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ACÓRDÃO N.º 712/2021

PROCESSO N.º 867-A/2021

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, os Juízes, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Banco Caixa Geral Angola, melhor identificado nos autos, vem impetrar recurso extraordinário de inconstitucionalidade contra o Acórdão do Tribunal Supremo que julgou improcedente o pedido de impugnação da decisão prolactada pela 2.ª Secção da Sala de Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, no âmbito da Acção de Recurso em Matéria Disciplinar, intentada por Nlando Agnelo Cleto Augusto.

No Acórdão ora posto em crise, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo decidiu manter o aresto da primeira instância, que decretou a nulidade da medida de despedimento aplicada pelo aqui Recorrente contra Nlando Augusto e condenou o Banco Caixa Geral Angola (BCGA) a reintegrar este último e a pagar-lhe os salários e os complementos não auferidos desde o despedimento até à reintegração.

Para tanto, o Tribunal ad quem entendeu terem sido cerceadas as garantias de defesa do trabalhador arguido por este ter sido ouvido em entrevista dois dias após o recebimento da convocatória, de harmonia com o disposto na alínea b), do n.º 2, do artigo 50.º da Lei n.º 2/00, de 11 de Fevereiro, Lei Geral do Trabalho (LGT), aplicável à data dos factos, disposição retomada pela lei laboral actualmente em vigência, Lei n.º 7/15, na alínea b), do n.º 2 do artigo 48.º.

No seu Aresto, o referido Tribunal considera que a norma supra mencionada (alínea b), do n.º 2, do artigo 50.º da Lei n.º 2/00) limita-se a fixar o limite máximo para a realização da entrevista (10 dias) e não determina um período mínimo a partir do qual o trabalhador arguido deva ser ouvido, o que faz com que haja arbitrariedades na audição do trabalhador e uma redução considerável da sua garantia de defesa.

Nesta perspectiva, aquela Câmara entende que da interpretação literal da norma ora em causa resulta que o trabalhador pode ser convocado num determinado dia e ser ouvido já no dia imediatamente a seguir e posiciona-se no sentido de que, depois de convocado para a entrevista, a mesma deve respeitar um período de, no mínimo, cinco dias, a partir do qual o trabalhador deva ser ouvido em entrevista, aplicando-se, para o efeito, o artigo 153.º do CPC (Acórdãos do Tribunal Supremo, proferidos nos processos nºs1461/09, 298/15 e 511/2017).

Em sede do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Recorrente vem alegar o que, em resumo, se enuncia:

  1. O Acórdão recorrido, ao não atender ao plasmado na alínea b) do n.º 2 do artigo 50.º da Lei n.º 2/00, violou o princípio da legalidade, previsto no n.º 2 do artigo 6.º da Constituição da República de Angola (CRA) que, no essencial, impõe ao Estado e aos seus órgãos em buscar a legitimidade das suas funções na Constituição e na Lei. 
  1. O Aresto da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, ao afastar a aplicação da norma supra mencionada, violou o princípio da separação de poderes, por violar regras de competência específica da Assembleia Nacional, o órgão por excelência para legislar na República de Angola, nos termos do artigo 161.º da CRA, sendo que aos tribunais cabe aplicar a lei e não criá-la. 
  1. A Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo violou também o princípio constitucional da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 23.º da CRA, que literalmente dispõe que “Todos são iguais perante a Lei”, uma vez que tratou de forma desigual o Recorrente, favorecendo o trabalhador, por acreditar ser este a parte mais desfavorecida da relação laboral. 
  1. Em consequência directa da violação do princípio acima exposto, foi violado o princípio da imparcialidade que dita que “ Os tribunais são imparciais, estando sujeitos à Constituição e à Lei, tipificado no artigo 175.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 179.º, ambos da CRA.

Ante o exposto, termina pedindo que o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade material do Acórdão objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

 II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei nº 3/08, Lei do Processo Constitucional (LPC) competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, garantias e liberdades, previstos na Constituição, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis, faculdade igualmente estabelecida na alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, LOTC.

A decisão proferida pelo Tribunal Supremo esgota, deste modo, a cadeia recursória em sede de jurisdição comum.

III. LEGITIMIDADE

A legitimidade processual decorre do interesse directo em demandar e ou contradizer, tal como estatui o n.º 1 do artigo 26.º do Código do Processo Civil, (CPC), aplicado subsidiariamente aos processos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 2.º da LPC.

A alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, estabelece que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Ministério Público e as pessoas, que de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

O Recorrente é parte vencida no processo cujo Acórdão é objecto da presente sindicância. Tem, como tal, legitimidade processual activa para recorrer.

IV. OBJECTO

Constitui objecto deste recurso verificar a alegada inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, por violação de princípios plasmados na Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIANDO

Como acima se relata, o Recorrente alicerça o pedido de inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo alegando que viola os princípios da legalidade, da separação de poderes, da igualdade e da imparcialidade do julgador, todos eles princípios estruturantes do Estado democrático de direito e constitutivos do ordenamento jurídico-constitucional vigente, já que plasmados na Constituição da República de Angola (CRA).

Assim, quid uris?

Do princípio da legalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, resulta, tal como aludido pelo Recorrente, a obrigatoriedade de conformidade legal dos actos emanados pelos poderes públicos. Tal pressupõe, pois, que a actuação de todos os órgãos estaduais se subordine à Constituição e se funde na legalidade”, o que, aliás, constitui não apenas matriz dominante do Estado democrático de direito, mas também corolário de segurança jurídica e de garantia de protecção dos direitos fundamentais.

No que à actividade jurisdicional diz respeito, este princípio encontra-se reflectido nos artigos 175.º e 179.º, n.º 1 da CRA, o que igualmente traduz o imperativo de vinculação desta actividade à lei, incluindo a Lex Mater, configurando pressuposto necessário à boa administração da justiça.

Porém, e ainda que o sentido jurídico do princípio da legalidade se concretize, em termos gerais, na sujeição dos órgãos do Estado ao império da lei, enquanto expressão de uma actividade primária e democraticamente legitimada dos poderes constituídos, nas palavras de Carlos Blanco de Morais, (Curso de Direito Constitucional, Teoria da Constituição em Tempo de Crise do Estado Social, Tomo II, Volume II, Coimbra Editora, pág. 499), a sua abrangência não se resume ao presente enunciado.

O princípio da legalidade, na perspectiva do Estado democrático de direito, há muito ultrapassou, como sabido, os marcos do mero positivismo jurídico legalista, na medida em que deve ser compreendido como abrangendo não apenas a lei em sentido formal, mas também os princípios e valores vigentes expressa ou implicitamente num dado ordenamento jurídico, como um todo sistémico.

Incorpora, consequentemente, quer a ideia de juridicidade, que abrange todos os princípios constitucionais, quer a de realização do direito que, por seu lado, também não se reduz a simples aplicação da lei. Pressupõe, antes, em face do caso concreto, uma solução jurídica normativo-juridicamente fundada e justificada, que conduza a uma decisão judicativamente justa, isto é, aquela que cumpre em concreto e em termos fundamentantemente concludentes a validade material intencionada que lhe constitui o seu sentido, como se retira de A. Castanheira Neves (Digesta, Escritos acerca do Direito do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e outros, Volume 2, Coimbra Editora, págs. 249 e 255).

À luz da presente compreensão, o princípio da legalidade é tido como sinónimo de juridicidade, o que determina que o processo de aplicação da lei em sentido formal, da norma jurídica e a sua consequente interpretação seja, além da lei, alicerçado no sistema de princípios e regras que emanam da Constituição e do ordenamento jurídico no seu todo considerado.

O processo de interpretação da norma jurídica, subjacente à decisão judicial, deverá, assim, ser orientado, em face da supremacia da Constituição e do princípio da constitucionalidade (artigos 6.º, nº 2 e 226.º da CRA), a partir do texto constitucional e já não da lei ordinária, cujos parâmetros de aferição da sua validade deverão estar em conformidade com a Lei Maior. 

Esta orientação materializa, por outro lado, a ideia de compreensão do direito a partir das regras e dos princípios constitucionais e a consequente admissibilidade de normas principiológicas, que permitem ao julgador, ante o caso concreto, encontrar a solução que melhor configure a tutela jurisdicional materialmente adequada e justa aos interesses em conflito.  

No caso sub iudice, o Recorrente entende que a decisão ora impugnada viola o princípio da legalidade pelo facto de o Tribunal recorrido ter afastado a aplicação da norma vertida na alínea b) do n.º 2 do artigo 50.º da LGT, então em vigência, nos termos da qual “ (…) Quando o empregador considere dever aplicar uma medida disciplinar, deve convocar o trabalhador para uma entrevista, incluindo na convocatória: (…) b) o dia, hora e local da entrevista, que deve ter lugar antes de decorridos 10 dias úteis sobre a data de entrega da carta.”

Como resulta do acima ilustrado, o processo conducente à formação da decisão judicial assenta na premissa de ser esta uma actividade sujeita ao primado da lei, tanto por força do estabelecido no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, como do disposto nos artigos 175.º e 179.º, n.º 1, ambos da Constituição da República de Angola, como já antes enunciado. Assenta, igualmente, na presunção de que a norma ou as normas jurídicas a que se subsumem os factos submetidos a juízo estão em conformidade com a Constituição, num quadro de constitucionalização do direito, em face da supremacia hierárquica da Lex Mater.

Porém, e na senda do que vem sendo expendido, impõe-se, acentuar que a actividade do julgador no processo aqui em causa (formação da decisão judicial) não se resume a uma mera subsunção dos factos à norma jurídica, extraindo desta as consequências jurídicas nela contida, por virtude da simples enunciação legal.

Na busca da justiça material, da decisão justa, incidente sobre o caso concreto, o julgador dispõe, deste modo, da faculdade de, no âmbito do seu juízo de ponderação, afastar a regra geral da legalidade, que sustenta a aplicação estrita da lei, e alicerçar os fundamentos da sua decisão em outros princípios da ordem constitucional, incluindo os atinentes à interpretação conforme à Constituição. Pode, ainda, ter por fundamento a jurisprudência (direito jurisprudencial) e também a própria dogmática jurídica, enquanto critério orientador para a solução do caso concreto.

Na presente acção, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo entendeu ter sido violada a garantia de defesa do trabalhador contra quem foi decretada a medida de despedimento pelo ora Recorrente, consubstanciada na violação do direito ao contraditório, por virtude de, nos termos da alínea b), do n.º 2, do artigo 50.º da Lei n.º 2/00, vigente à data dos factos, o trabalhador ter ser sido ouvido dois dias após à convocação para a entrevista (ver págs. 51 a 62 do processo disciplinar, apenso aos presentes autos).

Este dispositivo legal, como já referido, não estabelece um período mínimo a partir do qual o trabalhador arguido deva ser ouvido, sendo que a jurisprudência do Tribunal ad quem tem considerado que esta norma legal, tal como articulada, ou seja, fixando apenas o limite do prazo máximo para a entrevista, restringe as garantias de defesa do trabalhador, configurando, por isso, violação grosseira do princípio do contraditório.

Como facilmente se constata, o Tribunal recorrido coloca em confronto o estipulado no artigo supra mencionado com o princípio do contraditório, que constitui uma das dimensões do julgamento justo e conforme (artigo 72º da CRA) e elemento essencial nos processos de natureza sancionatória, como o processo disciplinar que, tal como refere o Acórdão posto em crise, deve reunir as características de um processo equitativo, isto é, um processo orientado para a defesa de valores e direitos fundamentais.

É, assim, de realçar que o conceito de processo equitativo está, como sabido, associado à noção estrutural de Estado democrático de direito e configura uma das dimensões do rule of law. É, na verdade, um conceito que se concretiza de diferentes maneiras e que em sede processual pressupõe, grosso modo, que o processo seja conformado de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva, tal como se retira da doutrina e da jurisprudência.

Com vista a cimentar um tal desiderato e tendo em consideração as exigências subjacentes ao processo equitativo, imperioso se torna que, entre outros, as partes possam participar activamente no processo e carrear para o mesmo todos os elementos, probatórios e de outra natureza, considerados relevantes e imprescindíveis para sua apreciação e correspondente decisão.

Nesta lógica, o processo disciplinar, que materializa a forma através do qual a entidade empregadora, por meio de um conjunto de actos procedimentais, exerce o poder disciplinar e que legitima a aplicação da sanção disciplinar, se for caso disso, deve não apenas estar sujeito ao princípio da legalidade, mas também aos demais princípios que dão corpo ao processo equitativo, cuja previsão consta do n.º 4 do artigo 29.º da CRA e também do artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

Deste modo, o exercício do direito ao contraditório, que ocorre no momento da entrevista, e as suas correspondentes formalidades, afiguram-se como pressupostos determinantes para que o trabalhador arguido possa intervir de forma adequada no processo disciplinar e influenciar a decisão, através dos meios e diligências probatórias conducentes ao esclarecimento dos factos e da verdade material.

Como expendido no Acórdão n.º 585/2019 deste Tribunal Constitucional, a entrevista é o apanágio do princípio geral do direito de defesa do trabalhador, que concretiza o momento processual, no âmbito do procedimento disciplinar, para o trabalhador impugnar, contestar, pleitear e contradizer a acusação, oferecendo provas, juntado documentos, arrolando testemunhas, praticando diligências e actos, bem como aferir nulidades susceptíveis de violação do princípio da legalidade.

Sequencialmente extrai-se ainda do Aresto retro identificado, que adere à jurisprudência firmada pelo Tribunal Supremo, que embora a lei permita à entidade empregadora fixar o prazo para a entrevista, este deve ser estabelecido de modo a não enfraquecer as reais garantias de defesa do trabalhador, o que não se verifica quando em causa estiver um prazo inferior a cinco dias, como na situação do processo ora em sindicância. Este mesmo raciocínio é retomado no Acórdão n.º 606/2020 desta Corte Constitucional. 

Nesta medida, este Tribunal Constitucional considera, na senda da sua jurisprudência, que a não aplicação da alínea b), do n.º 2, do artigo 50º da então vigente LGT, não configura violação ao princípio da legalidade.

Resulta, antes de uma interpretação da norma jurídica, em face do caso concreto, que tem em vista a força normativa da Constituição e a unidade do sistema jurídico e uma compreensão hodierna do direito assente quer na normatividade dos princípios gerais do direito, quer na hegemonia normativa e axiológica dos princípios expressa ou implicitamente consagrados na Constituição, como também já acentuado.

Além do mais e na mesma linha de reflexão patente nos Acórdão n.º 585/2019 e Acórdão n.º 606/2020, a alegada violação do princípio da legalidade, por virtude do afastamento da norma constante da alínea b), do nº 2, do artigo 50º da LGT aplicável à data dos factos, ficará igualmente diluída face ao disposto no n.º 1 do artigo 59.º do Decreto Executivo Conjunto n.º 3/82, de 11 de Janeiro – Regulamento da Lei de Justiça Laboral, porquanto conferirá amparo à decisão tomada pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo. Ou seja, a decisão que fixa em cinco dias o prazo mínimo para a entrevista, após a convocatória, recorrendo, para tanto, à norma do artigo 153 º do CPC, que estabelece a regra geral sobre o prazo processual.

O n.º 1 do artigo 59.º do Regulamento da Lei de Justiça Laboral, dispõe, assim, que os órgãos de justiça laboral poderão recorrer a qualquer norma ou princípio processual do ordenamento jurídico angolano que se adapte a especial natureza do processo, acrescendo o seu n.º 2 que, na sua falta, os órgãos de justiça laboral procederão pela forma que melhor assegure o conhecimento da verdade objectiva e a realização da justiça nas relações de trabalho. 

Ora, ante a solução encontrada para dirimir o conflito de interesses patenteado no presente processo, não se vislumbra em que medida o aresto aqui em sindicância configura violação ao princípio da separação de poderes por, na perspectiva do Recorrente, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo ter criado uma norma para aplicar ao caso submetido à sua apreciação, usurpando competências do órgão legislativo por excelência.

Como se deixou reflectido, hodiernamente o processo de formação da decisão judicial não decorre unicamente da mera subsunção dos factos submetidos a juízo à norma jurídica, à luz do paradigma do silogismo jurídico que tem na norma a premissa maior, nos factos a premissa menor e na sentença a conclusão.

Na esteira do que ensina A. Castanheira Neves, já antes citado, a interpretação da norma jurídica, assente numa lógica formal dedutiva, não permite levar em linha de conta a realização do direito na sua concreta problematicidade e intencionalidade normativa, que possibilite, em face de uma dada situação juridicamente relevante, dar lugar à prolação de uma decisão materialmente justa e adequada.

Como também já enfatizado, no processo de interpretação da norma jurídica impõe-se, consequentemente, que tendo em conta a constitucionalização de todo o direito, sejam convocados os princípios que emanam do ordenamento constitucional, numa lógica em que a referida regra jurídica confira concretização a um determinado principio constitucional, que passa a valer como norma vinculante.

No caso vertente, estava em causa concretizar o princípio do contraditório, tendo em vista uma solução jurídica que mais se adequasse aos ditames constitucionais e que, consequentemente, reflectisse a melhor protecção para os interesses conflituantes.

Assim, em resultado da interpretação da alínea b), do n.º 2, do artigo 50.º da LGT, que patenteia uma situação omissa com relação à fixação do prazo mínimo para a realização da entrevista, o julgador mais não fez do que preencher tal omissão à luz dos parâmetros determinados pelo ordenamento jurídico.

Deste modo, a solução encontrada, embora possa servir de precedente jurisprudencial para situações idênticas, só se afigura juridicamente válida para o caso em concreto e, nesta perspectiva, não se processa qualquer alteração à norma plasmada na alínea b), do n.º 2, do artigo 50.º da LGT. Não verifica, por isso, a criação de norma nova, abstractamente válida erga omnes.

Por conseguinte, não se concretiza neste exercício de hermenêutica e de realização do direito qualquer violação, por alegada ingerência na esfera de competências do órgão representativo do poder legislativo, ao princípio da separação de poderes, também este um princípio estruturante do Estado democrático de direito e que encontra consagração no n.º 1 do artigo 2.º da CRA.

Por outro e na perspectiva do que é alegado, o Aresto aqui sindicado viola também o princípio constitucional da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 23º da CRA, por evidenciar que o Recorrente recebeu um tratamento desigual, um tratamento diferente do atribuído à contra parte, o trabalhador, tendo este último sido favorecido, pois considerado parte mais fraca na relação laboral.

Na verdade, um dos princípios orientadores desta relação e da dogmática jus laboral é o princípio favor laboratoris ou do tratamento mais favorável ao trabalhador, bastas vezes usado como recurso interpretativo para salvaguarda da tutela do trabalhador, mas que igualmente apela a soluções de substancialidade na aplicação das normas jurídicas que fazem sentido para todas as áreas do Direito. 

Como se retira da doutrina, a utilização do favor laboratoris, na interpretação e aplicação do Direito do Trabalho, pressupõe duas operações prévias, destinadas a balizar a intervenção do próprio princípio: a determinação do sentido das normas laborais, necessária para avaliar se e até que ponto podem ser afastadas por fonte de valor inferior ou pelo contrato de trabalho; e uma operação de comparação entre fontes, que tem como objectivo determinar a mais favorável para efeitos de resolução de problemas de conflito entre elas com apelo ao favor laboratoris. (Tratado de Direito do Trabalho Parte I – Dogmática Geral, de Maria do Rosário Palma Ramalho, Almedina, 3ª Edição, pág.277).

Ora, o litígio subjacente aos presentes autos situa-se no plano do exercício do poder disciplinar, domínio em que, em função de relação de subordinação, o empregador detém o poder de sancionar o trabalhador, o que, como tal, pode patentear um verdadeiro desequilíbrio entre as partes.

A ratio decidendi do Tribunal ad quem teve em linha de conta o facto de o processo disciplinar, tal como configurado na legislação laboral, não ser um processo justo, entendimento que, in casu, se reflecte na alínea b), do n.º 2, do artigo 50.º da então vigente LGT que, ao não fixar o prazo mínimo para a entrevista, dá lugar ao enfraquecimento das garantias de defesa do trabalhador e configura violação ao princípio do contraditório.

Aliás, o processo justo, o processo equitativo, visa acima de tudo defender de modo equilibrado os interesses das partes, devendo, por isso, o equilíbrio devido ser encontrado, ainda que com recurso ao favor laboratoris.

 Esta racionalidade que, embora penda para a protecção do trabalhador, não coloca, porém, em causa o princípio constitucional da igualdade, materializado na igualdade perante a lei, que pressupõe que esta, enquanto instrumento geral e abstracto, seja aplicada a todos nos mesmos termos e sem qualquer diferenciação.

A decisão prolactada pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, tal como já elucidado, encontra fundamento numa argumentação que deve ser lida tendo em consideração a força vinculativa dos princípios constitucionais e a unidade da ordem jurídica.

Consequentemente, o Acórdão objecto de impugnação não potencia qualquer violação ao princípio da igualdade, que igualmente incorpora dimensão que se reflecte na desigualdade de tratamento. A desigualdade será, assim, sempre de exigir quando o recurso a um tratamento igual conduzir a situações materialmente desiguais, cabendo apenas ao julgador, ao juiz, no caso, justificar as razões fundantes para a opção por um tratamento normativo desigual.

O aresto aqui em causa também não potencia, por consequência, qualquer violação ao princípio da imparcialidade reflectido no artigo 175.º, conjugado com o n.º 1 do artigo 179.º, ambos da CRA, como alegado pelo Recorrente que, para justificar o seu argumento, estabelece uma relação de causa e efeito entre a imparcialidade e o princípio da igualdade.

Ora, pelo expendido, não resulta que o Tribunal ad quem tenha extravasado os limites da sua independência funcional, afastando-se, no julgamento a que procedeu, dos marcos que o vinculam à Constituição, à lei e às fontes de direito jurídico constitucionalmente reconhecidas e que teve como intuito último conferir protecção ao direito ao trabalho, emergente da relação laboral, e que está consagrado no artigo 76.º da Constituição da República de Angola.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 7 de Dezembro de 2021.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata