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ACÓRDÃO N.º 714/2021

PROCESSO N.º 895-A/2021

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, Acordam, os Juízes, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 I. RELATÓRIO 

Bartolomeu Paulo da Costa, solteiro, com melhores elementos de identificação nos autos, inconformado com o acórdão do Tribunal Supremo, prolactado na 1.ª Secção da Câmara Criminal, sobre o Processo n.º 3584/20, vem dele interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, juntando, para tanto, em resumo, as seguintes alegações:

  1. O acórdão recorrido é inconstitucional, pois, viola o conteúdo normativo vertido no n.º1 do artigo 177.º e o artigo 72.º, ambos da CRA.
  2. A referida violação deve-se ao facto de o acórdão ter confirmado a pena de 12 anos de prisão, e dois milhões de kwanzas, a título de indemnização à família da vítima, imposta ao réu, aqui recorrente, pelo crime de homicídio p.p pelo artigo 349.º do Código Penal (vigente à data dos factos), olvidando um instrumento probatório, denominado exame de autópsia. 
  1. Partindo da premissa de que a morte de Fernando Tchombossi esteja ligado a um presumível acto delituoso, era imprescindível que se realizasse exame médico-forense ou autópsia, para se determinar a causa e o modo da morte, avaliar qualquer doença ou ferimento que possa estar presente no cadáver. 
  1. […] O Relatório passado pelo Hospital Provincial do Namibe, de fls. 176 versos e igual sorte fls. 32 dos autos, que aponta o traumatismo crânio-encefálico, contusão cerebral grave, resultantes de ofensas físicas, não descreve detalhadamente o itinerário médico-legal que demonstra como chegou aqueles resultados… 
  1. Razão pela qual, o Tribunal extrapolou os conteúdos normativos dos artigos 191.º do CPP, revogado; alíneas a) e g) do n.º 2 do artigo 4.º e artigo 140.º do actual CPP, e por consequência, violou as normas constitucionais vertidas nos artigos 72.º e 177.º da CRA. 
  1. O Tribunal Supremo violou ainda os princípios do acusatório e do contraditório, ao dar como provado o instrumento usado para o cometimento do crime a pedra apreendida nos autos a fls. 4, sem, no entanto, ter procedido à perícia que permitisse certificar a existência ou inexistência de impressões digitais do réu na pedra… não compreendendo como o tribunal supremo tem ciência de que foi o réu quem arremessou a pedra. 
  1. Violou o princípio do contraditório, na medida em que considerou provado o seguinte “a fls. 28 um cidadão que pediu anonimato, afirmando que o réu desferiu com uma pedra a vítima, enquanto seu comparsa o agredia com socos e pontapés em diversas regiões do corpo”. 
  1. […] O cidadão que se diz anónimo é o “declarante” Gerson Nahor Dolbeth que, requerido pela defesa para que prestasse depoimentos, não comparecendo a audiência em que deveria estar, foi proferido despacho a fls. 122 versos que orientava a primeira declarante nos autos que notificasse aquele… por sinal seu namorado, com vista prestar declarações, deixando margens para que os desenhassem as suas declarações em prejuízo do réu. 
  1. Com isto, o Tribunal Supremo fez tábua rasa a um conjunto de factos que careciam de provas pleníssimas e valorou aquelas consideradas fusas e confusas, golpeando clamorosamente o preceituado no n.º 2 do artigo 174.º da CRA. 
  1. O Tribunal Supremo violou o n.º 4 do artigo 29.º da CRA ao dar como provado as declarações de Ana Victória Vayongola de fls. 112 e 176 que resume “ diz que reconheceu o réu que à data dos factos trajava uma camisola vermelha e um capucho da mesma cor” contrariando as declarações do namorado…a fls. 128 que afirmou que à data dos factos, os dois usavam t-shirts vermelhas ou cor-de-rosa e preta respectivamente… 
  1. Apesar das contradições, o Tribunal não se dignou em crivar tais declarações com vista a tomar uma decisão justa e equitativa, inquinando o seu verdadeiro papel, solidarizando-se com a causa… 
  1. O acórdão violou o dever de fundamentação, artigo 6.º n.º2 da CRA, pois, no decurso de toda matéria factual, dada como provada, assim a própria decisão, grosso modo, está desprovida de fundamentação técnica-jurídica, exigida a uma corte Suprema. 
  1. O Tribunal decidiu com base na sua convicção, criada aos holofotes de toda realidade factual carreada nos autos referenciados. 
  1. Desta feita, não tendo havido uma verdadeira fundamentação ou motivação, a decisão é nula por afrontar e confrontar o princípio constitucional estabelecido no artigo 6.º da CRA. 
  1. Termina as alegações, requerendo ao Tribunal Constitucional a invalidação do acórdão do Tribunal Supremo, por inconstitucionalidade.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

O Recorrente interpôs recurso de apelação que foi indeferido no acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, sob o Processo n.º 3584/20, pelo que, tem legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO 

O presente recurso tem por objecto apreciar a conformidade constitucional do acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 3584/20.

V. APRECIANDO

Tendo em atenção a síntese das alegações do Recorrente, delimita-se como o quid central a apreciar, no presente recurso, as pretensas inconstitucionalidades seguintes: se a não realização de autópsia ou exame médico-legal sobre o cadáver (vítima nas circunstâncias do presentes autos), preenche os requisitos da violação dos dispostos nos artigos 72.º e 177.º da CRA, isto é, os princípios do julgamento justo e conforme e o princípio da legalidade das decisões judiciais; se a não realização de exame pericial sobre a pedra, dada como meio usado para prática do crime, configura violação dos princípios do acusatório e do contraditório, n.º 2 do artigo 174.º da CRA; se há elementos que sustentam a inconstitucionalidade do aresto recorrido, por violação do princípio do processo equitativo, n.º 4 do artigo 29.º da CRA; por último, se o acórdão padece de inconstitucionalidade, por omissão do dever de fundamentação.

  1. Sobre a violação do direito ao julgamento justo e conforme e do princípio da legalidade das decisões judiciais

 Sustentou o Recorrente que “o acórdão ora impugnado padece de inconstitucionalidades, porquanto, tratando-se de uma morte associada a um presumível acto delituoso, era imprescindível que se realizasse autópsia ou exame médico-legal, para se determinar a causa da morte e para despistar a existência de eventuais doenças que possam ter concorrido para a morte do desditoso.

Com esta omissão, violou além dos mencionados dispositivos constitucionais, o artigo 191.º do Código de Processo Penal (CPP), então em vigor”.

É curial precisar que o Recorrente convoca o pronunciamento deste Tribunal sobre matérias probatórias, cujo âmbito de apreciação, carece de uma devida delimitação, dada a restrição da competência desta instância consignada no artigo 49.º da LPC.

Nos termos deste artigo, ao Tribunal Constitucional apenas compete apreciar: as decisões dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola.

A questão a clarificar é se o Tribunal Constitucional pode debruçar-se sobre o facto de não se ter realizado uma diligência de prova exigida por lei? Ou se, ao invés, a vedação de pronunciamento sobre a instrução é absoluta?

Na verdade, nada obsta a que o Tribunal Constitucional possa pronunciar-se sobre omissões de diligências probatórias ocorridas quando a sua realização decorra de um dever de lei.

Com efeito, a sua inobservância resvala num error in procedendo, omissão que concorre, inelutavelmente, para violação do princípio da legalidade, do julgamento justo, do processo equitativo, matéria constitucionalmente sindicável no recurso extraordinário de inconstitucionalidade, admitir o contrário seria restringir o âmbito da sua competência e promover retrocesso nas garantias constitucionais dos cidadãos.

Não obstante, o Tribunal Constitucional ter aquela actuação residual, não deve efectuar valorações dos meios de prova, dado que, esta constitui matéria inscrita na competência exclusiva dos tribunais de jurisdição comum.

 No caso vertente, o Recorrente alega que o acórdão recorrido olvidou-se da autópsia sobre o cadáver da vítima dos autos.

Compulsados os autos, constata-se que, de facto, não foi realizada autópsia sobre o cadáver e que o conhecimento da causa da morte foi dado num relatório, lavrado por um médico geral e não por um médico legista.

Na prática forense, a autópsia e/ou exame de cadáveres que tenham sucumbido por actos de violência, são, por regra, realizados por peritos médico-legista, por se tratar de actos de perícia, embora o Código de Processo Penal, então em vigor, não o referisse expresis verbis.

Este entendimento é reforçado por Gregori Chavlosvski que frisa “a sociedade necessita de intervenção médico-legal nos seguintes casos de morte: 1) morte violenta, que pode incluir acidente, homicídio e suicídio; morte suspeita, para fins de exclusão de homicídio […]” In Medicina Legal, pág. 85, 3.ª edição, 2019.

Portanto, o relatório de fls. 176 versos dos autos não constitui um exame médico-legal, com isto omitiu-se uma diligência legalmente exigida, no artigo 191.º do CPP.

Contudo, isto de per si não inquina de inconstitucionalidade o acórdão por violação dos princípios em equação, como pretende o Recorrente, conquanto, decorre do mesmo Código de Processo Penal, então em vigor, que a omissão em pauta podia ser suprida por outro meio de prova, ao abrigo do disposto no artigo 198.º.

Assim, a falta do exame médico-legal ocorrida apenas determinaria a inconstitucionalidade do acórdão recorrido, por falta de prova, caso aquele relatório carreado ao processo fosse o único meio de prova e com base no qual se condenasse o Recorrente, o que não sucedeu no caso em análise, visto que, foram produzidas outras provas, como a testemunhal, por exemplo.

 Em face disto, este Tribunal rejeita a inconstitucionalidade do acórdão fundada na violação dos sobreditos princípios.

  1. Sobre a violação dos princípios do acusatório e do contraditório

Aditou o Recorrente que o acórdão recorrido é ainda inconstitucional, porque violou o princípio do acusatório, ao dar como provado que o instrumento usado para o cometimento do crime foi a pedra apreendida nos autos de fls. 4, sem, no entanto, ter procedido à perícia que permitisse certificar da existência ou inexistência de impressões digitais do réu na pedra […], não compreendendo como o Tribunal Supremo tem ciência de que foi o réu quem arremessou a pedra.

O princípio do acusatório consignado no n.º 2 do artigo 174.º da CRA é para Grandão Ramos “ o princípio segundo o qual se atribui a função de julgar a uma entidade diferente daquela a quem está conferida a função de acusar”. In Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Pág. 66, Escolar Editora, 2013.

Com efeito, os factos narrados não qualificam hipóteses de violação do princípio constitucional do acusatório. Porém, tratando-se de uma matéria de direito, este tribunal conhece ex officio e o subsume à hipótese de violação do princípio da legalidade, suportado pelo princípio da verdade material.

Nos autos, consta um relatório de exame directo e visual feito ao objecto, assumido como usado para perpetrar o homicídio pelo arguido, o qual se circunscreveu a descrever as características físicas e a captar as suas imagens.

No entanto, o Recorrente vem pôr em crise a consistência forense deste objecto, visto que não se buscou determinar a presença ou não de impressões digitais do arguido na pedra.

Sucede que o princípio da verdade material impõe ao tribunal a efectivação de todas as diligências instrutórias, com escopo de apurar- se a verdade dos factos que conduzam a condenação ou a absolvição do arguido, isto inclui o recurso a todos os meios tecnológicos forenses que possam auxiliar na obtenção ou alcance da verdade objectiva, material.

Sendo um princípio instrumental do direito ao julgamento justo e conforme, este Tribunal deve pronunciar-se sobre ele.

Neste contexto, tratando-se de um objecto supostamente usado para cometer o crime em causa, deveria o exame pericial ser mais rigoroso e consistente, socorrendo-se dos instrumentos criminalísticos disponíveis para afastar dúvidas, tais como: se foi mesmo aquela pedra que teria sido usada no crime e não outra. Uma vez que a mesma não apresenta nenhum vestígio de sangue, nem qualquer sinal externo visível de que se trata de um objecto usado no crime.

Para o bem da justiça penal, este Tribunal questiona como foi possível aceitar-se aquela pedra como um dos meios de prova, se nada há mais além de uma simples descrição das suas características físicas, sendo que iguais aquela existirá às dezenas. O que tem esta pedra de indício de que foi objecto da acção delituosa? A resposta objectiva é: nada.

Nesta ordem de ideias, este Tribunal julga nulo aquele meio de prova, por a sua admissão ter sido arbitrária e, portanto, vulnerante dos limites do princípio da livre admissão e apreciação da prova.

Porém, esta nulidade não inquina de inconstitucional o acórdão recorrido, porquanto, não constituiu a única, tampouco foi a prova decisiva para condenação do Recorrente, aliás ficou sanada por outros meios de prova, a coberto do artigo 198.º do CPP, então em vigor.

Pelo que o aresto não violou os princípios do acusatório, n.º2 do artigo 174.º; da legalidade, n.º 2 do artigo 6.º, nem tornou injusto o julgamento do Recorrente, artigo 72.º, todos da CRA.

Aditou ainda o Recorrente, a existência de ofensa ao princípio do contraditório na medida em que o acórdão recorrido considerou provado o seguinte “a fls. 28 e um cidadão que pediu anonimato, afirmando que o réu desferiu com uma pedra a vítima, enquanto seu comparsa o agredia com socos e pontapés em diversas regiões do corpo”.

O cidadão que se diz anónimo é o declarante Gerson Nahor Dolbeth, requerido pela defesa para que prestasse depoimentos, não compareceu a audiência em que deveria estar, foi proferido despacho a fls. 122 versos que orientava a primeira declarante nos autos, que notificasse aquele… por sinal seu namorado, com vista prestar declarações, deixando margens para que desenhasse as suas declarações em prejuízo do réu”.

Segundo Grandão Ramos, o princípio do contraditório é o princípio segundo o qual, na descoberta da verdade e na aplicação da justiça, devem ser igualmente consideradas tantos as razões da acusação como os pontos de vista da defesa.

Tem como expressão no princípio da audiência, no direito de contestação concedido ao réu, a faculdade de requerer diligências de prova e de à prova da acusação opor a prova da defesa […]. (op.cit. pg. 71)

O conteúdo do princípio do contraditório resulta, prima facie, que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal proferir decisão sobre questões que lhe afectam ou digam respeito.  

Trata-se da garantia de que dispõe o arguido para participar de forma efectiva no desenvolvimento do processo, desde os factos, as provas e as questões de direito, conexos com o objecto da causa […] Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, conceito e princípios gerais, Coimbra editora págs. 108 e 109, 2006.

No caso em análise, o Recorrente suscitou a violação deste princípio com o argumento de que o despacho de fls. 122 versos dos autos, ao orientar que uma das testemunhas notificasse a outra que não compareceu na audiência de julgamento, abriu portas a que aquela desenhasse as declarações da segunda testemunha.

Ora, o Recorrente ao levantar suspeição sobre a primeira testemunha coloca-a na posição de declarante, na verdade, assumem a qualidade de declarante os sujeitos processuais que tendo interesse no processo, sendo parente ou a fim da vítima e, ainda, quando seja participante do crime.

A testemunha Ana Victória Vayongola não foi a participante do crime, não é parente ou afim da vítima, nos autos não resulta qualquer interesse próprio, logo, foi equivocadamente qualificada como declarante nos autos e pelo Recorrente (cfr. artigo 216.º do CPP, então em vigor).

 Pelo contrário, ela interveio nos autos como testemunha, apenas colaborando com o Estado na administração da justiça penal, estando vinculada ao dever de verdade e imparcialidade nos depoimentos que prestou.

A hipótese segundo a qual a testemunha Ana Victória Vayongola influenciou ou mesmo determinou o conteúdo do depoimento de Gerson Nahor Dolberth, não passa de uma presunção e ficção processualmente infundada, pois, inexistem no processo elementos que indiciem um interesse pessoal das testemunhas em prejudicar o aqui Recorrente.

Ademais, se por ventura o Recorrente suspeitasse disso, deveria ter suscitado ou impugnado quer o despacho em causa, quer a idoneidade da testemunha nos autos, ora não há nos autos qualquer impugnação do recorrente neste sentido, excepto nas alegações para o recurso em análise.

Acresce que, não foi a testemunha Ana Vayongola quem concretizou a notificação da testemunha Gerson Dolberth, mas antes um oficial do tribunal, conforme se pode constatar na certidão de notificação a fls. 125 dos autos.

Assim, este Tribunal julga improcedente a alegada violação do princípio do contraditório pelo aresto recorrido, visto que o Recorrente teve uma intervenção activa no processo, deduziu contestação, interrogou as testemunhas, requereu diligências de prova, não havendo nos autos factos que indiciem constrangimentos ou restrição à garantia de ampla defesa e contraditório do Recorrente.

  1. Sobre a violação do processo equitativo

Argumenta ainda o Recorrente que o Tribunal Supremo violou o n.º 4 do artigo 29.º da CRA, ao dar como provadas as declarações de Ana Victória Vayongola de fls. 112 e 176 que resume “ diz que reconheceu o réu que à data dos factos trajava uma camisola vermelha e um capucho da mesma cor” contrariando as declarações do namorado…a fls.128, que afirmou que à data dos factos, os dois usavam t-shirts vermelhas ou cor-de-rosa e preta, respectivamente […].

O processo equitativo visa assegurar aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialéctica que elas protagonizam no processo. Um processo equitativo postula, por isso a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas. Um processo equitativo e leal deve assegurar a cada uma das partes o poder de expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. Jorge Miranda e Rui Medeiros In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I. 2.ª Edição, 2010.

O fundamento de que se apoia o Recorrente não evidencia, nem suporta, qualquer violação do direito ao processo equitativo, visto que não sofreu qualquer discriminação na condução do processo, tendo participado activamente no desenvolvimento do mesmo.

Ademais, infere-se com clareza que o Recorrente pretende induzir este Tribunal a pronunciar-se sobre o fundo da prova testemunhal, ou seja, pretende obter deste tribunal valorações sobre os efeitos ou valor extraídos daquele meio de prova, culminando com declaração da sua invalidade.

Tal como ficou assente supra, a competência deste tribunal está resguardada a sindicar violações aos princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais, pelas decisões proferidas na jurisdição comum, destarte, a pretensão de fundo do Recorrente está extra murus da competência desta instância.

Nesta esteira, dado que vigora no sistema jurídico-processual penal angolano o princípio da livre valoração ou apreciação da prova, não cabe a este tribunal determinar qual o sentido probatório que deveria extrair-se das declarações das testemunhas dos autos.

Sendo que o exercício da livre apreciação da prova não pode resvalar em arbítrio, condicionada pelo princípio da prossecução da verdade material, devendo ser motivada ou fundamentada, somente este último constitui objecto de fiscalização constitucional, pois só com o controlo da fundamentação é que se pode limitar o arbítrio.

No caso em análise, o tribunal ad quem apoiou-se, expressamente, em dados objectivos recolhidos na audiência de julgamento, com nuance para o depoimento da testemunha que considerou suficiente para formar a sua convicção e confirmar a decisão.

Não houve um exercício arbitrário daquela faculdade, tendo sido devidamente justificado o valor probatório que o tribunal recorrido extraiu dos depoimentos da testemunha.

  1. Sobre a violação do princípio da legalidade, por omissão de fundamentação

Em derradeira impugnação do acórdão do Tribunal ad quem, o Recorrente suscita a sua inconstitucionalidade por entender que padece de fundamentação, o que, a admitir-se, tornaria o acórdão inconstitucional por violação dos artigos 2.º; 6.º n.º 2 e, ainda, o 72.º da CRA.

O dever de fundamentação das decisões é um corolário directo de um Estado Democrático e de Direito, posto que se trata de um instrumento que permite controlar as razões de uma decisão e limitar decisões discrepantes da lei e técnico-juridicamente arbitrárias por parte dos entes públicos.

Dando cumprimento a este desiderato, o legislador consagrou expressamente este dever de fundamentação das sentenças, n.º 2 do artigo 659.º, e culminou a sua carência com nulidade, ao abrigo da alínea b) do artigo 688.º, ambos do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao Processo Penal por força do § único do artigo 1.º do CPP vigente à data da prolação do acórdão e expressamente no n.º 1 do artigo 417.º do CPP, em vigor.

Entende o Recorrente que “ o acórdão violou o dever de fundamentação, artigo 6.º n.º 2 da CRA, pois, no decurso de toda matéria factual, dada como provada, assim como a própria decisão, grosso modo, está desprovida de fundamentação técnica-jurídica, exigida a uma corte Suprema”.

Será assim? Vejamos

O tribunal ad quem confirmou a decisão do tribunal a quo que condenou o aqui Recorrente expondo, em destaque, o seguinte (sic):

a prova carreada nos autos é inequivocamente bastante para formação do juízo de certeza de ter sido o réu o autor do crime de que vem acusado pela coerência das declarações da declarante Ana Victória Luís Vayongola, que descreveu pormenorizadamente os factos, quer na fase de instrução preparatória, como no julgamento, sendo que estava próxima do local onde ocorreu a acção do réu e foi por ela reconhecido.

De igual modo testificou a fls. 28 um cidadão que pediu anonimato, afirmando que o réu desferiu com uma pedra à vítima enquanto seu comparsa o agredia com socos e pontapés em diversas regiões do corpo.

Consta dos autos a fls. 5 o auto de exame directo segundo o qual a vítima sofreu contusão cerebral e esteve em coma profundo.

De igual sorte a fls.32 dos autos consta o competente relatório médico passado pelo hospital…. Que reza que a vítima sofreu agressão física, com traumatismo crânio-encefálico e contusão cerebral grave em estado de coma profundo com prognóstico muito elevado, apresentando ferida na cabeça.

O instrumento usado (pedra) para cometimento da acção foi apreendido, vide fls. 4 dos autos.

Assim sendo o réu agiu com animus necandi posto que, a zona atingida por ele… sendo uma parte sensível e vital do corpo humano, a experiência da vida comum nos ensina que quando alguém nela é atingida por uma forte pancada dificilmente sobrevive.

[]

O réu tinha plena consciência da proibição legal da sua conduta, mas não se coibiu de a praticar.

Com este comportamento cometeu o crime de homicídio voluntário simples, p.p. artigo 349.º do Código Penal.

 Foi com base nesta ordem de exposição que o acórdão recorrido confirmou a pena de prisão aplicada pelo tribunal a quo e apenas alterou a decisão quanto ao montante de indemnização.

A procedência da nulidade do acórdão por omissão de fundamento só teria lugar caso houvesse ausência total de fundamentação. No caso em apreço, o acórdão exarou a decisão devidamente suportada pelos fundamentos, com observância do itinerário técnico-jurídico processual.

O facto de o recorrente discordar dos argumentos esgrimidos no acórdão, isto é, dos factos dados como provados, das provas aceites, não esvazia o acórdão da sua fundamentação, nem encerra a virtualidade de autorizar esta instância a desmerecer o desenho processual e analítico seguido pelo Tribunal Supremo para justificar a decisão proferida, como pretende o Recorrente.

Neste contexto, este Tribunal julga manifestamente infundado e improcedente o pretenso vício de omissão de fundamentação do acórdão impugnado, como argumento de inconstitucionalidade arguido pelo Recorrente.

Ante ao exposto, o Tribunal Constitucional julga improcedente o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por não se verificar violação de normas ou princípios constitucionais arguidos, nem de qualquer outro que coubesse conhecimento oficioso desta instância.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo Visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: 

Sem custas nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 8 de Dezembro de 2021.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente) 

Dr. Carlos Magalhães

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva 

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora) 

Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor

Dra. Victória Manuel da Silva Izata