ACÓRDÃO N.º 704/2021
PROCESSO Nº 858-B/20
(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
António Mateus Longo, Joaquim Fernandes Amaral Gomes e Paula Ferreira Hossi, melhor identificados nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional interpôr recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2452/18, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), por inferirem que o mesmo viola os princípios da legalidade, da presunção da inocência e o seu corolário, do in dubio pro reo, do julgamento justo e conforme a lei e o da tutela jurisdicional efectiva, previstos nos artigos 6.º, 29.º, 65.º, n.º 2 do 67.º e o 72.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
O Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, confirmou a decisão recorrida, anteriormente proferida pela 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Huambo, que condenou os ora arguidos António Mateus Longo, Joaquim Fernandes Amaral Gomes e Paula Ferreira Hossi, apenas alterando a qualificação da mesma, de homicídio qualificado para homicídio simples, o que implicou a redução das penas efectivamente aplicadas aos mesmos, de 22 para 18 anos de prisão maior, para os ora arguidos António Mateus Longo e Joaquim Fernandes Amaral Gomes, e de 16 para 15 anos de prisão maior para a ora arguida Paula Ferreira Hossi, pelo facto de a mesma ter menos de 21 anos de idade à data dos factos (fls. 139-142 dos autos).
Os Recorrentes, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), apresentaram de (fls. 477-489 dos autos), conjuntamente, as suas respectivas alegações.
Os Recorrentes António Mateus Longo, Joaquim Fernandes Amaral Gomes e Paula Ferreira Hossi, na qualidade de arguidos, alegaram o seguinte:
Na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, correu autos de Recurso tendo esta Câmara decidido alterar a decisão do Tribunal de 1.ª Instância (1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Huambo) e condenou os Réus pelo crime de homicídio voluntário simples nas seguintes penas: RR Joaquim Fernandes Amaral Gomes e António Mateus Longo, a 18 anos de prisão maior.
Ré Paula Ferreira Hossi, a 15 anos de prisão maior.
No mais, confirmou-se o decidido pela 1.ª Instância.
Ora:
É com essa decisão injusta, inconstitucional e ilegal, que os Réus não concordam, e entendem que o Tribunal Supremo agiu mal por cometerem um erro de julgamento, por terem sido violados princípios, direitos, liberdades e garantias consagradas na Constituição da República de Angola.
O Tribunal Supremo tomou a decisão supra agora impugnada, com base a matéria de facto e de direito que se segue:
Dos Factos
1. Na manhã do dia 25 de Junho de 2017 (num Domingo), Tatiana Soares João, de 22 anos de idade, residente no bairro São João, cidade do Huambo, através de mensagem telefónica, sugeriu a sua amiga Zulmira Loth a passarem juntas o resto do dia.
2. Foi assim que por volta das 13:horas, as duas encontraram-se na casa de Zulmira, tendo se separado apenas cerca das 23:horas. Perto das 15:horas, as duas saíram da casa da Zulmira e foram a um Bar sito no Bairro São João Popular, próximo da residência dos avós da Ré Paula Ferreira e da casa da Tatiana Soares, onde passaram toda tarde.
3. A caminho do Bar cruzaram com a Paula Ferreira e as suas amigas Antónia dos Santos Capessa e Ilda Celita. Zulmira Loth estranhou o facto de Paula Ferreira e Tatiana não se terem saudado quando sabia que elas eram amigas e que durante algum tempo, conviviam juntas na residência dos pais desta última.
4. Entre as 20 e 22 horas, Zulmira telefonou ao seu amigo Aníbal Ábias a fim de lhes dar apoio até a uma Hamburgueria denominada Ilha Branca, na cidade alta, onde pretendiam comprar Sanduíche.
5. E como não dispusesse de meio de transporte no momento, Aníbal pediu ajuda ao seu colega de trabalho Edy e foram ao encontro das duas amigas tendo depois, os quatro rumado para o local. Dali partiram para o bairro São João, tendo as duas amigas ficado na residência de Zulmira.
6. Instantes depois, por volta das 23: horas, Zulmira acompanhou a amiga até cerca 170 metros, ao lado da casa da declarante Emília Nachivango, onde nos anexos à casa principal residiam como inquilinos, os Co-Réus Joaquim Fernando Amaral e António Mateus Longo.
7. Ali separaram-se e a Tatiana estava a aproximadamente 150 metros da casa dos seus pais onde residia (vd. Auto de inspecção a fls. 167).
8. Pouco tempo depois, os Réus Joaquim Fernandes Amaral Gomes António Mateus Longo acompanhados do declarante Moisés Menezes foram bater o portão da residência dos declarantes Victor dos Santos Jordão, e Júlia Alzira Soares, pais da Tatiana, dizendo que eram vizinhos e comunicavam-lhes que a sua filha tinha sido atacada por bandidos e precisava ser socorrida para o Hospital.
9. Embora não conhecesse os Réus, os pais de Tatiana, mais um irmão, de viatura, seguiram os mensageiros até ao local, por sinal a residência da declarante Emília Nachivango.
10. Ali postos, os Réus pediram aos pais da vítima que permanecessem ai fora, enquanto eles entravam no quintal para irem buscar a ofendida. Contudo, a mãe de Tatiana, aflita, não esperou e seguiu os réus até ao fundo do quintal onde havia um anexo com duas divisões ocupadas, uma pelo Réu Joaquim Fernandes Amaral, e outra pelo Réu António Mateus Longo.
11. Foi no quarto deste último onde estava a vítima, ferida deitada na cama e a esvair-se em sangue.
12. Vendo o estado da filha, Júlia Soares pediu aos Réus que a colocassem numa coberta e a transportassem para a viatura. Sequencialmente seguiram para o Hospital Geral do Huambo onde, após dar entrada no banco de urgência, acabaria por sucumbir às lesões sofridas.
13. O relatório da autópsia médico-legal de fls. 29, aponta como causa da morte, choque hipovolémico consequente a ferimento torácico por instrumento de natureza cortante ou atuando como tal.
14. Após a declaração do óbito pelo médico, o Réu António Mateus Longo tirou da algibeira e entregou à mãe da vítima o relógio usado pela vítima nesse dia.
15. Perante a notícia do crime, imediatamente a polícia efectuou inspecção no local, tendo achado no pátio do anexo uma lata de refrigerante cheia e um saco plástico contendo uma sanduiche.
16. Foram detectadas manchas de sangue na cama e no chão do quarto do Réu António Mateus Longo, assim como um pé de chinelo e uma pasta contendo meios de uso pessoal da vítima.
17. De acordo com o auto de inspecção, não foi registado qualquer vestígio de sangue no quintal nem na rua (vd. fls. 5, 52, 56).
18. O instrumento do crime não foi apreendido, no entanto, consigne-se que foram encontrados no quintal duas facas imersas numa bacia com água, (foto-tábua a fls. 54).
19. Nesse momento, a Co-Ré Paula Ferreira estava presente pois, sendo namorada do Réu Joaquim Fernandes Amaral Gomes encontrava no quarto deste, com quem estava a passar a noite.
20. Os Réus refutam a acusação que lhes é movida e em sua defesa alegam que a vítima entrou no quintal onde residem em busca de socorro e foi o que eles fizeram, tentaram socorrer a vítima.
II. Apreciação dos Factos Supra Feita pelo Tribunal Supremo
21. Resulta da prova reunida nos autos que, na noite da referida data, depois de passarem a tarde juntas, a vítima e sua amiga Zulmira Loth, despediram-se cerca das 23:horas, defronte da residência da declarante Emília Nachivango, em cujos anexos residem os Co-Réus Joaquim Fernandes Amaral Gomes e Mateus António Longo, ambos efectivos das FAA, colegas afectos aos Serviços de Saúde no Kuito-Bié, achando-se ao tempo em formação na cidade do Huambo.
22. A Co-Ré Paula Ferreira mantinha uma relação amorosa com o Réu Joaquim Fernandes Amaral Gomes com quem estava nessa noite.
23. A dado momento, os Réus Joaquim Fernandes Amaral Gomes e Mateus António Longo e o declarante Moisés Menezes, um vizinho, foram comunicar aos pais da vítima que esta encontrava-se em perigo de vida em virtude de uma agressão por desconhecidos e que precisava de socorro médico.
24. Postos no local, os Réus pediram, aos pais da vítima que aguardassem fora enquanto eles entravam no quintal onde a vítima se encontrava no quarto do Co-Réu Mateus António Longo.
25. No entanto, a mãe da vítima declarante Júlia Soares seguiu-os até onde estava a filha, ainda com vida, deitada na cama do Réu Mateus António Longo, tapada com um cobertor a esvair-se de sangue.
26. Diante desse quadro, a Júlia Soares pediu aos Réus que a ajudasse a colocá-la na viatura e depois dirigiram-se ao Hospital Central do Huambo, onde viria a falecer minutos depois.
27. Aqui chegados, impõe-se indagar o que efectivamente teria acontecido e quem terá sido o autor do execrável acto.
28. Não se vislumbra nos autos prova directa sobre a ordem dos acontecimentos que culminaram com a morte da jovem Tatiana, de apenas 22 anos de idade, e quem terá sido o seu autor.
Contudo ressaltam algumas circunstâncias que nos parecem relevantes para a decisão da causa:
29. Não nos parece verosímil a versão apresentada pelos Réus de que a vítima teria entrado no quintal em busca de socorro.
30. Concluindo o Tribunal Supremo de que os Réus agiram de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de tirar a vida à vítima, mesmo sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
III. Do Direito
Com a sua conduta incorreram os Réus na prática de um crime de homicídio voluntário simples, p.p. artigo 349.º do Código Penal, para o que se convola a acusação.
Decisão:
Nestes termos «acordam os desta Câmara em alterar a decisão, condenando-se os Réus pelo crime de homicídio voluntário simples, nas seguintes penas: RR Joaquim Fernandes Amaral Gomes e António Mateus Longo, a 18 anos de prisão maior.
Ré Paula Ferreira Hossi, a 15 anos de prisão maior.
No mais, confirma-se o decidido.
Ora:
31. Conforme supra já referido, os Réus não concordaram com essa decisão do Tribunal Supremo, assaz inconstitucional e ilegal, e só se compreende que a mesma foi tomada na base de um grande erro de julgamento.
Daí entendermos que o Tribunal Supremo andou mal, muito mal.
Porque vejamos:
Das Provas
32. Atento as provas carreadas nos autos, em momento nenhum, tanto na fase de instrução preparatória, assim como na fase de julgamento, ficou suficientemente provado quem dos Réus exactamente deferiu o golpe com a faca contra a infeliz vítima, ou que tenham sido os três (3) Réus a assim procederem simultaneamente ou conjuntamente.
33. Tanto no acórdão do Tribunal de 1.ª instância, como do Tribunal Supremo, constata-se haver presunções para considerarem os Réus como culpados, ao referirem que se não foi um foi outro ou outros dos Réus a praticarem o crime do qual foram condenados e que o autor do crime não está determinado.
34. O próprio Tribunal Supremo na sua apreciação dos factos constantes do acórdão referiu que «não se vislumbram nos autos prova directa sobre a ordem dos acontecimentos que culminaram com a morte da jovem Tatiana, de apenas 22 anos de idade, e quem terá sido o seu autor. Contudo ressaltam algumas circunstâncias de que nos parecem relevantes para a decisão da causa».
35. Ora:
Essa é mais uma prova inequívoca, que o Tribunal Supremo ao condenar os Réus, fê-lo com base em presunções e portanto sem provas credíveis, seguras e irrefutáveis, não observando o princípio da verdade material.
36. Nem mesmo as referidas circunstâncias que pareceram ao Tribunal Supremo, relevantes para a decisão da causa, no caso concreto para a condenação dos Réus, constitui elementos probatórios suficientes e que não deixam dúvidas para a condenação dos Réus.
37. Atento ao acórdão recorrido e aos autos, essas circunstâncias referidas são nomeadamente a discussão havida há bastante tempo entre a Ré Paula e a vítima Tatiana, as declarações da senhora Cândida Mateus (fls 43), supostamente que o Réu Joaquim Gomes teria telefonado para a vítima a convidá-la a ela e a sua amiga Zulmira, os Réus coincidirem em que ouviram os gritos de socorro da vítima no quintal e a bater as portas dos seus quartos, etc.
38. É fácil constatar que essas circunstâncias aos olhos de qualquer pessoa diligente, não passam de desconfianças, incertezas, algumas alegações fantasiosas, portanto, desacompanhadas de elementos probatórios bastantes, credíveis, irrefutáveis, ou seja, provas que não deixassem dúvidas.
39. Das provas circunstâncias quer o Tribunal de 1.ª instância quer o Tribunal Supremo não respondem a seguinte questão: “Sendo três Réus autores da ofensa corporal porque não ter transportado a vítima do quarto para a rua ou para o quintal e, posteriormente, chamar ajuda para transportá-la para o hospital?”
40. Porque sendo eles os autores terem mantido a vítima no quarto e na cama de um dos Réus e chamado a família da vítima para a socorrerem ao hospital?
41. Tendo a intenção de matar a vítima porque chamar o pai e mãe para socorrer a vítima até ao hospital em companhia dos Réus.
42. São questões que ambas as instâncias judiciais não responderam no julgamento e nos acórdãos recorridos.
43. Portanto, não existem nos autos meios de prova, ou seja, não existem provas pessoais, provas reais, ou outros meios de provas que justificam a condenação dos Réus por crime de homicídio voluntário simples.
Da Apreciação da Prova pela Defesa
44. Face aos factos acima expostos a defesa dos Réus constata que, o Tribunal de 1.ª Instância, assim como o Tribunal Supremo, violaram:
45. A – Quanto a violação do princípio da livre apreciação da prova e seus milites consagrado no artigo 655.º do Código de Processo Civil.
A esse propósito, as lições fundamentais de Direito Processual Penal do Dr. Grandão Ramos, pág. 249 e ss, sustentam que:
46. B – Quanto à violação do princípio da presunção da inocência.
Esse princípio encontra-se intrinsecamente associado ao princípio «In Dubio Pro Reo» que é uma regra de apreciação da prova também.
Tal como refere o Tribunal recorrido, não se vislumbra nos autos prova directa nem indirecta pelas respostas não dadas pelo Tribunal a conduta dos Réus a pedirem socorro e socorrer a vítima até ao hospital em companhia dos pais da vítima, daí a obrigação do Tribunal evocar o princípio do «In Dubio Pro reo» e absolver os Réus.
Não tendo assim agido o Tribunal violou o princípio da presunção da inocência, artigo 67.º n.º 2 da CRA, e concomitantemente os princípios do julgamento justo e conforme a lei e a tutela jurisdicional efectiva.
47. C – Quanto à violação do princípio do julgamento justo e conforme a lei e o princípio da tutela jurisdicional efectiva.
Segundo os autos os Réus foram chamar os pais da vítima, quando esta lhes apareceu a sangrar e transportada com vida até ao hospital em companhia desses de onde viria a falecer. Verifica-se não estar preenchidos os elementos tipos do crime de homicídio voluntário simples, porquanto verifica-se a falta da intenção de matar, pois se a tivessem jamais chamariam os pais para a socorrerem e ocultariam o cadáver.
Na eventualidade de se ter provado serem eles ou um deles o autor da lesão que levou a vítima a morte, os factos preenchem o tipo do crime de homicídio preterintencional de Ofensas corporais de que resultou a morte e jamais o crime de homicídio voluntário, porque não houve vontade ou intenção de matar e a vítima só veio a falecer no hospital.
A qualificação feita e a condenação dos Réus configuram um julgamento não justo e há ausência da tutela jurisdicional efectiva a favor dos Réus. O Tribunal não assegurou aos Réus um julgamento justo e conforme a lei, imposto pelo artigo 72.º da CRA e não efectuou uma tutela efectiva dos direitos e liberdades fundamentais dos Réus.
Venerandos Juízes Conselheiros:
48. Na prática forense do mundo inteiro, se defende que “mais vale manter um criminoso solto do que um inocente na cadeia”. Para o efeito se faz apelo a máxima para este Venerando Tribunal não faltar com a justiça aos Réus que apenas foram condenados pela sua bondade de querer salvar a vítima.
A condenação dos Réus se deveu a erro de investigação e instrução dos autos, aliás recorrente, dos nossos serviços de investigação criminal, por falta de meios, preguiça ou imperícia.
O Tribunal nas suas duas instâncias mais não fez senão, ratificar o erro dessa investigação, socorrendo-se em aspectos sórdidos como o facto da Ré ter comunicado ao seu ex-marido ou pai do filho “ter visto a vítima esfaqueada” sem referir quem o autor da lesão.
Ora, esse é um linguajar da nossa população com pouca instrução que não podia jamais ser ignorado por um julgador diligente.
Venerandos, estamos aqui perante a estória do coelho.
Numa sátira se conta que certo dia os polícias de investigação criminal de quatro países decidiram fazer o concurso de investigação criminal e usaram o coelho, quem trouxesse o coelho em curto espaço de tempo seria o vencedor. Os primeiros três países trouxeram o coelho num determinado tempo. Chegado a vez de Angola os investigadores depois de se afastarem da vista do júri decidiram não perder tempo com a investigação decidindo deter qualquer um que fosse encontrado no local do crime. Logo apareceu-lhes o porco, que o detiveram e foi apresentado como coelho.
A sátira é semelhante ao caso vertido na decisão que se recorre, pois, os Réus acolheram a vítima e procuraram salvar a sua vida, solicitando apoio da família da vítima para a transportar ao hospital e assim aconteceu.
Os Réus confiam neste Tribunal que não fará tábua rasa ao erro da investigação e aceitar que essa condenação não é contrária a constituição por condenar os Réus sem culpa provada, e ao crime não corresponder os pressupostos previstos na lei.
Os Recorrentes concluem as suas alegações referindo que o acórdão recorrido viola, pois, os princípios da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 655.º do CPC e consequentemente o princípio da legalidade, o princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, os princípios do julgamento justo e conforme a lei e da tutela jurisdicional efectiva, impostos pelos artigos 29.º e 72.º da CRA, bem como o n.º 2 do artigo 65.º da CRA, pelo que deve ser declarado inconstitucional e consequentemente que os Réus sejam absolvidos, com todos os efeitos legais e fazendo-se singela homenagem ao Direito e a Justiça.
O Processo foi à vista do Ministério Público (fls. 492-494) que, em conclusão, promoveu o seguinte:
Inconformados com o Acórdão prolactado pela 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribuna Supremo, os recorrentes vieram ao Tribunal Constitucional interpôr o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Entendem os recorrentes, em síntese, que:
-O Acórdão recorrido é inconstitucional por violação de princípios, direitos, liberdades e garantias consagradas na Constituição da República de Angola (CRA).
O Acórdão em crise violou:
- O Acórdão recorrido não provou que os recorrentes foram autores do crime pelo qual foram condenados.
- Pedem ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade do acórdão recorrido e, consequentemente, a sua absolvição.
Ora, compulsados os autos, constata-se sobre a livre apreciação da prova, o Tribunal recorrido avaliou os elementos probatórios ligados as circunstâncias da morte da infeliz Tatiana Soares João, que foram determinantes para concluir que a luz das regras da experiência comum da vida e de raciocínio de um homem médio, os recorrentes cometeram o crime pelo qual foram julgados e condenados.
Esta apreciação assenta no princípio da livre apreciação da prova pelo julgador. A prova produzida, neste caso, resultou das declarações dos intervenientes, atitudes (comportamentos) dos recorrentes após o sucedido e vestígios dos autos de fls. 46, 47 e 48. A conclusão normal em face das circunstâncias descritas nos autos, é admitir que os recorrentes, de forma concertada, provocaram a morte da infeliz.
Todavia, tratando-se da matéria de prova, o Tribunal Constitucional não é competente para conhecer a alegada violação do princípio da livre apreciação da prova, pois, tal implica a apreciação da matéria de facto.
Ao Tribunal Constitucional compete velar pela observância rigorosa dos princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
Chegado a este entendimento, fica prejudicada a questão da presunção da inocência.
Aos recorrentes foram assegurados todos os direitos processuais que vão desde o exercício de defesa, contraditório, até aos recursos (ordinário e extraordinário), não se vislumbrando, por isso, qualquer indício de violação do julgamento justo e conforme a lei e da tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 72.º e 29.º, ambos da CRA.
Nestes termos, somos pelo indeferimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, conjugado com o artigo 53.º da LPC, pelo que tem o Plenário do Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
A legitimidade para o recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, de harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC.
Igualmente tem legitimidade para recorrer, aquele que, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido, nos termos do n.º 1, do artigo 680.º do CPC, aqui aplicado ex vi do artigo 2.º da LPC, que estabelece a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil, aos processos de natureza jurídico-constitucionais.
No caso concreto, os aqui Recorrentes, enquanto partes no Processo n.º 2452/18, que não viram as suas pretensões atendidas, têm certamente legitimidade para recorrer.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar se o Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 2452/18, violou princípios, direitos ou garantias fundamentais previstos na CRA.
V. APRECIANDO
É submetida à apreciação do Tribunal Constitucional o Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que condenou os Recorrentes, embora com qualificação diversa, terá, eventualmente, violado princípios e direitos constitucionais a que os Recorrentes se arrogam.
Pelo que, se passa a analisar:
O princípio da legalidade obriga a uma actuação exclusivamente pautada por critérios de natureza legal.
Como refere Hermenegildo Cachimbombo, “Ao analisarmos o conteúdo deste princípio, devemos ter em mente dois aspectos: por um lado temos em conta a legalidade da decisão, que implica que o sentido decisório deve ter necessariamente como fundamento os critérios de composição de conflitos integrados em normas jurídicas, portanto, na lei, e, por outro lado, devemos ter em conta a legalidade dos trâmites processuais”, in Manual de Processo Civil e Perspectivas da Reforma, Casa das Ideias, página 45.
Segundo Gomes Canotilho é reforçada a força de lei ao referir que, “O princípio da preferência da lei comporta ainda hoje uma dimensão positiva e uma dimensão negativa. A dimensão positiva traduz-se na exigência de observância ou de aplicação da lei; a dimensão negativa implica a proibição de desrespeito ou de violação da lei”, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 5ª Edição, página 716.
Da análise do acórdão objecto do presente recurso e dos respectivos autos, alegam os Recorrentes que terá sido violado o princípio da legalidade, na medida em que o Tribunal ad quem ao corroborar a condenação do Tribunal a quo está a considerar como válidos, factos baseados em presunções, em detrimento de uma prova credível, segura e irrefutável, violando assim, igualmente, o princípio da livre apreciação da prova, pois tal princípio não é arbitrário e deve, prima facie estar baseado na lei.
Descreveram e bem os Recorrentes o princípio da livre apreciação da prova, uma vez que o referido princípio, tendo subjacente o respeito pela lei e como objectivo alcançar a verdade material, atribui ao julgador uma margem de discricionariedade.
Na verdade, decorre do artigo 655.º do Código de Processo Civil (CPC) que o julgador aprecia livremente as provas e responde aos quesitos segundo a convicção que tenha formado da prova produzida, salvo se a própria lei fixar um determinado formalismo para a existência ou prova de um facto jurídico.
Urge enfatizar-se, que na base da condenação dos Recorrentes esteve um crime de homicídio, ocorrido em circunstâncias que indicam terem sido os Recorrentes os únicos a presenciar, e em crimes desta natureza, todos os mais pequenos indícios da prática desse mesmo crime e de quem é o presumível autor devem ser valorados pelo julgador.
Assim, diante de todos esses indícios, o julgador é livre de valorar os elementos de prova e firmar o seu juízo de certeza, com base no princípio da livre apreciação da prova, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional aferir se o Tribunal ad quem, ao corroborar o entendimento do Tribunal a quo, diante dos factos de que dispunha, apreciou bem ou mal os elementos probatórios.
No entanto, esta Corte Constitucional conclui que não decorre, do princípio da livre apreciação da prova, enquanto prerrogativa legal concedida aos magistrados judiciais, de per si, qualquer violação ao princípio da legalidade por desrespeito ao princípio da livre apreciação da prova.
O princípio da presunção de inocência estabelece que todo o arguido se presume inocente, até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. A sua violação constituiu motivo da recusa de aplicação da norma pelo Tribunal a quo. Este princípio tem como corolário, em matéria de prova, o princípio do in dubio pro reo, impõe que, em caso de dúvida, o julgador valore a prova em benefício do arguido.
Este princípio subsume-se como uma garantia processual, plasmada na Constituição, que visa assegurar que nenhum cidadão possa ser considerado culpado de ter cometido qualquer infracção ou delito, até que se esgotem todos os meios para a sua defesa, até ao trânsito em julgado da sentença.
Na verdade, a doutrina assinala como conteúdo adequado do princípio da presunção de inocência, nomeadamente, a proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; a preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do processo; a exclusão da fixação de culpa em despachos de arquivamento; a não incidência de custas sobre arguido não condenado; a proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares; a proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, página 203).
Destarte, não se verifica neste quadro uma presunção de culpa. Está-se sim, perante uma apreciação da prova produzida nos autos, prova essa que pode ser directa ou indirecta.
No caso concreto é prova directa a vítima mortal e a autópsia realizada a fls. 29 e 30 dos autos, que dá conta da causa da morte da vítima, a saber, morte por choque hipovolémico como resultado de ferimento torácico provocado por arma branca e, prova indirecta todos os factos indiciadores ou circunstanciais da ocorrência do crime, que, não obstante tratar-se de uma prova em segundo grau, se corroborada por outros meios de prova pode revelar-se bastante esclarecedor.
Perante o acima exposto, resulta que o Tribunal ad quem fundamentou a condenação dos Recorrentes, com base num abundante rol de provas directas e indirectas, entre as quais a prova por declarações, a testemunhal e a documental, como o relatório de autópsia médico-legal e o exame técnico do laboratório de criminalística, valorando – as segundo as regras da experiência e da livre convicção probatória, nos termos do artigo 655.º do CPC e não em mera presunção de culpa, conforme alegado pelos Recorrentes.
Assim, este Tribunal considera não se verificar qualquer violação aos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, pois, a prova indiciária é uma prova de probabilidades e é o somatório de tais probabilidades que será valorada pelo julgador.
O direito a julgamento justo e conforme a lei, consagrado no artigo 72.º da CRA, é um pressuposto do Estado Democrático de direito e uma garantia que pressupõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente.
Este direito constitucional tem como objectivo assegurar um julgamento justo, cujo processo seja equitativo, capaz de garantir a justiça substantiva e uma decisão dentro de um prazo razoável respeitando os procedimentos judiciais, tais como a celeridade e a prioridade, de modo a obter a tutela efectiva em tempo útil contra eventuais ameaças ou violações dos seus direitos.
Ademais, o julgamento justo pressupõe ainda, a garantia ao arguido do respeito aos princípios da imparcialidade, de independência e de equidade, aliado a um tratamento dado pelos Tribunais de modo formalmente igual, às partes e seus representantes legais.
No que concerne ao princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva de referir que sendo um dos princípios do regime geral dos direitos fundamentais, assegura a todos os cidadãos o direito de recorrer aos tribunais, independentemente da sua condição económica, garantindo-se-lhes deste modo, o acesso à lei e ao patrocínio judiciário.
Este princípio também pressupõe o acesso a todos os cidadãos à informação e à consulta jurídica e ao segredo de justiça, de forma a garantir a eficácia da investigação criminal, para assegurar a imparcialidade do processo e do julgamento.
Como alude Hermenegildo Cachimbombo, “No que se refere à tutela jurisdicional efectiva, deve ser entendida no sentido de que a protecção jurídica de todos os direitos e interesses legalmente protegidos deve ser concedida pelos tribunais em tempo razoável.”, in Manual de Processo Civil, Casa das Ideias, Página 39.
Ora, da análise das decisões recorridas esta Corte Constitucional considera que não resulta qualquer atropelo nesta matéria, uma vez que a qualificação do tipo legal de crime aplicado em processo penal não cabe no escopo de qualquer dos princípios apontados neste quesito, não tendo os Recorrentes fundamentado convenientemente a verificação de tais violações, aos princípios do julgamento justo e conforme a lei e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
Face a tudo quanto foi expendido, o Tribunal Constitucional considera que não se verificaram, no acórdão recorrido, conforme alegado, violações aos princípios constitucionais a julgamento justo e conforme a lei e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
Sem custas (nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional).
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 3 de Novembro de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente e Relatora)
Dr. Carlos Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria de Fátima de Lima d’A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata