas de regulação a que se destinam. Isto deve-se à contínua aceleração da vida hodierna geradora de incertezas que cumpre a cada passo superar e, bem assim, à complexidade dos casos com especificidade intrínseca; tudo isto motivou uma desvalorização do papel do Estado como entidade criadora de direito, deslocando-se esta função em grande parte para a figura do aplicador (entidade administrativa decisora; Juiz). Efectivamente é este que sente o pulsar da realidade de que está próximo, pelo que mais vocacionado está para encontrar casuisticamente a melhor solução para as diversas facetas dos casos que apreciar e decidir - In José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira “Noções Fundamentais de Direito Administrativo”, 2ª Edição, Almedina Editora, 2010, pág. 125.
O caso vertente insere-se nas linhas de orientação acabadas de expender. As causas de suspensão da instância constam enunciadas no artigo 276.º do CPC, delas constando que a instância se suspende “quando o tribunal ordenar a suspensão” – n.º 1, alínea c). Esta norma, ou mais precisamente, o poder do juiz de suspender a instância, é depois regulado pelo artigo 279.º, do CPC.
Decorre do n.º 1 desse artigo, que o juiz pode ordenar a suspensão não só quando a decisão da causa estiver dependente doutra já proposta, mas também quando entender que ocorre outro motivo justificado.
Começando a lei por indicar ao juiz um motivo justificado de suspensão – a pendência de causa prejudicial – atribui-lhe, depois, o poder de suspender a instância quando entender que ocorra outro motivo também justificado, isto é, motivo diferente da pendência da causa prejudicial e que, em seu juízo, justifique a suspensão.
Não decorre da lei o que se deva entender por ocorrência de (outro) “motivo justificado”, permitindo concluir que se confere ao juiz uma margem lata de liberdade de acção, podendo ordenar a suspensão quando entenda que há utilidade ou conveniência processual em que a instância se suspenda.
E, como elucida Alberto dos Reis, a norma “nem faz depender de requerimento das partes o uso do poder de ordenar a suspensão, nem lhes recusa o direito de provocar, mediante requerimento, o exercício de tal poder. Há-de, portanto, concluir-se que o magistrado pode suspender a instância, ou por sua iniciativa, ou a requerimento das partes” – Comentário ao Código do Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, pág. 285.
Por sua vez, a norma do n.º 1 do artigo 279.º do CPC também levanta a questão de saber quando deve entender-se que a decisão de uma causa depende do julgamento de outra.
É assente o entendimento de que se verifica a relação ou nexo de dependência ou prejudicialidade, quando a decisão ou julgamento duma acção - a dependente - é atacada ou afectada pela decisão ou julgamento noutra - a prejudicial (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, volume III, páginas 267 e seguintes; Manuel Andrade, “Lições de Direito Processual Civil”, página 427; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça português, de 18 de Fevereiro de 1993 - B.M.J. n.º 424, página 587).
Além disso, decorre dos artigos 276.º n.º 1 alínea c) e 279.º n.º1 do CPC que a instância pode ser suspensa pelo tribunal quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta.
Deste modo, permanece actual a noção de Alberto dos Reis ao afirmar que "uma causa é prejudicial da outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda" – Ob. Cit. pág. 268.
Daí que, a "verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é a reprodução, pura e simples, da primeira. Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos. Assim pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal" –. Manuel de Andrade, Lições de Processo Civil, págs. 491 e 492.
Assim, entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada, ou seja, a relação de dependência entre uma acção e outra já proposta, como causa de suspensão da instância, assenta no facto de, na segunda acção, se discutir em via principal uma questão que é essencial para a decisão da primeira.
Ora, atento ao critério acima enunciado - e voltando ao caso em apreço – importa concluir que a decisão que vier a ser proferida no processo instaurado no Tribunal Pleno do Tribunal Supremo poderá influenciar a decisão que na instância suspensa, por seu turno, venha a ser exarada, pois em ambas acções tem-se por base o reconhecimento da titularidade do direito de propriedade do imóvel sob litígio, pois um dos requisitos de que depende a procedência do pedido formulado pela ora Recorrente no Tribunal Provincial de Luanda depende, como se disse no despacho – fls. 394 -, da decisão que for proferida no recurso de impugnação de acto administrativo que corre os seus termos na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, Autos de Recurso Contencioso sob o n.º 127/2011.
Assim sendo, não se verifica no caso vertente a violação aos princípios da legalidade e do processo equitativo, alegados pela Recorrente, uma vez que a suspensão da instância foi decidida observando o disposto no Código de Processo Civil, evitando diligências inúteis.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:
Custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 7 de Outubro de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B. da Silva
Dra. Victória Manuel da Silva Izata