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ACÓRDÃO N.º 723/2022

 

PROCESSO N.º 845-A/2020

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam em Conferência no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO

Banco de Comércio e Industria, S.A. (BCI), melhor identificada nos autos, vem ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2074/2013, que negou provimento ao recurso interposto, por inferir que o referido acórdão ofende os princípios da legalidade, da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva bem como viola o direito à defesa e a julgamento justo e conforme, ex vi artigos 6.º, 23.º, 29.º, e o n.º 1, do 72.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).

A Recorrente apresenta, em síntese (fls. 325 a 334), as seguintes alegações:

  1. A Recorrente não foi regularmente citada, já que o preceito do artigo 234.º, n.º 3, do CPC diz que Os representantes das pessoas colectivas ou das sociedades (...) são citados na sede da pessoa colectiva ou da sociedade, em sua própria pessoa, se aí se encontrarem, ou na pessoa de qualquer empregado, (...). 

Interpretando o preceito em referência, conclui-se facilmente que, primeiro deve-se procurar notificar a pessoa colectiva na pessoa do próprio representante legal e, só na impossibilidade de o fazer na pessoa do seu representante legal é que se deve fazer na pessoa de qualquer funcionário que for encontrado no local, mas devidamente justificado no auto de citação pois; 

  1. Segundo as anotações ao n.º 3, do artigo 234.º, do CPC, Só pode citar-se uma sociedade na pessoa de um empregado se a citação se fizer na sede social e se tiverem verificadas as razões que permitem a substituição do representante legal. Se a citação se fizer na pessoa de um empregado fora da sede social ou nesta sem se averiguarem as razões que permitem a substituição, há falta de citação (Vide CPC Anotado, Wanda Ferraz de Brito, Fernando Luso Soares, Duarte Romeira Mesquita, 3.ª Edição, Almedina-Coimbra-1985, página 76). 
  1. Não existindo nos autos qualquer certidão que atesta a impossibilidade de a Recorrente ser citada na pessoa do seu representante legal, no caso o Presidente do Conselho Administração (P.C.A.) e porque a lei não consagra situações de presunção de impossibilidade de citar o representante legal, não devia o juiz presumir, uma vez que; (Vide fls. 93 e 94 dos autos); 
  1. A certidão de fls. 93 dos autos não invoca as razões de não ter sido a aqui Recorrente citada na pessoa do seu P.C.A, agravado pelo facto de o oficial de diligência não ter informado correctamente ao funcionário da recepção de que o documento era destinado ao PCA e não à Senhora Nazaré, como se pode aferir no carimbo de recepção aposto a certidão em referência, o que prova claramente que a intensão era de não permitir que o R. reagisse dentro do prazo legal, ora; 
  1. Sustenta a sua tese o facto de, estranhamente, as notificações seguintes já terem sido feitas, ainda que não na pessoa do representante legal do R. materialmente, mas, formalmente na pessoa deste, como atesta a diferença do destinatário das notificações nos carimbos de recepção apostos nas certidões de fls. 99 e 108 dos autos, daí que; 
  1. No dia 14 de Agosto de 2009, levantou guias para o pagamento do imposto devido ao pedido do processo a confiança, isto é, quase 10 dias depois e só foi formalmente notificado do referido despacho no dia 28 de Janeiro de 2010, ora; Será que ainda não conhecia o teor do despacho proferido a fl. 18, volvido mais de um ano, com vários contactos formais com o processo? Vide fls.18, 19, 21, 22 e 24. 
  1. No entanto, recebeu o processo a confiança no dia 5 de Fevereiro de 2010, vide fls. 25, quando no dia 28 de Janeiro de 2010, vide fls. 24, A. já tinha sido notificada do despacho de fls. 18, que manda notificar a Autora para no prazo de 10 dias corrigir a Petição Inicial, mas, ainda assim, não o fez dentro do prazo, mesmo beneficiando das férias judiciais, o que poderia tê-lo feito até ao início do mês de Março de 2010 pois, se nessa altura o advogado, Dr. Paulo Cristina estivesse preso não teria assinado o pedido do processo a confiança, tão-pouco o seu estafeta teria levado o processo para o escritório, além de que; 
  1. O Ilustre Causídico não era o único advogado no processo, já que, para além dele, estava constituído também o Dr. André Osvaldo Manuel Nunes António, inscrito na Ordem dos Advogados sob número 582, cujos contactos telefónicos constam da procuração. Logo, eram localizáveis porque pertenciam ao mesmo escritório, por um lado e; 
  1. Por outro lado, o A., para justificar o não cumprimento do prazo de 10 dias que lhe foi concedido para corrigir a P.I. e assim evitar o seu indeferimento liminar, procurou como artifício para mais uma vez ludibriar o Tribunal a quo, a constituição de um outro advogado, este que apercebendo-se da situação, veio, a 18 de Junho de 2010, procurar justificar o incumprimento com o fundamento de que o anterior advogado estava preso, “esquecendo-se” que eram dois advogados constituídos e no mínimo, por força do Estatuto da Ordem dos Advogados de Angola, deveria antes de assumir a causa iniciada por outros colegas, deveria contacta-los para saber se A., no mínimo pagou ou não os honorários e se formalizou o fim da relação jurídica que os ligava, sob pena de ser considerada a situação de concorrência desleal; 
  1. O mais grave é que nem sequer juntou qualquer elemento de prova da prisão do anterior Advogado, que no mínimo seria através de uma certidão requerida e emitida pelo Tribunal a ordem do qual o mesmo se encontrava preso e; 
  1. Ainda assim, o Juiz da causa, nunca se pronunciou sobre o requerimento de fls. 26 e seguintes, mas permitiu que o processo continuasse o seu curso normal até a decisão da primeira instância, daí que; 
  1. Se o Juiz da causa aceitou tacitamente a justificação “injustificada” da A., numa situação mais grave que a do R. e permitiu a continuação da instância, porque razão então não aceitou também a justificação do R. que até era e é plausível e de se admitir, segundo os fundamentos atrás aduzidos, dando assim tratamento igual as partes em homenagem ao principio da igualdade, com dignidade constitucional, ex vi artigo 23.º, da C.R.A., o que levaria o Tribunal a não dar provimento a acção desencadeada pela A. e, como corolário, ser declarada nula por falta de citação do R., por força das disposições conjugadas dos artigos 194.º, alínea a), 195.º, 198.º, 202.º e 204.º, todos do CPC; 
  1. O Tribunal Supremo laborou em erro quando tratou da questão ligada à ilegitimidade, pensando que invocamos a ilegitimidade do R., quando o que arguimos é a ilegitimidade da pessoa que desencadeou a acção em nome da Autora, uma vez que a procuração que juntou está em seu nome pessoal, vide fls. 15, o que torna a acção improcedente, situação reconhecida pelo Tribunal de primeira instância, quando as fls. 18 diz claramente que “O A. é a Praxis Gestão Imobiliária S.A.R.L. e não quem vem em sua representação. Corrigir a P.I. no prazo de 10 dias.” 
  1. Mas infelizmente, mesmo depois de não ter cumprido o despacho do Juiz da causa, cuja consequência jurídica é o indeferimento liminar, ao abrigo do preceito do artigo 474.º, n.º 1, alínea c) parte final, conjugado com os preceitos dos artigos 494.º, n.º 1, alínea b) e 495.º, todos do CPC, o Tribunal de primeira instância e de Recurso, fizeram vista grossa, situação que deveria ser tratada oficiosamente de acordo com a lei (Ver artigo 495.º do CPC) teria dado lugar a extinção da instância, logo; 
  1. A pessoa que intentou a acção não tinha legitimidade para tal, uma vez que não tinha uma procuração emitida pela empresa e, consequentemente, para agir em nome de A., já que, a mesma (acção) foi proposta pelo senhor Raul Gomes Cornélio Kanhama e não pela Praxis, vide fls. 2 e 15 dos autos, logo; 
  1. Mesmo depois de o Juiz da causa ter ordenado a sua correcção, a A. não corrigiu a situação dentro do prazo legal que foi conferido pelo Tribunal, tendo feito apenas quase dois anos depois, pois; (Vide fls. n.º 18); 
  1. Embora ter junto aos autos uma outra procuração em nome da empresa, aparentemente subscrita pelo representante legal da A. emitida aos 4 de Junho de 2010, a verdade é que nesta altura o Sr. Raul Gomes Cornélio Kanhama, já não tinha poderes para agir em nome da Autora, já que (Vide fls. n.º 32) a certidão de registo comercial junto aos autos, fls. 85, atesta apenas que o Sr. Raul Gomes Cornélio Kanhama era Presidente do Conselho de Administração e Director Executivo no triénio 2003 a 2006, ora; 
  1. A acção em causa foi proposta em 2008 e não em 2006, daí que, em rigor da lei, A. não propôs nenhuma acção, mas sim o Sr. Raul Gomes Cornélio Kanhama, que para além de estranho a lide, não tem poderes para agir em nome da A., tão-pouco para conferir mandato aos advogados, logo; 
  1. À luz do preceituado nos artigos 493.º, 494.º, alínea b) e 495.º, todos do CPC, devia ser atendida a excepção de ilegitimidade, declarando-a procedente porque provada e, em consequência, absolver o R. da Instância, por um lado e; 
  1. Por outro lado, devia A. ser condenada por litigância de má-fé, com fundamento no somatório dos fundamentos aduzidos na primeira e segundas questões prévias, no valor de, em Kwanzas à Usd. 1.000.000,00 (Um Milhão de Dólares Norte Americanos) e á Usd. 600.000,00 (Seiscentos Mil Dólares Norte Americanos) a título de honorários dos Advogados do R, ex vi artigos 456.º e 457.º, do CPC. 
  1. O R., nas suas alegações de recurso para o Tribunal Supremo, demonstrou com documentos que A. nunca adquiriu o imóvel em litígio, uma vez que o R. sempre teve a posse do mesmo através da aquisição feita dos antigos possuidores por meio de negociações individuais e a título oneroso, iniciado nos anos noventa e concluído no ano de 2004 pois; (Vide doc. fls. n.ºs 210 a 267); 
  1. A escritura de compra e venda que A. apresenta é de 2007, nesta altura R. já ocupava e comprou o imóvel aqui reclamado e ninguém reclamou, por um lado e; (Vide doc. n.º s fls. 42 e 210 a 267 dos autos); 
  1. Por outro lado, a R. sempre agiu de forma pública e de boa-fé, de tal sorte que já no longínquo ano de 1997, adquiriu directamente ao Estado parte do imóvel, como bem atestam os documentos em anexo, aliás; (Vide fls. 210 a 267 dos autos); 
  1. A outra parte do imóvel em disputa foi adquirida ao Sr. André Massala, proprietário da oficina Auto Beza, titular do contrato de arrendamento n.º 50791, emitido pela então Secretaria de Estado da Habitação, emitido aos 21 de Junho de 1994, adquirido por compra e venda como atesta o termo de aquisição n.º 650/97, de 29 de Julho, e que cedeu a favor do R., já que; (Vide doc. n.ºs 231 a 244 dos autos); 
  1. A certidão de Registo Predial descreve claramente que no imóvel em disputa existia desde o tempo colonial uma oficina; (Vide doc. fls. 230 dos autos); 
  1. Outrossim, a Autora procurou através de um negócio simulado ludibriar tudo e todos, incluindo o Estado como proprietário do imóvel e que alienou a favor de R., uma vez que; 
  1. A escritura de compra e venda que apresenta a seu favor diz que adquiriu do Estado angolano, isto é, a COQUEPAN - Indústria de Panificação e Comércio, Limitada, que foi lavrada aos 9 de Março de 2007, não diz, qual é a qualidade dos ditos representantes do Estado, daí que; (Vide doc.. de fls. 40 dos autos); 
  1. COQUEPAN - Indústria de Panificação e Comércio, Limitada, no mesmo ano passou o imóvel á aqui A. através do mesmo representante, quando por esta segunda a certidão de registo comercial de fls. 85, diz que este só tinha poderes de a representar até 2006, escritura lavrada aos 18 de Outubro de 2007, isto é, 7 meses depois, razão pela qual; 
  1. Tão logo o R. tomou conhecimento da intenção dos ditos representantes de A.; que atentos ao facto de se tratar de um Banco Comercial e, na ânsia de ganharem dinheiro, começaram por endereçar cartas que levaram R. a diligenciar junto das instituições do Estado encarregues da alienação do seu património, de onde foi informado que o negócio de compra e venda invocado pela A. não foi realizado por nenhum destes órgãos, nem seguiu a forma legal, como atestam os documentos em anexo; (Vide doc. de fls. 210 a 267); 
  1. Só assim se entende que o dito representante de A., usando de artifícios registou a sua compra como se tivesse adquirido o imóvel no seu todo, pois, não era possível a realização do negócio nestas circunstância, já que, qualquer venda desta natureza é procedida de uma vistoria ao local, o que não aconteceu, por um lado e;

 Por outro lado, a A. requereu na sua Petição Inicial, artigo 8.°, uma inspecção judicial para se confirmar in loco a situação do imóvel em disputa. O Tribunal “a quo” não se pronunciou e não foi realizada, o que no caso era o recomendável para se acabar com as dúvidas, ora; 

  1. A ausência da escritura pública e o consequente registo dos imóveis adquiridos pelo R.; são imputáveis ao vendedor, Estado angolano, como acontece na maior parte dos casos, tornando-se assim a regra, daí que; 
  1. O Tribunal Supremo nos seus acórdãos proferidos nos processos n.ºs 667/03 e 705/03, firmou jurisprudência no sentido de conferir validade ao termo de quitação como título bastante, por forma a garantir protecção aos adquirentes de imóveis nestas condições, sob pena de os aproveitadores e vigaristas tirarem proveito dessas situações; 
  1. A violação das normas jurídicas retro mencionadas, colocaram em causa também os direitos fundamentais de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva o direito de defesa e a julgamento justo, célere e conforme a lei, uma vez que, ao não ser citado regularmente, a R. ficou sem a possibilidade de exercer o contraditório e, corolariamente, a sua defesa, tendo o tribunal considerado confessados os factos, colocando desta feita em crise o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei, face a inércia de A. que levou dois anos para corrigir a sua P.I. e mesmo depois do prazo e os Tribunais aqui recorridos ignoraram estes factos que dariam lugar a extinção da instância. 

A Recorrente conclui as suas alegações referindo que não pede a este Tribunal uma reapreciação dos mesmos factos, já que não é esta a sua competência, mas apenas pretende demonstrar a violação de vários preceitos legais por parte quer do Tribunal de primeira instância, quer do Tribunal de recurso, no caso, o Tribunal Supremo, violando desta feita, o princípio da legalidade e, corolariamente, ao dar um tratamento diferente à Recorrente em relação à Autora, que até deixou de cumprir várias vezes os prazos legais.

Os Tribunais aqui invocados fizeram tábua rasa e sem que suprissem as irregularidades invocadas, acabaram sempre por decidir a favor da Autora, o que demonstra quão tendenciosas foram as decisões para prejudicarem a Recorrente desde o início do processo em pauta.

Por esta razão os referidos Tribunais violaram os preceitos dos artigos 194.º, alínea a), 195.º, 198.º, 202.º, 204.º, 493.º, 494.º, alínea b) e 495º, todos do CPC e, ainda, o disposto nos artigos 6.º, 23.º, 29.º, 67.º n.º 1, 72.º, 175.º e 179.º todos da CRA.

A Recorrente termina requerendo que se declare a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido por ofensa dos princípios da legalidade, da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e violação do direito a defesa e do direito a julgamento justo e conforme.

O Processo foi à vista do Ministério Público que promoveu (fls. 336 a 337 dos autos) o seguinte: 

Inconformado com a decisão prolactada pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, veio, a Recorrente interpor o presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (fls. 321 e 325) com o fundamento na ofensa dos princípios da legalidade, da igualdade e outros e dos direitos fundamentais de defesa, a julgamento justo, célere e conforme a lei, previstas nos artigos 6.º, 23.º, 72.º, 175.º e 179.º, todos da Constituição da República de Angola. 

Nas suas alegações a Recorrente suscitou, resumidamente, o seguinte: 

  1. Falta de citação. Que a Ré, aqui Recorrente, não foi regularmente citada.
  2. Ilegitimidade do representante da Autora. Que a pessoa que intentou acção não tem legitimidade para tal.
  3. Litigância de má fé da Autora. Que a autora devia ser condenada por litigância de má fé.

Compulsados os autos constata-se que a Ré (Recorrente) foi regularmente citada. Embora a citação não tivesse sido feita directamente na pessoa do representante legal da empresa, mas foi entregue ao funcionário recepcionista da empresa encarregue por esta de receber, registar e entregar ao destinatário de toda e qualquer correspondência dirigida à empresa.

Apesar da lei referir que a citação deve ser feita na pessoa do representante legal da pessoa colectiva, na prática, o oficial notificador não chega a ter contacto com este representante por razões organizativas e ou protocolares.

A citação entregue ao funcionário encarregue da recepção da correspondência considera-se feita na pessoa do representante da empresa, nos termos do n.º 4 do artigo 234.º do Código de Processo Civil (CPC).

Entendemos que não se verifica a alegada ilegitimidade da Autora, porquanto, a folhas 2, Raul Gomes Cornélio Kanhama disse que intentava acção em representação da PRAXIS Gestão IMOBILIÁRIA S.A.R.L. Por outro lado, a Recorrente não identificou quem era o representante da PRAXIS depois de 2006 para provar a alegada ilegitimidade.

Não procede o pedido de indemnização com fundamento na má fé da Autora porque é a Autora que ficou prejudicada com a ocupação prolongada do pátio pela Recorrente que teve proveito com a ocupação.

Destarte, não se vislumbram no Acórdão recorrido ofensas de princípios e violação de direitos constitucionalmente protegidos.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar para decidir. 

II. COMPETÊNCIA 

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) e do n.º 4 do artigo 21.º da LPC. 

III. LEGITIMIDADE

A Recorrente é parte no Processo n.º 2074/2013 que correu os seus termos na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual ... podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário. 

IV. OBJECTO

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem como objecto apreciar se o Acórdão prolactado pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2074/2013, que negou provimento ao recurso interposto, ofendeu ou não princípios e direitos consagrados na Constituição.

V. APRECIANDO 

A Recorrente alega que os factos que declarou a este Tribunal não são para a sua reapreciação, mas para demonstrar que, quer o Tribunal da primeira instância quer o Tribunal Supremo, ofenderam os princípios da legalidade, da igualdade e do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, por não terem anulado a Petição Inicial diante da ilegitimidade da Autora, bem como por não ter sido a Autora condenada por litigância de má-fé.

Assim, tendo em conta o controlo da interpretação e aplicação das normas constitucionais e infraconstitucionais, cumpre apreciar para decidir se o Acórdão recorrido ofende ou não os supraditos princípios e direitos. 

A) Sobre a violação do princípio da legalidade

A Recorrente alega que nos autos não existe qualquer certidão que ateste a impossibilidade de não ter sido citada na pessoa do seu Presidente do Conselho da Administração, razão pela qual o Juiz não devia presumir a regularidade da citação, conforme o fez a fls. 93 e 94 dos autos.

Por outro lado, a Recorrente afirma que o Tribunal Supremo interpretou erradamente a questão da ilegitimidade por si levantada, uma vez que, a procuração que a Autora requereu a junção nos autos é passada em nome pessoal do Sr. Raul Gomes Cornélio Kanhama. Por esta razão, o mesmo considera que a acção foi proposta pelo Senhor Raul Gomes Cornélio Kanhama e não pela PRAXIS GESTÃO IMOBILIÁRIA S.A.R.L, vide fls. 2 e 15 dos autos.

Finalmente, a Recorrente diz, que nas alegações por si apresentadas em sede de recurso para o Tribunal Supremo, demonstrou que a Autora não tem direito de propriedade sobre o imóvel em litigio, uma vez que, a escritura pública que a mesma apresenta é de 2007. Nesta altura, ela, a Recorrente, já tinha adquirido por compra o imóvel. A falta de escritura pública e a consequente falta de registo dos imóveis por si (Recorrente) adquiridos, foi por culpa do Estado angolano, na qualidade de vendedor.

A ofensa do princípio da legalidade, aqui invocada pela Recorrente, tem propiciado o afastamento do autoritarismo e da arbitrariedade por parte de determinados entes sociais públicos e privados. Este princípio submete o próprio Estado à lei escrita, mediante a qual a sociedade melhor se organiza. Portanto, só se pode fazer o que a lei autoriza ou determina, salvo em caso da discricionariedade, que se rege por princípios de racionalidade, eficiência, eficácia, adequação, proporcionalidade, oportunidade e justiça.

Para a consolidação do princípio da legalidade têm sido apontado três subprincípios concretizadores, nomeadamente, os da prevalência da lei (as leis prevalecem sobre as normas e os actos da administração), da precedência da lei (existência de lei anterior que determine os fins a atingir e os correspondentes meios para atingir esses fins) e da reserva da lei (delimitação de competências no âmbito das funções legislativas).

No âmbito da legalidade da função jurisdicional os tribunais necessitam de um fundamento constitucional e legal das suas decisões, ou seja, uma interpretação e aplicação imparcial, correcta, justa e previsível, com base nas normas jurídicas, para a resolução de qualquer litígio.

Segundo o Professor J. J. Gomes Canotilho O princípio da legalidade postula dois princípios fundamentais: o princípio da supremacia ou prevalência da lei (...) e o princípio da reserva de lei (...). Em termos específicos, o princípio da prevalência da lei significa que a lei deliberada e aprovada pelo Parlamento tem superioridade e preferência relativamente a actos da administração (regulamentos, actos administrativos, actos pararegulamentares, actos administrativos gerais como circulares e instruções). Por sua vez, o princípio da reserva de lei afirma que as restrições aos direitos, liberdades e garantias só podem ser feitas por lei ou mediante autorização desta. In Direito Constitucional e Teoria da constituição, 7.ª Edição, 17.ª Reimpressão, Almedina, 2003, pág. 256.  

O princípio da legalidade estabelece que nenhum acto pode ser contrário à lei, devendo, portanto, todos os actos estarem conforme a lei, ex vi dos artigos 2.º e 6.º ambos da CRA.  

A citação aqui invocada pela Recorrente é um acto previsto e determinado, nos termos conjugados do artigo 228.º e da alínea c) do n.º 1 do artigo 194.º do CPC. Assim, é a partir da citação que se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra si uma determinada acção e chamada ao processo para se defender. Caso o réu não seja citado ou se verifique mera irregularidade, a lei atribui efeitos excepcionais, podendo ser considerado nulo tudo que se processou depois da Petição Inicial.

Será que o facto de a Recorrente não ter sido citada na pessoa do seu Presidente do Conselho da Administração, como alega, e não se verificar nos autos a existência de qualquer certidão que ateste a impossibilidade de ela ter sido assim citada, a ser verdade, deveria ser considerado legalmente como falta ou mera irregularidade da realização da citação e, consequentemente, a ofensa do princípio da legalidade?

Ora vejamos:

A fls. 94 dos autos lê-se que ... foi a ré citada, mostrando-se esta regular, conforme certidão de fls. 92. A ré contudo, não contestou nem constituiu mandatário ou interveio de qualquer maneira no processo. Desta forma, mostra-se verificada a sua revelia. Porém, dado o facto da ré ser uma pessoa colectiva há que atender o que dispõe o artigo 485.º, alínea b) do CPC.

Contudo, a revelia da ré, nos presentes autos, não produziria os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 484.º do CPC, no que respeita ao direito de propriedade invocado pela ora Autora, atenta a excepção consignada na al. d) do artigo 485.º do mesmo diploma legal, pelo que os autos prosseguem os seus trâmites subsequentes.

Embora regularmente citada a Ré não contestou, nem constituiu mandatário, considerando-se confessados os factos articulados, tal confissão não implica, necessariamente, a condenação da ré no pedido, o qual deve ser notificada pessoalmente, para, se assim o entender, através de mandatário que vier a constituir alegar de direito, sob pena de se violar o seu direito de defesa. (cfr. fls. 95).

Decorre do n.º 3 e 4 do artigo 234.º do CPC que: 3. Os representantes das pessoas colectivas ou das sociedades (...) são citados na sede da pessoa colectiva ou da sociedade, em sua própria pessoa, se aí se encontrarem, ou na pessoa de qualquer empregado ... 4. A citação feita na pessoa de um empregado (...) tem o mesmo valor que a citação feita na própria pessoa do representante.

É neste sentido que se integra a consideração de Francisco Castelo Branco Galvão e Ana Maria Castelo Branco Galvão ao referirem que Só pode citar-se uma sociedade na pessoa de um empregado se a citação se fizer na sede social e se se tiverem verificado as razões que permitem a substituição do representante legal. Há falta de citação se ela se fizer na pessoa de um empregado fora da sede social ou nesta sem se averiguarem as razões que permitem a substituição do representante legal. A sede social é a que consta do registo comercial. In. Processo Civil, Compilação de Jurisprudência, 1953/1981, Volume II, Coimbra Editora, Limitada, 1984, pág. 23.

Assim, este Tribunal considera ter havido fundamento doutrinal e legal para se considerar que a citação foi regular, em obediência aos requisitos legais estabelecidos pelo artigo 483.º do CPC e consequentemente não foi ofendido o princípio da legalidade.

Sobre a procuração que a Autora juntou aos autos (fls. 15) e que a Recorrente ressalta que foi emitida pessoalmente pelo Sr. Raul Gomes Cornélio Kanhama, importa referir que o Juiz da causa (primeira instância) mandou, com fundamento na alínea d) do n.º 1 do artigo 288.º do CPC, aos 22 de Setembro de 2008, corrigir a Petição Inicial (PI), nos seguintes termos: A A. é a PRAXIS GESTÃO IMOBILIÁRIA S.AR.L e não quem vem em sua representação. Corrija a PI no prazo de 10 dias (fls. 18).  Tal veio a acontecer com a junção de uma Petição Inicial corrigida (fls. 27 a 31), aos 18 de Junho de 2010.

Porém, antes da correcção da Petição Inicial a Autora apresentou o incidente de justo impedimento, conforme fls. 26, onde arrolou para prova, caso haja necessidade, (...) como testemunha a Sra. Cesaltina Benjamim, residente em Luanda, ao Morro Bento, podendo esta ser notificada com o auxílio da A. 

Os autos demonstram que o Juiz da causa, no decurso do prazo que vai desde a data do primeiro despacho a fls. 18 para a correcção da Petição Inicial até a citação da Ré, aqui Recorrente, proferiu despachos interlocutórios em que fixou prazos para a Autora juntar comprovativo do cumprimento das obrigações fiscais e aperfeiçoar a sua Petição Inicial, com apresentação do estatuto ou pacto social publicado em Diário da República e da certidão de matrícula da sociedade passada pela Conservatória do Registo Comercial (fls. 56, 59 e 62). A Autora, em cumprimento dos referidos despachos, juntou aos autos estes documentos  nos dias 1 e 9 de Novembro de 2020, conforme  fls. 65-90.

Portanto, não havendo razões para indeferir a Petição Inicial liminarmente ou para arquivá-la ou ainda para convidar a Autora a completá-la ou corrigi-la novamente, o Juiz da causa entendeu, quer em respeito ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (29.º da CRA) quer ao direito à defesa e o direito a julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA), mandar citar a Ré para contestar.

Não tendo a Ré, aqui Recorrente, contestado e nem tendo intervindo de qualquer maneira no processo, o Juiz da causa decidiu mandar notificar pessoalmente, para, se assim o entender, alegar em matéria de direito, sob pena de se violar o seu direito de defesa (fls. 96).

Ensina Ana Prata, que ... Os prazos podem ser convencionalmente estabelecidos pelas partes num negócio jurídico, fixados pela lei, pelos tribunais ou qualquer outra autoridade. In Dicionário Jurídico, 3.ª Edição – Revista e Actualizada, Reimpressão, Livraria Almedina, Coimbra, 1997, pág. 746).

Diante do acima exposto, este Tribunal considera que o Acórdão recorrido não ofendeu o princípio da legalidade, em matéria inerente a legitimidade da Autora, uma vez que não houve razões de direito para o indeferimento liminar da Petição Inicial, conforme pretende e alega a Recorrente.

Outrossim, a Recorrente veio defender-se, afirmando que a ausência da escritura pública e do consequente registo do imóvel por si adquirido são imputáveis ao vendedor, o Estado angolano, como acontece na maior parte dos casos, tornando-se assim a regra. Afirma, ainda, que é por esta razão, que o Tribunal Supremo nos seus acórdãos proferidos nos processos n.ºs 667/03 e 705/03, firmou jurisprudência no sentido de conferir validade ao termo de quitação como título bastante, por forma a garantir protecção aos adquirentes de imóveis nestas condições.

A aquisição da propriedade de imóveis deriva de múltiplas formas enunciadas no artigo 1316.º do Código Civil, sendo elas, o contrato, a sucessão por morte, a usucapião, a ocupação, a acessão e ainda outras formas que a lei expressamente prever.

A aquisição na forma de contrato da propriedade sobre um coisa imóvel só é válida se for celebrada por escritura pública, de modo óbvio, pelo notário, mediante documento autêntico, salvo o disposto em lei especial, nos termos conjugados dos artigos 874.º e 875.º do Código Civil e da alínea a) do artigo 89.º do Código do Notariado.

Quer isto dizer, que a escritura pública só pode ser ilidida desde que a lei especial venha apresentar um outro regime diferente do prescrito pelo artigo 875.º do Código Civil.

O n.º 1 do artigo 364.º do CC estabelece que, Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

Portanto, a Autora apresenta, a fls. 5 e 6, a escritura pública de compra do imóvel em causa, bem como registo do referido imóvel a seu favor (fls. 9 a 13), enquanto que a Recorrente não apresenta melhor prova e sustenta a sua defesa, invocando a jurisprudência do Tribunal Supremo decorrente dos acórdãos proferidos nos processos n.ºs 667/03 e 705/03, que conferem validade ao “termo de quitação” como título bastante, por forma a garantir protecção aos adquirentes de imóveis nestas condições.

Ora, a quitação a que a Recorrente se refere não é um título de validade do negócio de compra e venda de imóvel com carácter e eficácia real, mas de carácter obrigacional, ou seja, tal como ensina Ana Prata a Declaração feita pelo credor de que a obrigação foi cumprida e de que o devedor se encontra, portanto, exonerado ou quite. In Dicionário Jurídico, Direito Civil, Direito Processual Civil, Organização Judiciária, Volume I, 5.ª Edição, Actualizada e Aumentada, Edições Almedina, SA, 2011, pág. 1214.

Assim sendo, o Acórdão recorrido considerou que a propriedade do imóvel inscreve-se na esfera jurídica da PRAXIS GESTÃO IMOBILIÁRIA S.AR.L. e não na esfera jurídica da Recorrente.

Insatisfeito com a decisão, não obstante a Recorrente ter referido na conclusão das suas alegações que não pede a este Tribunal uma reapreciação dos factos julgados pelo Tribunal Supremo, na verdade, o que a Recorrente transmite é para se sindicar a apreciação do mérito da decisão prolactada pelo mesmo Tribunal.

Entretanto, é jurisprudência firmada do Tribunal Constitucional que este Tribunal não é ... uma terceira instância de recurso, com poderes de reapreciação da prova e do mérito da causa. Vide Acórdão n.º 671/2021, prolatado no âmbito do Processo n.º 779-C/2019, de 8 de Março.

Neste contexto, este Tribunal não é competente para aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo, ou seja, aferir se o Tribunal Supremo procedeu a uma correcta apreciação das provas ou não.

Compete ao Tribunal Constitucional administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, nos termos das disposições combinadas dos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho (redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro), Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, e não intervir como uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super-revisão.

Pelo exposto, este Tribunal considera que o Acórdão recorrido não ofendeu o princípio da legalidade.

B) Sobre a violação do princípio da igualdade

A Recorrente declara ter ressaltado que o Juiz da primeira instância ofendeu o princípio da igualdade, consagrado no artigo 23.º da CRA, por ter permitido o prosseguimento da instância sem se pronunciar expressamente sobre a justificação apresentada pela Autora diante da notificação para esta corrigir a Petição Inicial e sobre o requerimento de justo impedimento igualmente apresentado pela Autora a fls. 26 e segs, bem como por não ter admitido o pedido por si formulado, para declarar nula a citação.

O princípio da igualdade, em causa, é, no âmbito do Estado de direito, uma exigência de aplicabilidade geral das normas jurídicas que alberga o brocardo “tratar de forma igual o que é igual e de forma desigual o que é desigual”, ou seja, igualdade não significa tratar tudo e todos da mesma forma.

Ensinam Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes que O princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes dos direitos fundamentais. Ela pode ser entendida enquanto “igualdade formal” (igualdade jurídica), própria do estado liberal, e “igualdade material” que prevê que as pessoas sejam iguais mas baseadas em pressupostos bem claros, ou seja, não se pode tratar duas pessoas como iguais que verdadeiramente não o sejam. Este princípio impõe um tratamento jurídico idêntico a todos os que se encontrem em situação idêntica ou similar.  In Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, 2014, pág. 261.              

Ana Prata ressalta que Segundo este princípio, devem as partes no processo ter igual tratamento, dispondo de idênticas oportunidades de expor as suas razões e de convencer o tribunal a proferir uma decisão que lhes seja favorável. In Dicionário Jurídico, Direito Civil, Direito Processual Civil, 

Organização Judiciária, 3.ª Edição, Revista e Actualizada, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 766. 

O princípio da igualdade ou da isonomia, na conjugação com os direitos fundamentais, compreende um direito geral de igualdade, que decorre da pessoa humana, nos termos do artigo 23.º da CRA.

Para a efectivação do controlo constitucional do princípio da igualdade in casu torna-se necessário apreciar as questões seguintes: (i) se o acto do Juiz da causa (primeira instância) reapreciada pelo Acórdão recorrido atenta contra a obrigação de igualdade de tratamento das partes na relação jurídica controvertida; (ii) se é arbitrário; (iii) se viola um direito especial de igualdade com dignidade e protecção constitucional.

O tratamento desigual que a Recorrente declara ter havido, porque o Tribunal admitiu de forma tácita a justificação apresentada pela Autora e não admitiu o pedido da Recorrente para declarar nula a citação (fls. 94 a 96), decorre de direitos e garantias diferentes e com fundamentação também diferente que encontram consagração nos artigos 29.º e 72.º ambos da CRA, respectivamente.

Senão vejamos:

Enquanto, o prosseguimento da acção a favor da Autora (PRAXIS GESTÃO IMOBILIÁRIA, S.A.R.L.), resultou do corolário do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, nos termos do artigo 29.º da CRA e dos artigos 2.º, 193.º e 477.º do CPC, a citação, da aqui Recorrente, tem como fundamento legal o direito à defesa e o direito a julgamento justo e conforme, nos termos do artigo 72.º da CRA e do artigo 478.º do CPC.

Assim, para garantir o acesso ao direito o Juiz mandou corrigir (fls. 27 e 56), como também mandou aperfeiçoar a Petição Inicial (fls. 62 - despacho de 20 de Outubro de 2020).  

A Recorrente requereu (fls. 109 a 111) o indeferimento liminar da petição inicial ou, em alternativa, a declaração de nulidade da citação. Porém, o Juiz da causa julgou os incidentes suscitados improcedentes, e em consequência determinou a prossecução dos autos, mediante despacho fundamentado, conforme fls. 114 a 116.

Atendendo o princípio da legalidade, a marcha e termos do processo são determinados na lei e não decididos pelo Juiz em função das conveniências do caso concreto. Porém, diante das suas competências, o Juiz é obrigado a eliminar os obstáculos para o andamento do processo, ordenando, designadamente, o que lhe pareça necessário para o seguimento dele, conforme estabelece o artigo 266.º do CPC, sem prejuízo do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, preceituado pelo artigo 29.º da CRA.

O princípio da legalidade, em processo civil, manifesta-se, ainda, em relação ao conteúdo da decisão, pois o tribunal deve julgar, em princípio, segundo as fontes imediatas do direito, isto é, a lei e o costume, salvo se este último contrariar a Constituição e atentar contra a dignidade da pessoa humana conforme estabelece a conjugação do n.º 1 do artigo 2.º com o artigo 7.º, ambos da CRA. Entretanto, só excepcionalmente, pode o Juiz decidir segundo a equidade, com fundamento no artigo 659.º do CPC.

Decorrido o prazo de 30 dias para que a Ré, aqui Recorrente, contestasse, e não o tendo feito, o Juiz da causa considerou que ... confessados os factos, articulados, tal confissão não implica, necessariamente, a condenação da Ré no pedido, a qual deve ser notificada pessoalmente, para, se assim o entender, através de mandatário que vier a constituir alegar de direito, sob pena de se violar o seu direito de defesa (fls. 96).

Portanto, não era de todo judicioso ser a Ré novamente citada, uma vez que os actos do Juiz, incluindo os despachos, até onde seja possível aplicar, não podem ser repetidos, em obediência ao poder jurisdicional, salvo se a citação for nula, nos termos do artigo 198.º do CPC. Mas, não foi este o entendimento do Juiz da causa, conforme se certifica a fls. 95 dos autos, nem do Acórdão recorrido. 

Os actos praticados pelo Juiz da causa, quer por admitir a justificação do Autor para corrigir a Petição Inicial, quer por não admitir o pedido de nulidade da citação, não foram arbitrários, têm consagração constitucional, base legal e consubstanciam situações judiciais distintas. Nestes termos, este Tribunal não vislumbra ter havido, por parte do Acórdão recorrido, qualquer ofensa ao princípio da igualdade.

C) Sobre a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva 

A Recorrente alega que foi violado o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, em virtude de ela não ter exercido a defesa dos seus direitos e interesses, por ter sido irregularmente citada e, em consequência, o Tribunal de primeira instância considerar como confessados os factos.

O acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva consubstancia-se nos meios jurisdicionais de que os particulares dispõem para garantir a efectividade do seu direito e reagir contra as suas violações. São, portanto, meios que visam não apenas garantir o acesso dos cidadãos aos tribunais, mas também possibilitar aos mesmos a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos através de um acto de jurisdictio, ou seja, da actividade jurisdicional, exercida pelo poder judiciário.

Ensina J. J. Gomes Canotilho que o direito de acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar um prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de causas e outras. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição (17.ª Reimpressão), Almedina, 2003, pág. 433.  

Neste sentido, ainda, enfatizam Jorge Miranda e Rui Medeiros que só quem tem consciência dos seus direitos consegue usufruir os bens a que eles correspondem e sabe avaliar as desvantagem e os prejuízos que sofre quando não os pode exercer ou efectivar ou quando eles são violados ou restringidos. In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Introdução Geral, Preâmbulo e artigos 1.ª a 79.ª, 2.ª Edição, Revista, Actualizada e Ampliada, Coimbra Editora, 2010, pág. 423 (artigo 20.º).

Para salvaguardar os direitos e interesses legalmente protegidos, o acesso aos tribunais pressupõe que a tutela obtida através dos mesmos (tribunais) seja efectiva a partir, desde logo, da existência de tipos de acções ou recursos adequados interpostos e tipos de sentenças apropriadas e claras, proferidas em razão das pretensões de tutela deduzida em juízo.

É por esta razão que o n.º 1 do artigo 29.º da CRA estabelece que A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e o artigo 118.º, também da CRA, dispõe que: 1. Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo. 2. No exercício das suas funções, os tribunais têm direito à coadjuvação das outras autoridades. 3. As decisões dos tribunais são de cumprimento obrigatório e prevalecem sobre todas as decisões de quaisquer autoridades.

Mas, para o poder judiciário dizer o direito, via de regra, torna-se necessário um impulso processual, isto é, alguém precisa solicitar a tutela (protecção) jurisdicional.

É por conta do princípio da inércia da jurisdição, que o artigo 2.º do CPC dispõe que: A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde uma acção, destinada a fazê-lo reconhecer em juízo ou a realiza-lo coercivamente, bem como as providencias necessárias para acautelar o efeito útil da acção.

O direito de acesso aos tribunais inclui, igualmente, entre outros, o direito a um processo equitativo.

Neste sentido, a Recorrente foi regularmente citada, ou seja, tomou conhecimento de que foi proposta uma acção contra ela e foi chamada ao processo para se defender, constituindo-se no ónus de contestar, em obediência ao princípio do contraditório. Não tendo contestado e nem tendo intervindo de qualquer maneira no processo, consideraram-se confessados os factos articulados pelo Autor, conforme estabelece o artigo 484.º do CPC.

Porém, por tratar-se de uma pessoa colectiva, o Tribunal atendeu à excepção consagrada nas alíneas b) e d) do artigo 485.º do CPC, afastou os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 484.º do CPC, no que respeita ao direito de propriedade invocado pela Autora, decidiu pelo prosseguimento dos trâmites subsequentes, sem que os factos considerados confessados implicassem, necessariamente, a condenação da Ré no pedido (cfr. fls. 94 a 96).

Para o efeito, foi a Ré, aqui Recorrente, notificada pessoalmente, para, se assim o entender, alegar de direito, isto é, discutir o aspecto jurídico da causa, em face do disposto no artigo 657.º CPC, em obediência ao princípio do contraditório.

Da decisão prolatada pelo Tribunal de primeira instância, a Recorrente interpôs recurso para o Tribunal Supremo e, do Acórdão proferido, porque insatisfeito com a decisão, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. Nestes termos não cabe razão à Recorrente quando alega que o Acórdão recorrido violou o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 29.º da CRA.  

D) Sobre a violação do direito à defesa e do direito a julgamento justo e conforme

Pelo mesmo facto de ter sido irregularmente citada, veio a Recorrente declarar que, na qualidade de Ré, ficou sem a possibilidade de exercer o contraditório, a sua defesa, violando-se, assim, os direitos à defesa e ao julgamento justo e conforme.

O princípio do contraditório, no direito processual, obriga ao cumprimento de determinadas formalidades cujo objectivo é ordenar a sucessão de actos, de modo regular, de tal forma que, antes de prolactada qualquer decisão final a pessoa directamente interessada na mesma tenha a oportunidade de se manifestar, ou seja, de contribuir para o acto que interferirá na sua esfera de direitos. O contraditório e a ampla defesa são instrumentos que garantem o acesso aos autos, a oportunidade para a produção de provas necessárias à defesa, bem como impugnar as acções contrárias e interpor os recursos cabíveis. A Constituição acolhe o contraditório e a ampla defesa em disseminados preceitos com destaque para o n.º 4 in fine do 29.º e o artigo 72.º, ambos da CRA.

Não resta dúvida que o direito de defesa está ligado directamente ao princípio do contraditório pois, como ensinam Antunes Varela, J. Miguel Bizerra e Sampaio e Nora: Levando ao conhecimento do réu certo facto (que lhe respeita e interessa), a citação constitui uma verdadeira notificação: é por natureza uma simples declaração de ciência. Chamado o réu ao processo para se defender na acção, sob cominação de determinado efeito (artigo 480.º [CPC], a citação é um acto jurídico constitutivo destinado a dar execução ao princípio fundamental da audiência contraditória ou do contraditório (art. 3.º, 1, 2.ª parte [CPC]. In Manual de Processo Civil, de Acordo com o Decreto-Lei n.º 242/85, 2.ª Edição (Reimpressão), Coimbra editora, 2004, págs. 273 e 274.

Assim, a parte demandada deve ser citada, para que se constitua no ónus de contestar, uma vez que, o tribunal não pode resolver o conflito de interesse que lhe é proposto sem que esta parte seja devidamente chamada para deduzir oposição, salvo nos casos excepcionais previstos na lei (cfr. n.º 1 in fine do artigo 3.º do CPC).

Deste preceito legal (artigo 3.º do CPC), em conjugação com o artigo 228.º, também do CPC, depreende-se que a citação tem dois momentos. O primeiro é uma notificação, o acto pelo qual se dá conhecimento à parte demandada de que foi proposta contra ela determinada acção e no segundo momento um acto jurídico constitutivo, em que se chama a mesma ao processo para se defender, ou seja, para deduzir oposição (ónus de contestação).

Conforme ensina Ana Prata o ónus é o Comportamento necessário para o exercício de um direito ou realização de um interesse próprio. Figura distinta do dever, porque o comportamento não é aqui obrigatoriamente imposto pela lei: está na disponibilidade da pessoa realiza-lo ou não, sabendo tão-somente que a sua realização é condição necessária para o exercício de um seu direito, para a obtenção de uma vantagem, para a realização de um seu interesse ou para evitar uma desvantagem (que não é, em qualquer caso, uma sanção). Aquele sobre quem impende o ónus tem, pois, de cumpri-lo para obter a vantagem ou evitar a desvantagem. In Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Volume I, Almedina, 2011, pág. 1009.

Nestes termos, tendo sido a aqui Recorrente citada, tinha o ónus de impugnação especificada dos factos invocados pela sociedade PRAXIS GESTÃO IMOBILIÁRIA S.A.R.L., na qualidade de Autora.                  

Não impugnando, como aconteceu, a lei determina que os factos se tenham como confessados, tal como o Juiz da causa (primeira instância) proferiu na sua decisão, a fls. 92 e 94-96 dos autos.

Nesta decisão realça-se que a Ré, ora Recorrente, foi regularmente citada e não interveio no processo, tendo o Juiz da causa em primeira instância, ordenado para o prosseguimento da acção e a notificação da Ré -Banco de Comércio e Indústria, S.A. (BCI) - para expor de forma fundamentada o seu direito e impugnar as razões aduzidas pela Autora.

Isto posto, este Tribunal julga que o Acórdão recorrido não ofendeu o princípio do contraditório, nem violou o direito da ampla defesa, constitucionalmente consagrados.

Outrossim, no mesmo contexto, a Recorrente veio dizer em sua defesa que o Acórdão em crise não preservou o direito a julgamento justo e conforme, por não ter exercido a sua defesa e, consequentemente, terem os factos sido considerados como confessados.  

O devido processo legal é garantido pelo artigo 72.º e n.º 2 do artigo 174.º ambos da CRA. O artigo 72.º da CRA dispõe que A todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei. Assim, se

impõe a existência de um processo justo (ou “devido processo legal”) para garantir a realização da justiça, uma vez que, a pacificação social não advém somente do resultado do processo, mas do “sentimento de justiça”, da forma como as pessoas foram julgadas e de como elas compreendem a forma como se efectivou esse julgamento.

A Recorrente, regularmente citada para exercer o contraditório, na qualidade de Ré, tinha o ónus de contestar e não o fez tendo, consequentemente, o Juiz da causa (primeira instância) considerado, nos termos da lei, como confessados os factos e notificou a Recorrente para produzir alegações de direito. Assim, este Tribunal julga que não foi violado o direito a um julgamento justo e conforme.

Neste contexto, este Tribunal julga que o Acórdão recorrido prolatado pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2074/2013, não ofende os princípios da legalidade, da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, nem viola os direitos à defesa e a julgamento justo e conforme, invocados pela Recorrente.

 Nestes termos 

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:  

Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.o da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 23 de Fevereiro de 2022.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dr. Carlos Alberto Bravo Burity da Silva (Relator) 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães 

Dra Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria de Fátima de Lima d´A. B da Silva 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata