ACÓRDÃO N.º 718/2021
PROCESSO N.º 832-D/2020
(Processo de Fiscalização Sucessiva)
Em nome do povo, acordam, os Juízes, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Ordem dos Advogados de Angola (OAA) veio requerer, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 193.º, 194.º e 230.º da Constituição da República de Angola (CRA), e dos artigos 3.º, 4.º (n.º 1, alíneas a) e h)) e 10.º, todos da Lei n.º 1/95, de 6 de Janeiro – Lei da Advocacia -, a apreciação e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do n.º 5 do artigo 16.º e do n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º 10/20, de 16 de Abril - Lei das Acções Encobertas para Fins de Prevenção e Investigação Criminal.
Para impugnar a constitucionalidade das normas acima indicadas, a Requerente invoca a violação, entre outros argumentos, do artigo 23.º, do n.º 1 do artigo 67.º, do artigo 72.º e do n.º 2 do artigo 174.º da Constituição.
Os fundamentos do pedido são, em síntese, os seguintes:
Notificada para responder, a Assembleia Nacional veio oferecer o seu pronunciamento, aproveitando, no entanto, para explicar, em síntese, o seguinte:
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer do pedido ora formulado. Tal competência resulta desde logo, da alínea a) do n.º 2 do artigo 180.º da Constituição, bem como da alínea a) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional) e ainda da alínea b) do artigo 3.º, conjugado com o artigo 19.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
A Ordem dos Advogados de Angola tem legitimidade para requerer a fiscalização sucessiva abstracta de normas, nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição e do artigo 18.º da LPC.
IV. OBJECTO
Emerge como questão decidenda na presente acção de fiscalização sucessiva a apreciação da constitucionalidade das normas contidas no n.º 5 do artigo 16.º e no n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º 10/20, de 16 de Abril - Lei das Acções Encobertas para Fins de Prevenção e Investigação Criminal (LAEFPIC).
V. APRECIANDO
As normas sindicadas, que se transcrevem de seguida, constam, como já se afirmou, da LAEFPIC, que institui o regime especial das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal por parte dos Órgãos de Polícia Criminal e demais Órgãos de Segurança Interna, Órgãos de Defesa Nacional e Órgãos de Inteligência e de Segurança do Estado.
Têm o seguinte teor:
ARTIGO 16.º
(Valor probatório do relatório)
(…)
ARTIGO 17.º
(Participação do Agente Encoberto na fase de julgamento)
(…)
Estes preceitos abordam directamente as circunstâncias e as condições em que o agente encoberto prestará declarações em audiência de julgamento. Permitem, nos casos de indispensabilidade de prova e sob recurso de certo aparato tecnológico, que o agente encoberto preste declarações de forma anónima, com distorção de voz e imagem, se for o caso.
Conforme decorre da exposição de motivos do diploma, a intenção do legislador foi “adaptar o Ordenamento Jurídico de Angola aos instrumentos internacionais e dar a devida resposta à fenómenos criminais complexos e organizados que ameaçam a paz, a tranquilidade e a segurança interna e internacional”, optando por introduzir tal regime em legislação avulsa, não merecendo a inclusão no Código de Processo Penal (CPP).
Para bem se compreender o sentido e alcance das normas aqui submetidas ao escrutínio de inconstitucionalidade e poder levar a cabo a ponderação que deverá presidir ao juízo de validade constitucional, há que ter presente o sentido prescrito dos preceitos normativos que definem o âmbito destas operações levadas à cabo por agentes encobertos.
As acções encobertas, estatui o artigo 4.º da LAEFPIC “constituem diligências investigativas e outros tipos de operações policiais desenvolvidas, dirigidas ou coordenadas pelos Órgãos de Polícia Criminal, exclusivamente, ou em colaboração com os demais Órgãos de Segurança e Ordem Interna, de Defesa Nacional e de Inteligência e de Segurança do Estado, com o fim de prevenir ou reprimir crimes, mediante ocultação da identidade do agente, bem como da sua missão”.
São um meio de obtenção de prova regulado em lei especial, isto é, fora do catálogo previsto no Título V, artigos 208.º a 247.º do CPP, normalmente levadas a cabo por funcionários do Órgão de Polícia Criminal ou por terceiros, actuando sob acompanhamento e fiscalização do Ministério Público – conforme dispõe o n.º 2 do artigo 8.º, podendo também ser realizadas por funcionários de investigação criminal de outros Estados, a pedido destes e ao abrigo de um acordo internacional que o permita, com garantia de reciprocidade (n.º 2 do artigo 9.º).
Têm natureza secreta e provisória (n.º 1 do artigo 5.º) e visam, essencialmente, recolher informação criminal, descobrir os modos de execução de crimes, dissuadir e impedir a consumação de acções criminosas, descobrir material probatório, identificar e indicar os métodos e as técnicas mais adequadas para dissuadir ou impedir a comissão de crimes, bem como identificar agentes criminosos, formas de organização criminosa e locais de grande incidência criminosa ou de cometimento habitual de crimes (n.º 1 do artigo 6.º), relativamente aos tipos de ilícitos previstos no artigo 7.º do diploma.
O recurso às acções encobertas e a utilização de agentes encobertos está umbilicalmente ligada à declaração de “guerra às drogas” por parte dos Estados Unidos da América a partir dos anos 80 do século XX, acentuada pela “guerra ao terrorismo” desencadeada no início do século XXI. Tal necessidade, como sufraga Eduardo Maia Costa deveu-se à “diminuta permeabilidade das organizações criminosas à recolha de informações úteis para a investigação. “Penetrar no interior” dessas organizações seria a única forma de obter provas. Doutra forma, o Estado e a sociedade ficariam desarmados perante o crime organizado” - In “Estudos em Memória do Conselheiro Artur Maurício (org. Maria João Antunes)”, Coimbra Editora, 2014, página 358.
No ordenamento jurídico angolano, um regime semelhante foi inicialmente introduzido no âmbito de crimes relacionados com o tráfico de droga, no artigo 40.º da Lei n.º 3/99, de 6 de Agosto, Lei sobre o Tráfico e Consumo de Estupefacientes, Substâncias Psicotrópicas e Precursores, sob epígrafe “Protecção das fontes de informação”, em que se estabeleceu a possibilidade de não serem revelados ao tribunal a identificação da pessoa que tenha colaborado com a polícia na descoberta da infracção prevista naquele diploma.
Estas operações, enquanto mecanismos ocultos de investigação criminal, criaram desde sempre certa controvérsia jurídica, uma vez que colidem com variados direitos fundamentais dos cidadãos. No entanto, é importante referir que o regime prescrito no diploma é excepcional. A utilização de agentes encobertos nunca deverá assumir a forma de um comportamento normal de investigação criminal, uma vez que aos arguidos é assegurado o direito a um processo justo e equitativo, por força do disposto nos artigos 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 72.º da CRA. Por isso, estas acções têm de ser adequadas aos fins de prevenção e repressão criminais visados e de ser proporcionais não só àqueles fins como também à gravidade do crime sob investigação, conforme decorre do disposto no n.º 2 do artigo 6.º da Lei das Acções encobertas.
Assim, relativamente a admissibilidade das operações encobertas, a Convenção das Nações Unidas contra a criminalidade organizada transnacional (2000), adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas na sua 55.ª sessão, através da resolução A/RES/55/25, prescreve cautelosamente no seu artigo 20.º, sob a epígrafe “técnicas especiais de investigação”, o seguinte:
“Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições previstas no seu direito interno, deverá adoptar as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas controladas e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância electrónica ou outras formas de vigilância e as acções encobertas, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada”.
No contexto europeu, a Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal de 29 de Maio de 2000, prevê, no seu artigo 14.º, que:
“Os Estados membros - requerente e requerido - podem acordar prestar auxílio na realização de investigações criminais por agentes encobertos ou que actuem sob falsa identidade (investigação encoberta)”.
Ante o notório crescimento do crime organizado e por razões de política criminal, muitos têm sido os Estados que admitem e implementam, nos seus ordenamentos jurídicos, as acções encobertas, enquanto técnica de obtenção de material probatório, quer seja através de legislação avulsa, nos Códigos de Processo Penal ou ainda por meio de decisões judiciais.
No ordenamento jurídico espanhol, por exemplo, a Ley de Enjuiciamento Criminal (Código de Processo Penal Espanhol) é o instrumento legal que regula o regime jurídico das acções encobertas, que têm apenas finalidade repressiva e não fins preventivos, conforme decorre da conjugação dos artigos 282.º e 282.º bis da LEC.
Nos mesmos termos, o legislador alemão introduziu no seu ordenamento jurídico, em 1992, a Lei para o Combate do Tráfico Ilícito de Estupefacientes e outras formas de criminalidade organizada - Lei ORGKG de 15 de julho de 1992 - Gesetz zur Bekämpfung des illegalen Rauschgifthandels und Anderer Erscheinungsformen der Organisierten Kriminalität-OrKG – que alterou o preceito previsto no § 110 do Código de Processo Penal Alemão (Strafprozeßordnung - StPO), introduzindo ali a figura do agente encoberto (Verdeckter Ermittler). O CPP alemão define agente encoberto como “membros do serviço policial que actuam por meio de uma identidade fictícia (legende), outorgada por um período limitado de tempo. O termo utilizado na § 110ª é Verdeckter Ermittler que numa tradução literal, significa “investigador infiltrado”, termo que é traduzido para o inglês como undercover employee, que corresponde ao agente encoberto previsto na Lei das Acções Encobertas.
Nos Estados Unidos da América, as decisões do Supreme Court of the United States (Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América), orientam o regime aplicável às acções encobertas, uma vez que vigora nesse ordenamento jurídico o sistema common law, no qual os tribunais são também os principais responsáveis pela criação e aperfeiçoamento do direito. Assim, nos casos Sorrells vs. U.S. (1932) e Russel vs. U.S. (1873) ficou patente a admissibilidade da utilização de agentes encobertos para fins de prevenção e repressão criminal, sendo que as acções encobertas são admissíveis na investigação de qualquer ilícito criminal – (U.S. Supreme Court – 287 U.S. 435, 1932 – 411 U.S. 423 1973, disponível em https://www.supremecourt.gov/).
Posteriormente, em 1981, foram aprovadas pela Procuradoria-Geral da República Americana as Directrizes da Procuradoria-Geral da República sobre operações secretas praticadas pelo Departamento Federal de Investigação (FBI) – “Attorney General's Guidelines on FBI Undercover Operations” -, que visam a “prevenção e repressão de crimes de colarinho branco, corrupção, terrorismo, crime organizado, delitos envolvendo substâncias psicotrópicas e outras áreas prioritárias de investigação, mediante o recurso de acções ou operações encobertas levadas a cabo pelo Undercover Employee – agente encoberto - (tradução livre baseada na versão em inglês disponível em https://www.justice.gov/archives/ag/undercover-and-sensitive-operations-unit-attorney-generals-guidelines-fbi-undercover-operations).
No ordenamento jurídico brasileiro, as acções encobertas não gozam de regulação autónoma. O legislador introduziu o regime jurídico das acções encobertas nos artigos 10.º ao 14.º, Seção III da Lei n.º 10.217, de 11 de Abril de 2001, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal e os meios de obtenção da prova. Este diploma inseriu o inciso V, no artigo 2.º da Lei 9.034/95, prevendo ali a figura do agente infiltrado. Neste artigo estava previsto que a actuação do agente infiltrado seria “mediante circunstanciada autorização judicial”. Estes diplomas não contêm nenhuma regulamentação sobre requisitos, prazos, deveres e garantias do agente encoberto. Foi apenas com a promulgação da Lei n.º 12.850, de 02 de agosto de 2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal que regulou de forma pormenorizada, nos artigos 3.º, inciso VII, 10.º - 14.º, a infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação.
Em Portugal, por sua vez, tal como no nosso ordenamento jurídico, este mecanismo de obtenção de prova está regulado em diploma avulso, a Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto, que institui o Regime Jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal.
O Código de Processo Penal português proíbe as provas obtidas por meios enganosos (artigo 126.º, n.º 2, alínea a)), bem como as obtidas mediante a intromissão abusiva na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações (artigo 126.º, n.º 3), ressalvados os casos permitidos na lei, incluindo-se aqui a Lei n.º 101/2001. Fora dos casos permitidos na lei, as provas assim obtidas, serão nulas, não podendo ser utilizadas no processo.
Sobre a admissibilidade dessa técnica de investigação, ficou consignado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Português, de 20 de Fevereiro de 2003, processo n.º 02P4510, que “(…) Têm sido, em geral, admitidas medidas de investigação especiais, como último meio, mas como estritamente necessárias à eficácia da prevenção e combate à criminalidade objectivamente grave, com elevada danosidade social, que corroem os próprios fundamentos das sociedades democráticas e abertas, e às dificuldades de investigação que normalmente lhe estão associadas, como sucede com o terrorismo, a criminalidade organizada e o tráfico de droga.
A pressão das circunstâncias e das imposições de defesa das sociedades democráticas contra tão graves afrontamentos têm imposto em todas as legislações, meios como a admissibilidade de escutas telefónicas e a utilização de agentes infiltrados”.
Em Cabo Verde, o legislador consagrou as acções encobertas na Lei n.º 30/VII/2008, de 21 de Julho de 2008 - Lei da Investigação Criminal (artigos 13.º-15.º), optando por condicionar o recurso a esta técnica investigativa ao catálogo de crimes previsto no artigo 12.º do diploma.
Antes de mais, deverá integrar a análise o conceito de agente encoberto.
O agente encoberto é, nos termos da alínea a) do artigo 3.º, “o efectivo de Órgão de Polícia Criminal que realiza diligências investigativas ou outros tipos de operações policiais mediante ocultação da sua identidade e missão”.
Conforme refere Manuel Augusto Alves Meireis, o agente infiltrado “(…) através da sua actuação limita-se a obter a confiança do suspeito, tornando-se aparentemente um deles para desta forma ter acesso às informações, planos, processos, confidências que, de acordo com o seu plano, constituirão as provas necessárias à condenação (…)” – In “O Regime das Provas Obtidas pelo Agente Provocador em Processo Penal”, Almedina, Coimbra, 1999, página 164.
Nestes termos também, Sandra Pereira sufraga que “o agente infiltrado será aquele sujeito (agente da autoridade ou terceiro por si comandado) que não determina outrem a prática do crime, mantendo-se à margem da formação da vontade de cometer o ilícito criminal. Limitar-se-á a observar a eventual prática de crimes e, se necessário acompanhará a execução dos mesmos” – In “A Recolha de Prova por Agente Infiltrado”, Prova Criminal e Direito de Defesa, Estudos sobre Teoria da Prova e Garantias de Defesa em Processo Penal”, Coordenação de Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto, 6ª Reimpressão, Almedina, 2016, página 143.
Isabel Oneto (In “O agente infiltrado: contributo para a compreensão do regime jurídico das ações encobertas”, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, página 150) defende ainda que o agente infiltrado é o “agente policial, ou terceiro sob a orientação daquele, que no âmbito da prevenção ou repressão criminal, e com o fim de obter provas incriminatórias sobre determinadas actividades criminosas, oculta a sua identidade e qualidade, podendo praticar factos típicos sem, contudo, os poder determinar”. Tal entendimento é também corroborado pelo Supremo Tribunal de Justiça Português, no Acórdão de 21 de Março de 1996, processo n.º 27/96, onde é referido que o agente encoberto é aquele que “(…) usa o anonimato para recolher os indícios da execução da actividade criminosa que o seu autor já está anteriormente determinado a praticar (…)”.
É importante frisar que, na doutrina e jurisprudência portuguesa, faz-se uma distinção funcional entre o agente encoberto e o agente infiltrado, visto que a expressão “agente encoberto” apresenta-se na Lei n.º 101/2001, como gênero, sem que seja feita distinção amiúde das figuras em face das diferentes formas de actuação.
Tem sido entendimento maioritário de que o agente encoberto é aquele que assume posição de completa passividade em relação à conduta criminosa, ou seja, o funcionário policial ou terceiro sob comando da polícia que, ocultando a identidade, frequenta lugares criminosos onde há suspeição de transgressão da lei com o intuito de colher indícios de crimes para investigação, cuja actuação não tem o condão de influenciar o desenrolar dos factos, constituindo mero observador (Fernando Gonçalves; João Alves; Manuel Monteiro Guedes Valente “O novo regime jurídico do agente infiltrado. Comentado e Anotado”, Coimbra, Almedina, 2001, p. 37; MEIREIS, Manuel Augusto Alves “O Regime das Provas Obtidas pelo Agente Provocador em Processo Penal”, Almedina, Coimbra, 1999, página 161-164.
Assim sendo, o agente infiltrado português corresponde mutatis mutandi ao agente encoberto previsto na Lei n.º 10/20. O traço diferencial e caracterizador do agente encoberto vem previsto no n.º 1 do artigo 22.º do diploma, ao referir que “a conduta do Agente Encoberto, no âmbito de uma acção encoberta, não é punível caso corresponda a prática de acto preparatório ou consumado de ilícito, em qualquer forma de comparticipação, diversa de instigação, provocação e da autoria mediata, sempre que se prove que este guardou a devida proporcionalidade, tendo em conta as circunstâncias e a finalidade da acção”.
Note-se que, para a legitimação da infiltração, o agente não pode induzir ou instigar o investigado ou arguido à prática de crime que de outro modo não praticaria ou que não estivesse já disposto a praticar. O n.º 1 do artigo 10.º proíbe, ipsis verbis, a actividade de agente provocador.
Revertendo ao caso em apreço, vejamos, então, se procede a arguida inconstitucionalidade das normas sindicadas, por contenderem com o princípio do contraditório e o direito à ampla defesa.
O n.º 4 do artigo 16.º e o n.º 2 do artigo 17.º da LAEFPIC estabelecem um regime de autorização para fazer comparecer o agente encoberto sob identidade fictícia em audiência julgamento, mediante recurso à ocultação de imagem, videoconferência, teleconferência, audição à porta fechada ou à recolha antecipada de depoimento, podendo ser visto de forma reservada apenas pelo Juiz e pelo Magistrado do Ministério Público.
Essa comparência, conforme decorre do n.º 3 do artigo 16.º e do n.º 1 do artigo 17.º, ocorrerá caso seja necessário ou por indispensabilidade da prova, isto é, analisado o caso concreto, deverão as declarações prestadas por ele ser relevantes ao esclarecimento dos factos, reiterando o carácter excepcional da intervenção do agente encoberto nestas fases processuais, já que a sua participação na investigação pode nunca vir a ser conhecida nas fases processuais de instrução e julgamento, pois a LAEFPIC não o garante.
A acção encoberta, como já se afirmou, é um mecanismo oculto de obtenção de material probatório regulado em diploma avulso, levado a cabo por um indivíduo infiltrado no entorno de uma determinada organização criminosa que, como é evidente, visa obter meios de prova. Por esse motivo, na perspectiva probatória é necessário que se faça um recorte, separando a actividade secreta (instrumento de formação de provas) e as declarações fornecidas pelo agente encoberto (meio de prova), com reporte cingido aos factos objecto da sua actuação, “observadas as normas do processo penal relativas aos declarantes” – n.º 1 do artigo 17.º, in fine
É exatamente em relação ao modo de prestação de declarações do agente encoberto sobre os factos de que teve conhecimento em virtude de certa acção encoberta que a questão dos autos aqui nos reporta.
Afirma a Requerente que as normas sindicadas determinam a impossibilidade de o arguido solicitar a comparência do agente encoberto para prestar declarações na fase de instrução preparatória e julgamento, bem como impõem às autoridades judiciárias competentes que tomem as medidas necessárias para que os elementos referentes à identificação do agente encoberto não sejam revelados.
Relativamente a possibilidade de ser o arguido a solicitar a comparência do agente encoberto para prestar declarações, ao contrário do que erradamente diz a Requerente, as normas sindicadas não proíbem que o arguido o faça. Dizem apenas que a necessidade e a indispensabilidade da participação do agente encoberto para prestar declarações devem ser analisadas pelo Ministério Público e pelo Juiz. Isto porque, conforme supra referido, a acção encoberta tem carácter excepcional. É desencadeada para reunir provas que permitam a condenação pela prática de um crime dos elencados no diploma que a prevê (artigo 7.º), ou seja, para fins de investigação criminal – não sendo ela própria um meio de prova.
Neste segmento, importa somente analisar se a possibilidade do agente encoberto prestar declarações de forma anónima contende com os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Não se ignora a sofisticação do crime organizado. Diante de uma grande estrutura ilícita e de difícil combate, não se pode esperar que o Estado fique a mercê dessas organizações sem que se valha dos instrumentos necessários ao combate eficaz de certos crimes. Contudo, a acção estatal não pode, sem limites, sobrepor-se aos direitos, liberdades e garantias constitucionais e processuais penais inerentes ao Estado Democrático de Direito, como é o princípio do contraditório. Por este motivo, torna-se imperiosa a harmonização sistêmica entre os princípios do contraditório e os de prevenção, investigação e combate ao crime, para que se salvaguarde também a integridade física de testemunhas, agentes infiltrados ou encobertos.
O princípio do contraditório tem no moderno processo penal o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars e nemo potest inauditu damnari (Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra, Coimbra Editora, 1974, pág. 149 e seguintes). O princípio, que deve ter conteúdo e sentido autónomo, impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, nomeadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.
Este princípio, com assento constitucional no artigo 67.º, n.º 1, tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação. Desempenha, assim, enquanto integrante e central nos direitos do acusado, uma tarefa instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que aos outros sujeitos processuais.
A concepção ampla do princípio do contraditório, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
O princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e activo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.
Significa, este princípio, essencialmente: a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; c) em particular, o direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contradizer todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe, designadamente que seja o último a intervir no processo (Gomes Canotilho e Vital Moreira – “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª Edição, Coimbra, 2007, p. 523).
Assim, o conteúdo essencial do princípio do contraditório determina que nenhuma prova deve ser aceite na audiência, nem nenhuma decisão – ainda que interlocutória – deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade do sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, contestar, e de a valorar, em si mesma e quanto aos seus fundamentos, em condições de plena igualdade e liberdade com os restantes sujeitos processuais, designadamente o Ministério Público (Jorge Miranda e Rui Medeiros – “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2.ª Edição, Coimbra, 2010, p. 732).
Não basta, para o efeito, a prova da ocorrência do crime no processo, mas é necessário conhecer também as circunstâncias em que ela foi colectada, o que somente é aferível a partir da identificação dos sujeitos envolvidos na investigação e dos factos a eles relacionados. É consabido que o contacto directo com a prova permite aos sujeitos processuais extrair percepções imediatas das declarações prestadas, fazer perguntas esclarecedoras, dissipar dúvidas, testar a credibilidade do conteúdo dos relatos, inclusive contraditar o declarante em face dos factos que somente poderiam vir à tona por ocasião da sua identificação.
Somente sabendo de quem partem as acusações, quanto aos factos criminosos imputados, é que poderá o arguido, por meio da defesa, formular perguntas, levantar suspeição, bem como revelar factos que possam comprometer a actuação do agente, tais como actos de provocação que vão além da mera infiltração.
É pois na dimensão legal e constitucional que o contraditório assume, enquanto direito do arguido a, de modo participativo e activo, discutir, contestar e ter contacto directo com a prova declaratória, que as normas aqui sob escrutínio de inconstitucionalidade parecem restringir.
Estando em causa o conteúdo restritivo quanto ao exercício de um direito fundamental, a afectação deste direito deve respeitar o comando normativo previsto no artigo 57.º da CRA, designadamente, os princípios da reserva de lei e proporcionalidade (n.º 1).
O n.º 1 do artigo 57.º estabelece: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário, proporcional, razoável numa sociedade livre e democrática, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Este conteúdo restritivo consta, conforme assinalado, de lei, pois só são admitidos e válidos os meios ocultos de investigação se e na estrita medida em que gozem de expressa e específica consagração legal prevendo a medida de compressão dos direitos fundamentais, satisfazendo, assim, o pressuposto da reserva de lei.
O requisito da necessidade será observado quando o interesse na administração da justiça se possa sobrepor aos direitos fundamentais dos cidadãos e provocar restrições aos mesmos. Por sua vez, o requisito da proporcionalidade obterá satisfação quando houver justo equilíbrio entre o bem que se irá sacrificar e o interesse que, em concreto, se pretende alcançar.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos; b) princípio da exigibilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias; c) princípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem e numa “justa medida”, impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos” – Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição, Coimbra, 1993, p. 153).
Tal princípio, que a doutrina germânica denomina “proibição de excesso” (Ubermassverboten), constitui o pressuposto fundamental de toda intervenção restritiva de direitos e garantias individuais em sede de investigação criminal. Destina-se a “regulamentar a confrontação indivíduo/Estado. De um lado, interesses estatais na realização da investigação criminal e da perseguição penal em juízo, visando o exercício do “ius puniendi”, do outro lado o cidadão investigado ou acusado, titular de direitos e garantias individuais, que em interesse na preservação do ius libertatis” – José António Mouraz Lopes; Paulo Dá Mesquita; Euclides Dâmaso Simões, In Criminalidade Organizada nos Domínios Económico e Financeiro, Instituto Nacional de Administração, Lisboa, 2007, página 142.
Tem a finalidade, portanto, de equilibrar essa relação aparentemente contraditória de interesses, para evitar tanto a violação dos direitos fundamentais do particular, como o comprometimento da actividade do Estado na repressão da criminalidade – Eduardo Araújo Silva, In Crime Organizado: procedimento probatório, São Paulo, Atlas, 2003, páginas 55- 56.
Assim sendo, o problema de constitucionalidade suscitado tem de equacionar-se em função do papel desempenhado pelas normas do n.º 5 do artigo 16.º e do n.º 2 do artigo 17.º da LAEFPIC no sistema em que as mesmas se inserem.
Essa protecção especial ao agente encoberto, a que faz referência a Lei das Acções Encobertas, tem a mesma ratio do regime previsto na Lei n.º 1/20, de 22 de Janeiro - Lei de Protecção das Vítimas, Testemunhas e Arguidos Colaboradores em Processo Penal (LPT), que tem por objecto regular o Regime de Protecção de Vítimas, Testemunhas e Arguidos Colaboradores que, por causa do seu contributo voluntário e efectivo para a recolha da prova em processo penal, corram perigo de vida ou de lesão na sua integridade física, psíquica ou patrimonial.
O Regime constitui, conforme se lê no preâmbulo do diploma, “um instrumento essencial à realização da justiça, a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas em situação de risco ou de vulnerabilidade e um elemento essencial à concretização do Estado Democrático e de Direito, que tem de ser assegurada com o objectivo de reforçar a segurança dos cidadãos, defender os valores fundamentais, da democracia, dos direitos humanos e preservar o direito internacional. A relevância ou essencialidade da colaboração que pode ser prestada por Vítimas, Testemunhas e Arguidos, principalmente para se lograr a prova inilidível em processo, bem como a salvaguarda da sua vida, saúde e integridade, justifica a necessidade de se apostar na sua protecção”.
Todavia, o referido regime jurídico tem uma tramitação própria e um conjunto de pressupostos que têm de se verificar para que a testemunha possa usufruir dos referidos mecanismos de protecção. No n.º 1 do artigo 1.º elencam-se as condições para que, no âmbito do processo penal, uma testemunha, seus familiares e pessoas próximas possam usufruir de medidas de protecção, a saber: perigo de vida, integridade física, integridade psíquica e patrimonial.
Além dos referidos requisitos, não cumulativos, a não revelação da identidade da vítima, testemunha ou arguido colaborador pode ter lugar durante todas as fases processuais, se estiverem preenchidos cumulativamente, de acordo com o artigo 15.º do diploma, as seguintes circunstâncias:
Assim, nos termos deste normativo, tem ainda de ser demonstrado que há um nexo causal entre o perigo concreto e o contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo, sucedido de um processo complementar, secreto e urgente, ao qual apenas tem acesso o Magistrado do Ministério Público ou Magistrado Judicial responsável pelo caso, conforme decorre do artigo 17.º da LPT.
Optou o legislador, na LAEFPIC, atendendo ao meio em que o agente encoberto desenvolve as diligências probatórias e à necessidade da sua manutenção em futuras acções encobertas, por prescindir, para que o agente encoberto possa usufruir de mecanismos de protecção, da verificação cumulativa das circunstâncias supra referenciadas, uma vez que, o agente encoberto corre, sem mais, um perigo concreto contra a sua vida, liberdade, integridade física e psíquica e, eventualmente, a dos seus familiares ou pessoas próximas.
A segurança dos agentes encobertos envolve um domínio sensível, quer por actuarem junto de criminosos, quer por estarem sujeitos a eventuais represálias, por isso, “do ponto de vista metodológico e técnico-policial, as acções encobertas constituem procedimentos complexos onde o alto risco e a grande pressão psicológica são características marcantes” (José Braz “Investigação Criminal: A organização, o método e a prova, Os desafios da Nova Criminalidade”, Coimbra, Almedina, 2009, pág. 327).
Não é, portanto um risco comum, podem ser circunstâncias de risco anormal, implicando “um altíssimo nível de stress por parte do agente infiltrado, sobretudo nas operações de infiltração mais profundas e mais longas, visto que, nestas, ele vai mudar de identidade, perder seus contactos de amizade, contactos familiares, mudar de cidade e passar a ser uma outra pessoa, com hábitos diferentes e, ainda por cima, arriscando a sua vida e sua integridade física para poder cumprir o objectivo principal da operação, que geralmente é chegar no 2.º e 3.º níveis da organização criminosa, comumente ligada ao crime organizado, que detém o controle dos processos económicos à escala internacional e centros de decisão política” (Carolina Pereira, “O entendimento jurisprudencial do tribunal europeu dos direitos do homem (TEDH) acerca da atuação do agente infiltrado”, trabalho no âmbito do Doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, página 631 e consultado no site: http://www.idb-fdul.com/uploaded/files/2012_11_6913_6966.pdf.
O agente encoberto não é um declarante comum. Apesar de nem sempre se poder demonstrar o perigo eminente, a ameaça é latente e permanente, o que justifica a diferenciação do regime previsto para protecção de testemunhas e o do previsto para o agente encoberto.
Em Espanha, no que diz respeito às declarações que o agente encoberto possa vir a prestar em audiência de julgamento, o n.º 2 do artigo 282.º bis do CPP espanhol refere que os funcionários da Polícia Judiciária que tenham actuado numa investigação com identidade fictícia poderão manter esta mesma identidade quando testemunhem no processo sobre os factos que intervieram sempre que seja acordado por despacho judicial fundamentado, aplicando-se ao agente encoberto o previsto na Lei Orgânica n.º 19/1994, de 23 de Dezembro – Lei de protecção de testemunhas e peritos.
O agente encoberto, no regime jurídico alemão, quando preste declarações em audiência de julgamento, pode fazê-lo à distância, fora da sala de audiências mediante distorção de imagem e voz, nos termos da interpretação da Seção 247.ª do CPP alemão operada pelo Tribunal Federal de Justiça da Alemanha através do acórdão BGH StR 111/02 de 26 de Setembro de 2002, disponível em: https://www.hrr-strafrecht.de/hrr/1/02/1-111-02.php3.
No ordenamento jurídico português, o regime jurídico das acções encobertas, prevê no artigo 4.º, n.ºs 3 e 4, a possibilidade do agente encoberto prestar depoimentos sob identidade fictícia e com recurso a outras técnicas de ocultação de identidade. Nos casos que, por indispensabilidade de prova, o agente encoberto tenha de prestar declarações em audiência de julgamento, fá-lo-á, derrogando-se a regra sobre publicidade da audiência de julgamento, prevista nos artigos 206.º da Constituição da República Portuguesa e 87.º do CPP português, aplicando-se tout court o regime jurídico de protecção testemunhas, regulado na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho.
Assim, aplicam-se ao agente encoberto os mecanismos de protecção mais eficazes atendendo às razões de segurança inerentes à figura do agente encoberto, designadamente a utilização de meios audiovisuais na prestação de depoimentos em local diferente daquele que se encontra o arguido, com distorção da imagem e da voz, previstos no artigo 5.º da Lei de protecção de testemunhas portuguesa.
O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão datado a 22 de Março de 2011, no âmbito do processo n.º 182/09.6JELSB (disponível em: www.dgsi.pt) admitiu o uso de teleconferência, com ocultação de imagem e distorção de voz na inquirição em audiência de julgamento de um funcionário de investigação criminal da Polícia Judiciária que actuou como agente encoberto, considerando que o respectivo depoimento “(…) se mostrou sem falhas lógicas ou contradições mesmo sob a pressão, em pleno contraditório, do interrogatório cruzado com respostas totalmente esclarecedoras das dúvidas suscitadas. Por conseguinte, um depoimento que quanto à sua substância foi idóneo e credível no tocante a todos aspectos que abordou”.
No ordenamento jurídico cabo-verdiano, a regra é de que o agente encoberto compareça em audiência contraditória preliminar e/ou em audiência de julgamento, conforme se pode inferir a contrario sensu da norma do artigo 15.º da Lei n.º 30/VII/2008, embora o diploma não regule o modo em que as declarações do “funcionário de investigação criminal que actuou com ocultação de identidade” devem ser prestadas.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem admitido, diante de circunstâncias especiais, o testemunho em anonimato de qualquer testemunha, inclusive agentes encobertos ou infiltrados. Contudo, para fins condenatórios, os fundamentos não poderão embasar-se essencialmente em tais testemunhos.
Na decisão de 4 de Julho de 2000, no caso Kok c. Holanda, considerou válida a valoração de um testemunho anónimo pelo facto de que não foi elemento probatório único ou essencial à condenação, afirmando mesmo, no caso Van Mechelen e outros c. Holanda, decisão de 24 de Julho de 1997, haver um diferencial entre depoimentos em anonimato de polícias e testemunhas comuns ou vítimas, uma vez que estas não possuem o poder de detenção e o dever de testemunhar em audiência pública como aqueles.
No caso Lüdi c. Suíça, julgado em 15 de Junho de 1992, o TEDH tratou especificamente sobre as declarações de um agente infiltrado que serviram de fundamento condenatório na justiça suíça por arguido acusado de tráfico de drogas sem que o polícia tivesse sido ouvido em juízo. Segundo o Tribunal desse país, do qual se originou o recurso, o anonimato do agente encoberto não infringiria princípios de direito processual penal ou constitucional. No acórdão, o TEDH reconheceu que os relatórios desses agentes, bem como as transcrições de escutas telefónicas fazem parte do processo como prova. Contudo, sua validade para fins condenatórios, demanda que o arguido tenha a oportunidade de inquirir as testemunhas, a fim de poder colocar em causa os elementos probatórios colectados, sem prejuízo do segredo de identidade. Todas as decisões encontram-se disponíveis em: https://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=caselaw/HUDOC&c=).
Não há dúvidas de que as declarações do agente encoberto com identidade fictícia e com ocultação de imagem e distorção de voz colidem com o princípio estrutural do direito penal, o princípio do contraditório.
Assim, verifica-se que a questão fundamental se situa no equilíbrio entre a segurança do agente encoberto, seus familiares e pessoas próximas e o ius puniendi do Estado e os direitos de defesa do arguido. De um lado temos o princípio do Estado Democrático de Direito e a prossecução da justiça e política criminal, e de outro, direitos e liberdades fundamentais.
Conforme bem refere Costa Andrade, “na polaridade dialéctica entre, por um lado, a eficácia na descoberta da verdade e na perseguição dos criminosos, a segurança e a reafirmação da validade das normas e, por outro, a liberdade e as garantias de defesa, houve em tempos recentes uma mudança de paradigma que impôs o enfraquecimento de conceitos e princípios basilares do processo penal do Estado Liberal, se não mesmo a sua substituição por outros irreconciliavelmente antagónico” – “Métodos Ocultos de Investigação (Pladoyer para uma teoria geral) in “Que Futuro para o Processo Penal”, Coimbra Editora, 2009, páginas 526 e 527.
Vislumbra-se que o mecanismo encontrado pelo legislador para ferir o menos possível os direitos fundamentais do arguido, sem ainda assim deixar de proteger o agente encoberto, assenta, como não poderia deixar de ser, visto estarmos no âmbito da protecção de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos, na possibilidade de o agente secreto ser inquirido pela acusação, sem que para isso sejam revelados elementos da sua identidade, acautelando uma investigação segura e profícua.
Não existem direitos fundamentais absolutos e ilimitados na sua efectivação. O Estado de Direito exige igualmente a protecção de valores institucionais indispensáveis à sua própria subsistência, nomeadamente a viabilização de uma eficaz administração da justiça. “Também um unilateralismo sistemático no sentido da protecção do arguido ameaçaria o Estado de Direito mesmo nos seus fundamentos” - Figueiredo Dias, “Para uma Reforma Global do Processo Penal Português” em Para Uma Nova Justiça Penal, 2006.
Criar garantias de confidencialidade da acção realizada, do respectivo relato e do agente encoberto, satisfaz, na prática, os requisitos de necessidade e proporcionalidade que devem ser observados, permitindo que, tendo que ser chamados a prestar declarações, possam fazê-lo sob a identidade fictícia que lhes tenha sido atribuída e, além disso, que nestas circunstâncias, os agentes encobertos beneficiem de medidas adequadas de protecção de testemunhas, entre as quais a audição por teleconferência, com distorção de voz e imagem.
Essa ressalva é justificada também pelos valores que se pretende preservar com a ocultação da identidade do agente encoberto que vão além dos seus direitos individuais, preservando-se, mesmo, os interesses colectivos de segurança, justiça e bem-estar. O crime organizado está na ordem do dia. Da sua dimensão decorre que a intervenção do Estado, na sua vertente penalista, não pode ser absentista, pois isso conduziria a um descrédito geral da sua função preventiva e repressiva da criminalidade.
Não há dúvidas de que a criminalidade organizada põe em perigo a comunidade de uma forma mais intensa do que a criminalidade comum. Daí que não pode melindrar e surpreender se os sacrifícios pedidos aos direitos individuais, também o sejam.
Se a forma como o crime é praticado se modernizou e especializou, a forma como o combatemos tem de se especializar também, sob pena da segurança colectiva que se quer defender e preservar ser completamente destituída de efeitos. Segurança esta que é posta em causa todos os dias por estas organizações complexas.
Num quadro de luta contra a criminalidade, imposta pela construção de um espaço global de liberdade, segurança e justiça, assume particular importância a definição de uma política criminal mais consentânea com os novos tipos de ilícitos, bem como a adopção de instrumentos adequados à sua implementação.
Assim, a Lei n.º 10/20, LAEFPIC, procura conciliar interesses conflituantes que são, por um lado, o combate à criminalidade sofisticada e com reconhecidas dificuldades de investigação e, por outro, os direitos de defesa, em particular o contraditório, e nessa medida prevê o acesso ao relato da acção encoberta, admitindo ainda que se proceda à inquirição do agente encoberto. Mas ambas diligências serão deferidas com carácter de excepcionalidade.
Os comandos normativos aqui sob escrutínio não coartam o direito de o arguido contraditar e inquirir o agente encoberto. Dizem-nos antes, que a sua identidade deve ser preservada, devendo ser visto apenas pelo Ministério Público e Juiz da causa. Solução que, conforme se pode constatar no diploma em questão, decorre da natureza secreta das actividades e tarefas que os agentes encobertos desempenham.
Terá esta solução, potencialmente, uma afirmada matriz de compressão de direitos, incompatível com as exigências nucleares do artigo 67.º, n.º 1 da Constituição conforme assevera a Requerente?
Afigura-se que não e que ela se contém dentro das balizas inultrapassáveis do artigo 57.º, n.º 2 da CRA quando ali se determina que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem diminuir a extensão e o alcance dos preceitos constitucionais, sobretudo, se se ponderar que não é arbitrário, gratuito, desmotivado ou fútil o sacrifício, ainda que parcial, de qualquer vertente das garantias de defesa. Sacrifício esse que só ocorre porque está em causa a salvaguarda não de um qualquer direito com consagração infraconstitucional, mas de um interesse constitucional superior como é afinal a protecção dos fundamentos do Estado de Direito (artigo 2.º da CRA) que, como já sublinhado supra, a criminalidade organizada tem potencial para minar – Isabel Oneto, “O agente infiltrado: contributo para a compreensão do regime jurídico das ações encobertas”, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, páginas 166-171.
O relatório da acção encoberta pode ser contraditado pelo arguido, uma vez que, tendo de ser integrado ao processo, por indispensabilidade de prova, será reduzido a auto processual, nos termos do disposto no n.º 2 artigo 15.º da Lei das Acções Encobertas. Do mesmo modo, tendo o agente encoberto de prestar declarações, poderá ser inquirido pelo arguido, salvaguardando-se a sua identidade.
Tanto o relatório, como o material probatório recolhido e as declarações do agente encoberto não constituem nenhum tipo de prova vinculada e estão sujeitos ao princípio geral da livre apreciação da prova, previsto no artigo 147.º do CPP. A livre apreciação da prova constitui um dever do julgador que axiologicamente se lhe impõe por força do princípio do Estado de Direito e da dignidade da pessoa humana – emerge directamente dos artigos 1.º e 2.º da Constituição -, traduzindo-se na possibilidade de formar uma convicção pessoal da verdade dos factos, convicção essa que ainda assim racional, assente em regras de lógica e experiência, objectiva e comunicacional. A valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais de produção de prova, ou seja, não é admissível uma valoração arbitrária da prova, sendo a convicção do julgador objectivável e motivável, conjugando-se com o dever de fundamentar os actos decisórios e promover a sua aceitabilidade.
Todavia, a decisão condenatória não pode fundar-se única e exclusivamente, ou de modo decisivo, nas declarações produzidas pelo agente encoberto. Aliás, conforme defende, e bem, Paulo Pinto de Albuquerque, uma eventual decisão condenatória fundada exclusivamente, ou de modo decisivo, no depoimento prestado por testemunha cuja identidade não foi revelada viola o princípio da presunção da inocência - “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2018, página 53.
Um depoimento recolhido em tais condições não nos parece poder oferecer ao julgador o grau de certeza exigível e necessário para uma decisão condenatória, visto que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção da inocência.
Por tudo quanto foi exposto, considera-se que a restrição operada pelo diploma aqui sob escrutínio de inconstitucionalidade – a Lei das Acções Encobertas do Estado – é legítima e razoável, visto que as necessidades de segurança justificam a opção do legislador ordinário, não tendo sido postergado o disposto no n.º 1 do artigo 57.º da Constituição.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em:
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 8 de Dezembro de 2021.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Guilhermina Prata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Magalhães
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata