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ACÓRDÃO N.º 710/2021

PROCESSO N.º 857-A- 2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade 

Em nome do Povo, acordam, os Juízes, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Fernando Henriques Teixeira  melhor identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade de um despacho do Juiz Presidente 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que indeferiu o requerimento de interposição do recurso ordinário interposto pelo aqui Recorrente do despacho que ordenou revistas, buscas e apreensões por incompetência manifesta do Digno Magistrado do Ministério Público e do despacho que indeferiu o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, bem como, do despacho que indeferiu a reclamação apresentada  à Câmara Criminal do Tribunal Supremo sobre o indeferimento do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Presidente do Tribunal da rejeição do recurso.

Para tanto, o Recorrente apresentou em alegações as seguintes conclusões:

  1. O presente recurso é interposto contra o despacho prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento à Reclamação apresentada pelo Requerente contra o despacho que indeferiu in limine o recurso interposto junto do Juiz de Turno, conforme despacho proferido pelo Tribunal Supremo, reclamação e o requerimento de recurso ordinário apresentados pelo Arguido.
  2. Os aludidos impulsos processuais foram apresentados pela defesa do Arguido, ora Requerente, na sequência do despacho proferido pelo Juiz de Turno que recaiu sobre o requerimento de arguição de nulidade das buscas e apreensões que foram ordenadas e realizadas pelo Procurador da República, junto do Serviço de Investigação Criminal. 
  1. De acordo com aquele despacho, o Colendo Juiz de Turno não dispõe de legitimidade para apreciar as matérias relacionadas com as referidas diligências de obtenção de prova. 
  1. Subsequentemente, a decisão tomada pelo Colendo Juiz de Turno, foi trilhada da mesma forma por despacho do Juiz da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, o que representa um desvio, frontal e directo, do disposto nos artigos 2.º, n.ºs 3 e 4, 15.º n.º 1 e 17.º n.º 1, todos da Lei n.º 2/14, de 10 de Fevereiro – Lei Reguladora das Revistas, Buscas e Apreensões. 
  1. Tal assim é porque auto-excluem-se e demarcaram-se das competências que neles foram atribuídas no referido diploma legal ao Juiz de Turno, enquanto Tribunal funcionalmente competente para apreciar as matérias que contendem com direitos fundamentais na fase embrionária de processo sob instrução preparatória. 
  1. Pelo que, essa decisão traduz-se na negação por desaforamento das competências exclusivamente reservadas aos Tribunais ao Ministério Público, numa obliteração do Princípios do Estado Democrático de Direito, da Legalidade, Judicialidade, da Confiança e da Protecção das Expectativas, da Presunção de Inocência, da Proporcionalidade, das Garantias do Processo Criminal e dos Princípios a Tutela Jurisdicional Efectiva e a um Julgamento Justo e Conforme, todos com assento Constitucional nos artigos 2.º, 29.º, 57.º, 63.º, 67.º, 68.º, 72.º e 174.º, da “CRA”. 
  1. Todavia, antes de mais, para melhor compreensão das questões subjacentes a apresentação do presente recurso, deve explicitar-se, ainda que sucintamente, os principais factos que desencadearam a presente reacção até à instância actual. 
  1. Assim, o Requerente foi constituído “Arguido” nos referidos autos de instrução preparatória, sob o número 3419/019-0.5, que correm os seus termos junto da Procuradoria da República afecta ao Serviço de Investigação Criminal “SIC-Central”.
  1. Após a sua audição ocorrida no dia 28 de Janeiro de 2020, o Requerente não voltou a ser chamado para prestar esclarecimentos nos referidos autos sob instrução preparatória, desconhecendo o respectivo andamento processual penal. 
  1. Sucede, porém, que, no dia 09 de Junho de 2020, pelas 10 horas da manhã, quando saía do interior do Hotel HCTA, em Talatona, e dirigia-se para o local onde se encontrava a sua viatura, o Arguido foi interpelado, súbita e repentinamente, por 7 (sete) Agentes do Serviço de Investigação Criminal, Departamento de Operações, os quais de imediato impediram o Arguido de sair com a viatura e informaram-no que estavam em posse de um “Mandado de Revista, Busca e Apreensão”. 
  1. Acto contínuo, os referidos Agentes informaram-no que teria de deslocar-se com o mesmo até à sua residência, a fim de cumprirem o mandado de revista, busca e apreensão. Imediatamente, o Arguido solicitou que entrasse em contacto com o seu mandatário, facto que lhe foi negado num primeiro momento pelos referidos Agentes do SIC. 
  1. Pelo que, em atenção a forma como foi interpelado o Arguido não teve outra alternativa senão obedecer independentemente de ter consentido na realização das buscas no seu imóvel, sito no Condomínio” Luanda”, apartamento n.º 27-3-A, Talatona, sendo que, uma vez chegados ao imóvel, os referidos Agentes acederam de imediato ao interior do imóvel e deram início às buscas pelo mesmo em todas as dependências. 
  1. Seguidamente, sem qualquer tipo de critério objectivo, os mesmos agentes passaram a apreender vários documentos pessoais, mesmo sem qualquer tipo de conexão com os factos abstractamente objecto que se encontram sob instrução. 
  1. Para além disso, as referidas buscas e apreensões estenderam-se igualmente à sede social da Rede Record de Televisão (Angola), Lda. e uma vez no referido local realizaram também buscas e apreensões apesar da falta de cobertura legal do mandado. 
  1. Não obstante ser manifestamente evidente a necessidade do referido mandado ser emitido por um Magistrado Judicial, certo é que, no caso em apreço, por mandado emitido pelo Procurador da República afecto ao Serviço de Investigação Criminal, as referidas buscas na sede social da Rede Record foram realizadas e realizadas também apreensões de elementos conforma identificado nos autos. 
  1. Pelo que, apreciando-se jurídico-constitucionalmente as referidas buscas e apreensões, as mesmas dependem do juízo prévio a ser emitido pela Autoridade Competente em relação a existência de suspeita com fundamento bastante que os objectos relacionados com a prática de um crime se encontram em lugar reservado ou não acessível, conforme o n.º 2, do artigo 1.º, da Lei n.º 2/14, de 10 de Fevereiro. 
  1. Assim, as buscas não devem ser orientadas de maneira a alcançar-se e apreender-se o máximo de elementos factuais que depois de avaliadas poderão constituir indícios do cometimento de um eventual crime contra uma determinada pessoa. 
  1. No caso em apreço, tal como resulta do referido mandado, as referidas buscas tiveram como finalidade única a recolha de todo e qualquer elemento que pudesse configurar a prática de um crime, seja ele qual fosse, atendendo que o próprio tipo de crime indicado no mandado junto aos autos não permitira também orientar funcional e objectivamente os elementos de prova que deviam ser apreendidos. 
  1. Por outras palavras, o facto de o crime de branqueamento de capitais ser objecto de sancionamento penal independente nos termos da respectiva legislação, não legitima nem afasta a necessidade de averiguação dos crimes subjacentes através dos quais se poderá compreender a proveniência dos fundos objecto do branqueamento. Esses crimes subjacentes não foram sequer indicados no Mandado.
  1. A fonte legitimadora das buscas é condicionada objectivamente por uma simples razão. Além do carácter intrusivo do referido meio de obtenção de prova, a própria Constituição elege o domicílio das pessoas como um dos espaços de manifestação da privacidade mais intima e pessoal de qualquer indivíduo, razão pela qual, nos termos do artigo 33.º, da nossa Lei Fundamental, o domicílio é inviolável. 
  1. O carácter inviolável do domicílio origina que em sede processual penal a legitimação da sua afectação além de assumir um carácter excepcional deverá ser cotejada com particulares cautelas, de maneira a não colocar-se em causa a referida protecção constitucional. 
  1. Por isso, tal direito poderá ser afectado quando for emitido um mandado pela autoridade competente, desde que seja emitido nos casos e segundo as formas legalmente previstas. Mas, não poderá ser um qualquer mandado nem o acto que se segue a sua emissão poderá consistir numa qualquer formalidade. In casu, foi emitido um mandado incerto, vago e genérico de maneira a permitir que Agentes de investigação cumprissem a referida diligência processual com devassa da vida privada. 
  1. Acresce ainda que o mandado de busca e apreensão foi ordenado por um Magistrado do Ministério Público quando devia ter sido ordenado por um Magistrado Judicial. 
  1. Porque deverá ser entendido por “Autoridade Competente” para efeitos do artigo 33.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, para autorizar buscas domiciliárias e apreensões não aquela que tem interesse directo na mesma e nos seus resultados. 
  1. Antes pelo contrário, por “Autoridade competente” deverá ser necessariamente aquela que nos termos da Constituição tem competência para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acusatório e do contraditória e reprimir violações da legalidade democrática”, conforme o disposto no n.º 2, do artigo 174.º, da Lei Fundamental. 
  1. Também o disposto no artigo 2.º, n.º 4, da Lei Reguladora das Revistas, Buscas e Apreensões, resulta, expressamente, que as demais buscas e apreensões – não mencionadas no n.º 3, do artigo 2,º, da referida Lei – devem ser presididas “na fase de instrução preparatória pelo Magistrado do Ministério Público” (…) e “pelo Juiz que as ordenar” (…), razão pela qual, atendendo os referidos princípios constitucionais supramencionados, a interpretação segundo a constituição deverá levar com que o intérprete Aplicador considere que a Autoridade Competente seja o Magistrado Judicial e não – sob pena de inconstitucionalidade – o Magistrado do Ministério Público. 
  1. Acresce, igualmente, que as referidas buscas no domicílio profissional do Arguido foram realizadas num órgão de comunicação social, implicando, portanto, que as mesmas deviam ter sido ordenadas por um Juiz e presididas pelo Ministério Público ou Procurador da República, nos termos do disposto no n.º 3, do artigo 2.º, da Lei n.º 2/14, de 10 de Fevereiro, Lei Reguladora das Revistas, Buscas e Apreensões. 
  1. No caso em apreço, tal assim não sucedeu. Acabaram por ser realizadas buscas num órgão de comunicação social – a Rede Record de Televisão (Angola), Lda. – apesar do órgão competente para ordenar as mesmas não ter emitido nenhum despacho para o efeito. 
  1. Pelo que não restam dúvidas que o mandado prolactado pela Autoridade Judiciária e que ordenou as referidas buscas violou o disposto nos artigos 1,º, 2.º e 3.º, do artigo 33.º, da Constituição, bem como o disposto nos artigos 1.º, 2.º e 14.º, Lei n.º 2/14, de 10 de Fevereiro, Lei Reguladora das Revistas, Buscas e Apreensões. 
  1. Também não ressaltam dúvidas da violação dos Princípios do Estado Democrático de Direito, da Legalidade, da Confiança e da Protecção das Expectativas, da Presunção de Inocência, da Proporcionalidade, das Garantias do Processo Criminal e dos Princípios a Tutela Jurisdicional Efectiva e a um Julgamento Justo e Conforme, todos com assento e previsão Constitucional nos artigos 2.º, 29.º, 57.º, 63.º, 67.º, 68-º, 72.º e 174, da “CRA”. 
  1. Acresce que, das demais decisões prolactadas nos presentes autos que estão sob censura, o Tribunal a quo denega o direito ao recurso que foi apresentado pelo Arguido por considerar que não dispõe da faculdade legal para tal, na medida em que, entende que não existe preceito legal atributivo de competência ao Juiz de Turno para efeitos de apreciação e validação das buscas e apreensões por a competência do Juiz de Turno ser reservada à apreciação das medidas de coacção pessoal aplicadas no âmbito da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro. 
  1. Ora, tal posição é de todo incompreensível à luz da actual Constituição. É que, salvo o devido e merecido respeito, a apreciação das medidas de coacção por parte do referido Juiz de Turno não poderá ser vista como uma intervenção judicial desligada das regras de competência funcional dos Tribunais, em que a referida apreciação não passa de uma intervenção do “Agente”, ou Juiz, que fica encarregue de controlar a medida de coacção aplicada. 
  1. O Juiz de Turno deve, à luz das normas e princípios Constitucionais, ser considerado como um órgão judicial, com competência para intervir na fase da instrução preparatória e, consequentemente, apreciar os actos praticados pelo Magistrado do Ministério Público nessa fase e, bem assim, autorizar, a seu pedido, actos e diligências processuais que ofendem direitos fundamentais. 
  1. Com efeito, a intervenção do Juiz de Turno à luz do respectivo regime jurídico aplicável, não é feito a título excepcional e configurando-se o Juiz que intervém nele como uma espécie de “Agente” que irá sindicar apenas as medidas de coacção pessoal aplicadas pelo Ministério Público durante a fase de instrução preparatória do processo penal.
  1. Antes pelo contrário, o Juiz de Turno intervém dentro da organização judiciária a que pertence e no âmbito mais vasto dos órgãos que constitucionalmente integram o poder judicial, nos termos dos artigos 174.º, da nossa Lei Fundamental. 
  1. À luz dos referidos preceitos constitucionais, o sistema de organização e funcionamento dos Tribunais compreende uma jurisdição comum encabeçada pelo Tribunal Supremo e integrada por Tribunais da Relação e outros Tribunais.
  1. É dentro dessa jurisdição comum que deverão ser enquadrados os Tribunais do Juiz de Turno cuja intervenção consistirá apreciar todas as questões colocadas antes das fases de julgamento do processo penal, não podendo, de nenhuma forma, por força da terminologia utilizada – Juiz de Turno – considerar-se aquele como “pessoa física”, isto é, “o concreto magistrado judicial titular desse órgão e função.” 
  1. O Juiz de Turno corresponde, pois, ao órgão judicial com competência funcional para intervir nas referidas fases processuais e que está enquadrado na respectiva organização judiciária, sendo, portanto, as decisões tomadas pelo referido órgão judicial impugnadas por intermédio de recurso ordinário para o Tribunal de Hierarquia Superior. 
  1. Caso se entendesse o contrário, seria admitir a existência de uma figura absolutamente desintegrada de um sistema judicial organizado, de carácter excepcional e cujos actos não poderiam ser objecto de recurso, resvalando-se, portanto, tal posição contrária aos Princípios do Estado Democrático de Direito, da Legalidade, Judicialidade, da Confiança e da Protecção das Expectativas, da Presunção de Inocência, da Proporcionalidade, das Garantias do Processo Criminal e dos Princípios a Tutela Judicial Efectiva e a um Julgamento Justo e Conforme, todos com assento Constitucional nos artigos 2.º, 29.º, 57.º, 63.º, 67.º, 68-º, 72.º e 174.º, da “CRA”. 
  1. Também está mais do que evidente que o facto de ter sido a referida Lei a criar, efectivamente, os Juízes de Turno, tal não significa que as competências dos mesmos estejam circunscritas, única e exclusivamente, ao julgamento das questões que contendem com a aplicação de medidas de coacção pessoal e de garantias patrimoniais previstas no diploma de criação, nomeadamente a Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro. 
  1. De facto, as competências dos Juízes de Turno enquanto “o conjunto de faculdades jurídicas confiadas a cada órgão “poderão ser definidas por outros diplomas legais, desde que esses se situem dentro da hierarquia normativa que lhes permita conferir, atribuir e definir as referidas competências. 
  1. Nos termos do disposto nos artigos 174.º e seguintes da CRA, cabe a Lei a definição da constituição, organização, competência e funcionamento dos Tribunais, razão pela qual a atribuição dessa competência não precisa estar contida no diploma legal de criação do órgão judicial.
  1. Tal como aludido pelo Prof. Figueiredo Dias, “há muito que se tenha considerado, com inteira razão, como puro corolário daquela exigência de legalidade a afirmação do princípio do Juiz Natural ou Juiz Legal, através do qual se procura sancionar de forma expressa, o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior, e não ad hoc ou tido competente”. Ora, como expressão do referido corolário do princípio do Juiz Natural consiste no facto de “só a lei pode instituir o juiz e fixar-lhe a competência”. 
  1. Assim, à luz do acima referido, não existem dúvidas que a competência do Juiz de Turno no nosso ordenamento jurídico foi também realizada através de outros diplomas legais que visaram determinar a sua competência funcional por fases ainda que noutro diploma que não o de criação. 
  1. Foi neste sentido que estabeleceu-se a competência do Juiz natural para autorizar e ordenar buscas em escritórios de advogados, estações de correios, serviços de telecomunicações e órgãos de comunicação social, conforme previsto no artigo 2,º n.º 3, da Lei Reguladora das Revistas, Buscas e Apreensões.
  1. Da mesma forma, foi atribuída competência ao Juiz para ordenar a apreensão de correspondência quer de cartas, telegramas e e-mails, etc., conforme previsto no artigo 15.º e 16.º, da Lei Reguladora das Revistas, Buscas e Apreensões. 
  1. Ressalta também do acima descrito a existência de um denominador comum nos termos do qual a fixação das referidas competências se concentram numa determinada fase do processo penal, isto é, a intervenção do Magistrado Judicial deve ser realizada na fase embrionária do processo crime ou instrução preparatória sempre que sejam levantadas questões de direitos fundamentais dos cidadãos. 
  1. Ora, se assim é, se se reconhece a existência do referido denominador comum, mal se compreenderia que se considerasse que aquela competência não se enquadraria na fracção do poder de julgar que cabe ao Juiz de Turno, mas antes, ao Magistrado o Ministério Público, através da construção de uma teoria de transitoriedade circunstancial que não encontra respaldo constitucional e legal. 
  1. Desta forma, a competência dos Juízes de Turno permite a sua intervenção em todos os actos praticados durante a fase de instrução preparatória cuja fiscalização jurisdicional lhe tenha sido requerida por qualquer cidadão em resultado da violação de direitos, liberdades e garantias, em linha com os princípios da legalidade, acusatório e da reserva judicial em matéria de apreciação e fiscalização dos direitos, liberdades e garantias, o qual é também “alheio à definição da estratégia investigatória, devendo de forma imparcial (também no plano operativo) avaliar a legalidade das intervenções que lhe são queridas”, tal como decorrem dos artigos 2.º, 29.º 34.º, 67.º, 72.º, 174.º e 186.º, todos da Constituição da República de Angola.
  1. Assim, entender que aos Juízes de Turno não lhes são conferidas quaisquer outras competências além daquelas que resultam do diploma legal que esteve na base da sua criação, significaria simplesmente que, em sede processual penal, a função jurisdicional estaria, de forma infundada, restringida e limitada, na medida em que não se faria sentir em todas as fases de um processo penal, correspondendo a uma situação em que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos não seriam, de nenhuma, garantidos nem controlados, porquanto não se asseguraria a “carácter negativo protector” que resultaria da intervenção judicial nessa fase. 
  1. Também aqui não restam dúvidas que a interpretação seguida pelo Tribunal “a quo” além de redutora das próprias funções atribuídas constitucionalmente aos Tribunais e aos Juízes, origina igualmente que a Magistratura do Ministério Público assuma outras competências e funções fora daquelas que lhe estão reservadas, gerando, consequentemente, efeitos perniciosos que são díspares à luz do próprio plano constitucional, conforme resulta dos artigos 185.ºe seguintes da Constituição. 
  1. Com efeito, o despacho prolactado pelo Tribunal a quo representa uma violação clara dos princípios básicos da organização do nosso Estado, porquanto, de forma incompreensiva, pretende reconhecer a falta de competência em matérias reservadas exclusivamente à apreciação judicial – como são aquelas de controlo de actos que ofendem direitos fundamentais praticados durante a fase de instrução dos processos crimes – esvaziando, em consequência, toda a protecção que se encontra garantida constitucionalmente através dos princípios acima referidos. 
  1. Apesar de concordarmos com o Prof. Vieira de Andrade que “a garantia principal dos direitos fundamentais resulta deles próprios, do seu enraizamento na consciência histórico-cultural da humanidade e da sua tradução estrutural em cada sociedade concreta”, recusamo-nos, contudo, a aceitar que sejam permitidas afectações negativas e até ablativas de direitos fundamentais de cidadãos e instituições, sem que os mesmos possam ter alguma possibilidade de recurso com vista a respectiva sindicância e controlo por um terceiro numa posição de equidistância. 
  1. Tal posição representa também pois uma violação das Convenções Internacionais em que o Estado Angolano é parte signatária como a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, “Carta de Banjul”, a qual estabelece como direitos do homem e dos povos, “o direito de recurso aos tribunais nacionais competentes de qualquer acto que viole os direitos fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos”. 
  1. Pelo que antecede do acima exposto, não podem resultar dúvidas que o douto despacho proferido pelo Tribunal “a quo” oblitera de forma frontal e directa os Princípios do Estado Democrático de Direito, da Legalidade, da Confiança e da Protecção das Expectativas, da Presunção de Inocência, da Proporcionalidade, das Garantias do Processo Criminal e dos Princípios da Tutela Jurisdicional Efectiva e a um Julgamento Justo e Conforme, os com assento Constitucional nos artigos 2.º, 29.º, 57.º, 63-º, 67.º, 68.º, 72.º, 174.º e 184.º, da Constituição da República de Angola “CRA”.

Terminou pedindo que o recurso mereça o devido provimento, designadamente quanto à declaração de inconstitucionalidade dos despachos recorridos, nos termos do artigo 47.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional.

O Digníssimo Magistrado do Ministério Público emitiu o seguinte parecer:

O Recorrente foi constituído arguido por haver forte suspeita da prática do crime de branqueamento de capitais, tendo sido ordenado pelo Magistrado do Ministério Público revista, busca e apreensões no seu domicílio civil e profissional (Sede da Rede Record Angola). 

Em discordância, requereu a nulidade das revistas, buscas e apreensões efectuadas ao Juiz Presidente do Tribunal Provincial de Luanda. 

O Juiz Presidente indeferiu o requerimento, com fundamento na sua falta de legitimidade para intervir, por não se tratar de medidas cautelares. 

Inconformado, o Recorrente interpôs recurso para o Venerando Tribunal Supremo, ao que foi indeferida pelo Juiz de Turno. 

O Recorrente deduziu uma reclamação contra o indeferimento do recurso ao Juiz Presidente do Tribunal Supremo. 

O Juiz Conselheiro Presidente da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo não admitiu a reclamação, por falta de suporte legal. 

O Recorrente vem interpor o recurso extraordinário de inconstitucionalidade do despacho do Venerando Tribunal Supremo, com fundamento na violação dos princípios do Estado Democrático de Direito, da Legalidade, da Confiança e da Protecção das Expectativas, da Presunção de Inocência, da Proporcionalidade, da Tutela Jurisdicional Efectiva, consagrados nos artigos 2.º, 29.º, 57.º, 63.º, 67.º, 68.º, 72.º, 174.º e 184.º, todos da CRA. Nos termos do artigo 645.º do CPP, é permitido recorrer dos despachos, sentenças ou acórdãos, proferidos por qualquer Juiz ou Tribunal, em matéria penal, que não forem proibidos por lei.

O n.º 6 do artigo 67.º e o artigo 29.º, ambos da CRA conferem a todos os cidadãos, como garantia do processo criminal, o direito ao recurso.

Analisado o despacho do Juiz Presidente do Tribunal Provincial de Luanda, entendemos que não se enquadra nos despachos que não admitem recurso previstos no artigo 646.º do CPP, pelo contrário, cabe recurso, já que se pronunciou sobre os direitos e as garantias do Recorrente.

Assim sendo, o despacho do Juiz Conselheiro Presidente da 1-ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que indeferiu o recurso do Recorrente viola o artigo 645.º do CPP e, consequentemente, o princípio da legalidade, bem como a tutela jurisdicional efectiva e o direito ao recurso previstos na CRA.

Pelo acima exposto, o Ministério Público pronuncia-se pela procedência do presente recurso.”

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

 II. COMPETÊNCIA

 Questão Prévia Prejudicial

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto, nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, do despacho do Juiz Presidente da 1.ª Secção Criminal do Tribunal Supremo que, corroborando com o Meritíssimo Juiz de Turno, não admitiu o recurso endereçado ao Tribunal Supremo por falta de fundamento legal e por ser incompetente.

Interposto recurso extraordinário de inconstitucionalidade, mereceu, de igual modo, um despacho de indeferimento por considerar não haver sustentação legal para o efeito, bem como, do despacho que indeferiu a reclamação deste despacho de rejeição de recurso.

Nos termos do § único do artigo 49.º da LPC, são passíveis de recurso extraordinário de inconstitucionalidade as sentenças dos demais Tribunais que violem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, após esgotamento nos tribunais comuns e demais Tribunais, dos recursos ordinários legalmente previstos (sublinhado e negritado nosso) e dos actos administrativos definitivos e executórios que contrariem princípios constitucionais.

A Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, ao consagrar o § único do artigo 49.º da LPC, “retirou ao Tribunal Constitucional a competência de conhecer directamente dos recursos extraordinários de inconstitucionalidade interpostos de decisões proferidas pelos demais tribunais, bem como de actos administrativos definitivos e executórios que contrariem princípios, liberdades e garantias previstos na Constituição, sem que se esgote a cadeia de recursos ordinários oponíveis. Nestes termos, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade deixou de consubstanciar, nos termos do sobredito § único, matéria cuja apreciação compita, em primeira instância, ao Tribunal Constitucional.” Vide Acórdão n.º 143/2011, de 8 de Setembro deste Tribunal Constitucional.

Ora, no caso em análise, não se está perante uma decisão final, mas perante dois despachos: um, ao não admitir o recurso ordinário interposto de um despacho que ordena as buscas e apreensões e, um outro, que não admite o recurso extraordinário de inconstitucionalidade daquele mesmo despacho e que indeferiu a reclamação por incompetência do Juiz Relator, já que, esta é da competência do Presidente do Tribunal para onde se recorre, no caso, o Presidente do Tribunal Supremo.

Não se tratam, porém, de despachos que ponham fim ao processo, porquanto o mesmo continua os seus termos.

Na verdade, não se põe em causa que o despacho recorrido possa estar eivado de alguma inconstitucionalidade mas, isso não justifica de imediato a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade, na medida em que a própria lei do processo constitucional não o permite, ao limitar esta espécie de recurso aos despachos e decisões que ponham termo ao processo, assim se garantindo o respeito pelos princípios da celeridade e economia processual e também de um julgamento justo, porquanto, não se pode falar de justiça quando a mesma surja fora de tempo.

Por outro lado, ensinam-nos as regras de experiência comum que, mais das vezes, estes recursos constituem verdadeiras manobras dilatórias com o único objectivo de atrasarem a normal tramitação processual e apostarem, por exemplo, num excesso de prisão preventiva ou num retardamento do cumprimento da pena ou de qualquer obrigação.

Daí que a interpretação do mencionado § único do artigo 49.º da LPC, deva ser o mais restritiva possível, sob pena de, também o Tribunal Constitucional, garante da defesa dos princípios constitucionais, estar a incorrer em violações desses princípios, o que não é expectável e forja a confiança que o cidadão deve depositar na nossa administração da justiça.

Com efeito, quando se fala em pôr termo ao processo, significa que o processo será arquivado por qualquer razão legal, nomeadamente e a título meramente exemplificativo, haja um despacho de arquivamento em sede de instrução, de não pronúncia ou de decisão final.

Entender que um despacho de indeferimento do recurso, ou uma decisão sobre uma reclamação desse despacho para o Presidente do Tribunal Supremo, põe termo ao processo, configura uma interpretação demasiado extensiva do dispositivo e permitiria uma série de recursos extraordinários de inconstitucionalidade que, considerando o efeito suspensivo, acabariam por suspender o normal andamento do processo com todas as consequências legais daí decorrentes, mormente a maior morosidade da já demorada justiça e o descrédito total do sistema, acentuando ainda mais a denominada justiça para ricos e para pobres.

Acresce o facto de todas essas inconstitucionalidades poderem ser conhecidas em sede de decisão do julgamento em 1.ª instância e, a concluir-se pela procedência das mesmas, o Tribunal pode e deve anular todo o processado a partir do momento em que se verificaram violações dos princípios constitucionais. Se ainda assim os Juízes da 1.ª instância entenderem que não há qualquer inconstitucionalidade, pode-se recorrer à Câmara Criminal e, posteriormente, ao Tribunal Constitucional. É nisto que consiste o sistema difuso de conhecimento das inconstitucionalidades consagrado no nosso sistema jurídico.

Não se pode, por isso, acompanhar o entendimento de que estes despachos são passíveis de recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

Porém, ainda que assim se não entenda, in casu, uma análise atenta de toda a tramitação processual, permite-nos ver que, primeiramente, existe um despacho do Juiz Relator e Presidente da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo a corroborar do despacho do Juiz de Turno que indeferiu o recurso ordinário e, ao invés de o aqui Recorrente, reclamar para o Presidente daquele Tribunal, nos termos dos artigos 688.º e 689.º do Código de Processo Civil, do indeferimento desse recurso ordinário, interpõe recurso extraordinário de inconstitucionalidade que não foi admitido por falta de sustentação legal.

Assim, não há dúvidas que, não tendo o aqui Recorrente impugnado via reclamação do despacho de indeferimento do recurso para a entidade competente, não está esgotada a cadeia recursória, sendo que, o próprio Presidente do Tribunal Supremo, no seu despacho constante a folhas 139, diz que a competência para conhecer da reclamação por rejeição do recurso não é do Juiz que elaborou o despacho mas do Presidente do Tribunal Supremo, dando expressamente a entender ao Reclamante que o Presidente da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo não tinha competência e que, se ele o quisesse fazer deveria dirigir o requerimento a ele Presidente do Tribunal Supremo.

Porém, não constando nada nos autos sobre se essa reclamação terá sido dirigida à entidade competente, há ainda essa possibilidade desde que, naturalmente, em prazo.

Assim, de acordo com o estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, este Tribunal Constitucional é manifestamente incompetente em razão da hierarquia para conhecer do objecto do recurso nesta fase do processo, por não estar esgotada a cadeia recursória.

Aliás, como se referiu, de acordo com o sistema difuso em matéria de conhecimento de inconstitucionalidades, podem os juízes da 1.ª instância ou do Tribunal Supremo decidir, em julgamento ou em recurso, sobre as inconstitucionalidades que venham a ser alegadas, anulando-se, se for caso disso, todo o processado posterior às referidas inconstitucionalidades.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional, em:

Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.ºda Lei n.o 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 7 de Dezembro de 2021.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto 

Dra. Maria da Conceição Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima d´ A.B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor (Relator) 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata