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ACÓRDÃO N.º 725/2022

 

PROCESSO N.º 906 – D/2021

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, os Juízes, Acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Teresa António Francisco da Costa, Agnelo Francisco da Costa e Graciete Francisco da Costa, com os demais sinais de identificação nos autos, vêm junto do Tribunal Constitucional, interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, da decisão do Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo que julgou improcedente o pedido de habeas corpus e concomitantemente, condenou-os ao pagamento de multa fixada em Kz. 35 000, 00 (trinta e cinco mil kwanzas), no âmbito do Processo n.º 05/2021.

Inconformados com o despacho do Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, interpuseram o presente recurso, com base nos seguintes fundamentos:

  1. Os Recorrentes estão indiciados pelos crimes de peculato e falsificação de documentos, p.p. pelos artigos 313.º, 437.º, n.º 5 do 421.º e 216.º Código penal de 1866, violação das normas de execução do plano de orçamento p.p. pelo artigo 36.º da Lei n.º 3/10, de 29 de Março, participação económica em negócio, associação criminosa e tráfico de influência p.p. pelos artigos 40.º n.º 1, 8.º n.º 1 e 41.º da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro;
  2. Em consequência disso e na sequência de vários interrogatórios a que foram submetidos, foi-lhes decretada prisão preventiva, nos dias 30 de Novembro de 2020 e 7 de Dezembro de 2020…;
  3. Inconformados com a medida de coacção pessoal de prisão preventiva determinada pelo Ministério Público, no dia 15 de Dezembro de 2020, deram entrada, no cartório do Tribunal Provincial do Cuanza Norte, de um requerimento de recurso da medida de coacção de prisão preventiva;
  4. No dia 21 de Dezembro de 2020, o Meritíssimo Dr. Juiz a quem fora distribuído o expediente, após audição dos Recorrentes na presença dos Magistrados do Ministério Público, ordenou em despacho, a liberdade provisória dos arguidos, mediante pagamento de caução e apresentação periódica no tribunal, de 15 (quinze) em 15 (quinze) dias;
  5. As cauções arbitradas foram pagas na totalidade, em consequência os Recorrentes, foram restituídos a liberdade no dia 23 de Dezembro de 2020;
  6. No dia 01 de Fevereiro de 2021, os réus foram notificados para comparecerem no dia 03 de Fevereiro de 2021, a fim de serem novamente ouvidos em interrogatório;
  7. Os réus pontualmente compareceram à hora marcada no dia 03 de Fevereiro de 2021 e após serem ouvidos, foi-lhes decretada, pelo Digno Magistrado do Ministério Público, a prisão preventiva, por alegada violação das medidas da liberdade provisória impostas aos Recorrentes pelo Juiz de Turno;
  8. No despacho do Ministério Público lido aos réus… consta como fundamentos da detenção e imposição da nova medida de prisão preventiva, nomeadamente o seguinte:a) Que os réus não pagaram caução, por não constar nos autos, qualquer guia que comprove o pagamento;b) Que a influência que a ré Teresa António Francisco da Costa tem, pode intimidar os demais intervenientes no processo;           c) Que a ré Teresa pode ameaçar a integridade física e a vida dos Magistrados do Ministério Público e os outros intervenientes no processo;d)Que os réus estão perturbando a normal instrução do processo tentando alterar provas, entre outras;
  9. Entretanto, os Magistrados do Ministério Público que dirigiam a instrução do processo não apresentaram ou exibiram uma prova sequer, das acusações de violação dos pressupostos da liberdade provisória pelos réus, referidas no articulado antecedente, o que é muito estranho, grave e perigoso para a justiça que se quer realizar;
  10. Os Recorrentes entenderam ser a presente prisão inconstitucional e ilegal;
  11. Inconformados e por entenderem ser arbitrária e ilegal a prisão preventiva decretada pelo Ministério Público, os Recorrentes impetraram uma providência Cautelar de habeas corpus, no Tribunal da Comarca de Cazengo;    
  12. Conhecendo do mérito, o tribunal a quo julgou improcedente a providência de habeas corpus, declarando legal a prisão preventiva dos Recorrentes por não ter sido provada a falta de mandado da autoridade competente para a detenção ou prisão e a violação dos pressupostos e das condições de aplicação da prisão preventiva (artigo 290.º n.º 4 alínea a) e f), conjugado com os artigos 279.º e 292.º n.º 1 CPP vigente);
  13. …os Recorrentes não concordaram e por esta razão interpuseram o recurso para o … Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, por entenderem que o juiz decisor andou mal…;
  14. … o Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, indeferiu o recurso interposto com fundamentos que não se conformam com o Estado democrático de direito, alegando o seguinte:                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      a) Que o pedido efectuado pelos Recorrentes referem-se mais a um recurso extraordinário de inconstitucionalidade, na medida em que, afinal vêm solicitar a nulidade da decisão por violação de princípios constitucionais que como sabemos é da competência do Tribunal Constitucional;                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       b) Que, não obstante a decisão do juiz de turno, estando o processo na fase de instrução preparatória o Magistrado do Ministério Público tem competência para alterar a decisão do juiz de turno;                                                                                                                                                                                                                                                                                          c) Que apesar de a discordância com os fundamentos não serem impugnáveis através desta providência não vemos qualquer violação por parte daquele Magistrado por sustentar a alteração da medida e a gravidade dos crimes justificam a medida de coacção tão severa;                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          d) Que mesmo que os Recorrentes tivessem alguma razão, o Meritíssimo juiz que conheceu do requerimento de habeas corpus escusou-se de conhecer, por não ser matéria impugnável por essa via… enquanto tribunal competente para conhecer do recurso, não nos podemos pronunciar sobre situações novas, sobre as quais a decisão sobre o recurso, não se pronunciou, a menos que, os Recorrentes viessem alegar da nulidade da decisão por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 668.º do CPC, o que não foi o caso e sublinhe-se, essas nulidades não são de conhecimento oficioso;                                                                                                                                                                                                                                                                                  e) …a enumeração do n.º 4 do artigo 290.º CPP é taxativa;                                                                                                                                                                                                                                                                                                   f) Por estes fundamentos e outros decidiu-se pela improcedência do recurso, condenando os réus na multa que se fixou em Kz. 35 000, 00 (trinta e cinco mil kwanzas);                                                                                                                                                           
  15. O Juiz Conselheiro Presidente ao referir no seu despacho que indeferiu o recurso de habeas corpus que o pedido efectuado pelos Recorrentes refere-se mais a um recurso extraordinário de inconstitucionalidade, na medida em que, afinal vêm solicitar a nulidade da decisão por violação de princípios constitucionais que “como sabemos é da competência do Tribunal Constitucional…”;
  16. … O Juiz Conselheiro Presidente acompanhou a decisão do Juiz Presidente da Comarca de Cazengo, pois se levassem em consideração os princípios constitucionais evocados, iriam declarar o acto do Ministério Público como sendo inconstitucional…;
  17. … o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo escusou-se de fazer julgamento justo e conforme a lei e a tutela dos direitos fundamentais dos Recorrentes, tendo assim violado os artigos 72.º e 29.º da CRA, sendo assim o despacho recorrido é inconstitucional;
  18.  A decisão que se recorre violou o princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRA, na medida em que admite que o Ministério Público revogue a decisão de um tribunal. Nos Estados de Direito, o Ministério Público ou outra entidade não tem competência para revogar a decisão de um tribunal… artigo 177.º da CRA;
  19. Refere o Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo que, apesar de a discordância com os fundamentos não serem impugnáveis através desta providência não vemos qualquer violação por parte daquele Magistrado por sustentar a alteração da medida e a gravidade dos crimes justificam a medida de coacção tão severa;
  20. A norma do n.º 2 do artigo 292.º do CPP vem intimidar qualquer requerente e retira ou limita a garantia constitucional consagrada no artigo 68.º da CRA, o que de certo modo levará muitos cidadãos a não querer impetrá-la com medo de lhe ser aplicada multa tal como aconteceu no presente caso.

Os Recorrentes terminaram as alegações requerendo a declaração de inconstitucionalidade da decisão recorrida e da norma do n.º 2 do artigo 292.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA), por intimidar e limitar o exercício do direito ao habeas corpus, estabelecido no artigo 68.º da CRA e consequentemente, a declaração de nulidade da multa aplicada aos réus na decisão recorrida.

O Processo foi a vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”. 

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º LPC, que dispõe “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

Os Recorrentes vêm impugnar do despacho do Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, sob os autos de recurso n.º 05/21, pelo que, têm legitimidade de interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é verificar se a decisão do Tribunal Supremo, que negou provimento a providência de habeas corpus e condenou os Recorrentes ao pagamento de multa fixada em Kz. 35 000, 00 (trinta e cinco mil kwanzas), no âmbito do Processo n.º 05/21, ofendeu princípios constitucionais.

V. APRECIANDO

Os Recorrentes invocam nas suas alegações que o despacho do Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, ofendeu o princípio do julgamento justo e conforme a lei e da tutela jurisdicional efectiva, artigos 72.º e 29.º da CRA; o princípio do Estado democrático de direito, artigo 2.º e 177.º da CRA; princípio da presunção de inocência, n.º 2 do artigo 67.º da CRA e o direito ao habeas corpus, artigo 68.º da CRA.

  1. Sobre a violação do direito ao julgamento justo e conforme a lei e da tutela jurisdicional efectiva

O Recorrente sustenta nas alegações que a decisão recorrida violou o princípio do julgamento justo e conforme a lei e tutela jurisdicional efectiva, referindo que “… o Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, indeferiu o recurso interposto com fundamento… que não se conforma com o Estado democrático de direito… o pedido efectuado pelos Recorrentes referem-se mais a um recurso extraordinário de inconstitucionalidade, na medida em que, afinal vêm solicitar a nulidade da decisão por violação de princípios constitucionais que é da competência do Tribunal Constitucional”.

Atentos a alegação supra, o Tribunal Constitucional tem um entendimento diferente e, concomitantemente, não acompanha o fundamento do despacho recorrido, visto que o sistema de fiscalização da constitucionalidade consagrado na Constituição da República de Angola (CRA) é o misto ou difuso, conforme estabelece o n.º1 do artigo 177.º da CRA.

No sistema de fiscalização misto, as questões de constitucionalidade devem ser apreciadas por todos os tribunais, sendo o Tribunal Constitucional a última instância a se pronunciar sobre matérias jurídico-constitucional, nos processos de fiscalização concreta. Ou seja, neste sistema, o Tribunal não exercita de modo exclusivo o controlo da constitucionalidade, visto que este compete a qualquer juiz.

No dizer de Adlezio Agostinho, o controlo difuso possibilita a qualquer órgão judicial, com atribuição da aplicação da lei a um caso concreto, o poder-dever de afastar a aplicação de uma lei, se considerar fora da ordem constitucional… permite a todo e qualquer juiz ou tribunal, o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma e, consequentemente, a sua não aplicação ao caso concreto levado ao conhecimento da corte (...). In Curso de Direito Constitucional, AAFDL EDITORA, Lisboa, 2019, pág. 419.

 A guisa de conclusão, o sistema de fiscalização consagrado na CRA, impõe a que todos os tribunais no exercício da sua função jurisdicional, devam assegurar a observância e aplicação das normas constitucionais, podendo afastar ou declarar a inconstitucionalidade de normas, decisões, que colidam com os princípios, direitos, liberdades e garantias estabelecidas na CRA, pelo que, o Tribunal Constitucional não acompanha os fundamentos do despacho recorrido, por estes estarem em desconformidade com o que estabelece o n.º 1 do artigo 177.º da CRA.

O fundamento invocado no despacho recorrido refere que “… o pedido efectuado pelos Recorrentes… consubstancia-se mais a um recurso extraordinário de inconstitucionalidade, na medida em que, afinal, vêm solicitar a nulidade da decisão por violação dos princípios constitucionais…”. Importa salientar que, o Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo não deixou de julgar o recurso, em face do qual os Recorrentes invocam a violação dos sobreditos princípios, pelo que, o equívoco quanto a competência dos tribunais para conhecer questões jurídico constitucionais, não prejudicou de per si a apreciação dos invocados princípios. 

O artigo 72.º da CRA consagra que “a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei”.

O direito a julgamento justo é um pressuposto do Estado democrático de direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Ela tem de assegurar um julgamento público e num prazo razoável e garantias de defesa material. Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, Editora Maiadouro – Maia, pág. 398.

Ora, para que o julgamento seja justo e conforme, é essencial que se verifique o pressuposto da imparcialidade e independência dos juízes, que o julgamento seja baseado na equidade e igualdade de armas, que as garantias processuais das partes sejam asseguradas durante todo processo, que seja dado o direito a assistência e patrocínio judiciário as partes, para que estas possam exercer na plenitude o direito a ampla defesa, o direito a recurso e que a demanda tramita e seja decidida segundo o direito constituído e compaginável com a Constituição.

Depreende-se dos autos que a decisão do tribunal a quo e do tribunal ad quem observaram os direitos e as garantias jurídico constitucionais retro mencionadas, tendo o julgamento decorrido dentro de um prazo razoável e com o rigor técnico jurídico que se espera das decisões proferidas pelos tribunais de um Estado democrático de direito.

Nesta conformidade, o Tribunal Constitucional entende que a decisão recorrida não violou o direito a julgamento justo e conforme, tendo este decorrido de acordo aos parâmetros constitucionais e legais.

No que respeita a violação do princípio a tutela jurisdicional e efectiva, estabelecido no artigo 29.º da CRA, que tem como enunciado “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência dos meios económicos”.

De acordo com Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, que fazem referência e chamam à colação os ensinamentos de Gomes Canotilho “… o acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar um prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de causas e outras. Este princípio, enquanto direito fundamental, dá a todos os cidadãos o direito de acesso ao direito e aos tribunais… qualquer cidadão que veja os seus interesses legalmente protegidos, violados, tem o direito de recorrer aos tribunais”. Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, pág. 274.

Tendo em consideração o exposto, verifica-se que os Recorrentes exerceram de facto o direito de acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, na medida em que os mesmos, impetraram junto do Tribunal da Comarca do Cazengo a providência de habeas corpus, inconformados com a decisão, recorreram ao Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 294.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA), os mesmos tiveram acesso ao duplo grau da jurisdição, ou seja, viram a sua causa apreciada por um tribunal de primeira e segunda instância.

Dos autos depreende-se que os Recorrentes não tiveram qualquer entrave ou interferência no decorrer do processo, este decorreu em observância ao princípio do contraditório, dentro de um prazo razoável, tendo o tribunal a quo e o tribunal ad quem decidido em observância ao princípio da legalidade, da imparcialidade, independência e com isenção.

Assim sendo, o Tribunal Constitucional entende que a decisão recorrida não violou o princípio em pauta, como os Recorrentes sustentaram as suas nas alegações.

  1. Sobre a ofensa do princípio do Estado democrático de direito e do artigo 177.º da CRA

Os Recorrentes alegam que “A decisão que se recorre ofendeu o princípio do Estado democrático de direito, consagrado no artigo 2.º da CRA, na medida em que admite que o Ministério Público revogue a decisão de um tribunal… Nos Estados de Direito o Ministério Público ou outra entidade não tem competência para revogar a decisão de um tribunal… artigo 177.º da CRA”.

Consta dos autos, que os Recorrentes foram detidos no dia 30 de Novembro de 2020 e no dia 07 de Dezembro de 2020, inconformados com a medida de coacção pessoal de prisão preventiva, imposta pelo Ministério Público, deram entrada de um requerimento de recurso, contra a medida de coacção a que foram submetidos no dia 15 de Dezembro de 2020.

Consta dos autos que no dia 20 de Dezembro de 2020, o Meritíssimo Juiz, emitiu um despacho em que ordenou a liberdade provisória dos arguidos, mediante pagamento de caução e apresentação periódica junto do tribunal.

No dia 03 de Fevereiro de 2021, os Recorrentes foram novamente submetidos a interrogatório pelo Ministério Público, este por sua vez, voltou a decretar a medida de coacção pessoal de prisão preventiva, com fundamento na violação das medidas impostas.

A questão que se coloca é a de saber se o Ministério Público podia alterar a medida de coacção imposta pelo juiz de turno, em sede de recurso, pela medida de coacção pessoal de prisão preventiva?

Vejamos,

Nos termos do n.º 1 do artigo 279.º do CPPA “quando, no caso concreto, considerar inadequadas ou insuficientes as medidas de coacção… e existirem fortes indícios da sua prática pelo arguido, o magistrado judicial competente pode, oficiosamente ou sob promoção do Ministério Público, impor-lhe a medida de prisão preventiva”.

Atentos a disposição legal supra, o órgão com competência para revogação e substituição das medidas de coacção são os magistrados judiciais, estes podem fazê-lo oficiosamente ou mediante requerimento do magistrado do Ministério Público.

Importa fazer menção que, não obstante, a exigência estabelecida na norma em apreciação e respondendo à questão colocada acima, o Ministério Público podia de facto alterar a medida de coacção imposta pelo juiz de turno, sem haver necessidade de requer a alteração junto daquele, visto que o processo ainda se encontrava na fase de instrução preparatória.

O n.º 1 do artigo 36.º da Lei n.º 25/15 de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), estabelece que “O Magistrado do Ministério Público pode impor ao arguido a medida de prisão preventiva…”.

Apesar de a lei em referência ter sido revogada, pela Lei n.º 39/20 de 11 de Novembro, o n.º 1 do artigo 4.º da CPPA, estabelece que “a lei processual penal é de aplicação imediata, mantendo os actos praticados no domínio da lei anterior à sua inteira validade”.

Nos termos da disposição supra, o n.º 1 do artigo 279.º do CPPA, apesar de conferir competência exclusiva aos magistrados judiciais para ordenar a medida de coacção de prisão preventiva, este imperativo legal, ainda não se aplica, uma vez que até ao presente momento, não houve lugar à inserção dos juízes de garantia na Comarca do Cazengo. Enquanto isso, o órgão com competência para ordenar a prisão preventiva, na fase de instrução preparatória continua a ser o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 39/20, de 11 de Novembro (Lei que aprova o Código do Processo Penal Angolano).

Neste sentido, concluímos que o Ministério Público tinha competência para alterar a medida de coacção imposta pelo juiz de turno (caução), uma vez que o processo encontrava-se na sua instância (instrução preparatória).

Por conseguinte, não é juridicamente rigoroso qualificar a decisão do Ministério Público, que alterou a medida de coacção, como um acto revogatório da decisão do juiz de turno, tal como articula e sugerem os Recorrentes, isto sim, constituiria um atentado à ordem constitucional desenhada para o poder judicial, e consequentemente para o Estado democrático de direito.

O que o Magistrado do Ministério Público fez foi alterar a medida de coacção por superveniência de exigência processual penal, diferente daquelas que estiveram na base da decisão do juiz de turno.

De salientar, que nada obstava a que o Ministério Público alterasse, conforme já foi referido acima, aliás, convém precisar que as medidas de coacção, uma vez impostas, não se tornam fixas ou invariáveis, podem sempre ser alteradas consoante a dinâmica da instrução ou circunstâncias processuais supervenientes requeiram.

Assim sendo, este Tribunal não verifica qualquer ofensa no que respeita ao princípio do Estado democrático de direito, consagrado no n.º 1 do artigo 2.º, tampouco o artigo 177.º, ambos da CRA.

  1. Sobre a ofensa do princípio da presunção de inocência

O n.º 2 do artigo 67.º da CRA dispõe, “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

O princípio da presunção de inocência é uma garantia processual que visa assegurar que nenhum cidadão possa ser considerado e tratado como culpado de ter cometido qualquer infracção ou delito, até que se esgotem todos os meios para a sua defesa, ou seja, até ao trânsito em julgado da sentença.

Atentos ao enunciado deste princípio, verifica-se a ofensa deste, quando há formação prévia de um juízo de certeza, antes de a decisão transitar em julgado.

Como referido acima, o Ministério Público, impôs aos Recorrentes a medida de coação de prisão preventiva, tendo fundamentado as razões pelas quais optou pela aplicação daquela medida. Tal facto não evidencia ou dá lugar a ofensa do princípio em epígrafe, dado que aquele órgão aplicou a medida que melhor se adequava ao caso, respeitando os pressupostos estabelecidos no n.º 2 do artigo 36.º da LMCPP.

Dos autos não se vislumbra qualquer indício de ofensa do princípio em epígrafe, visto que os Recorrentes tiveram um julgamento equitativo, em que puderam exercer, efectivamente, o direito do contraditório, da ampla defesa, do recurso, sem qualquer ingerência ou interferência.

Os Recorrentes só poderiam invocar a ofensa do princípio em pauta, caso o tribunal de primeira e segunda instância, formassem qualquer juízo de certeza sobre a questão de mérito, antes de a decisão transitar em julgado, o que não é o caso, dado que aqueles só se debruçaram sobre a providência requerida.

Pelo que, este Tribunal Constitucional entende que o despacho recorrido não violou o princípio posto em crise.

  1. Sobre o pedido de declaração de inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 292.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA)

Os Recorrentes requerem que o Tribunal Constitucional declare inconstitucional o n.º 2 do artigo 292.º do CPPA, alegando que a norma em causa, intimida e limita o exercício do direito ao habeas corpus, estabelecido no artigo 68.º da CRA, e consequentemente, declare a nulidade da multa aplicada aos réus pela decisão recorrida.

O habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, quando se constata uma prisão efectiva e ilegal.

Nos termos do n.º 1 do artigo 68.º da CRA “Todos têm direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal…” 

O n.º 4 do artigo 290.º da CPPA, estabelece os fundamentos para que se desencadeie a providência de habeas corpus, os fundamentos são taxativos, o que significa que só se pode fazer recurso ao habeas corpus, caso se verifique um dos casos descritos na norma em apreciação.

Compulsados os autos, constata-se que os Recorrentes impetraram a providência de habeas corpus, não já por terem verificado um dos pressupostos estabelecidos na norma supra mencionada, mas porque não concordaram com os fundamentos do despacho que ordenou a prisão preventiva, o que não é defensável por lei.

Em sede de recurso, o Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, constatou que os Recorrentes impetraram a providência de habeas corpus, com base num fundamento que não consta no leque dos pressupostos estabelecidos no n.º 4 do artigo 290.º da CPPA, pelo que, julgou improcedente a providência requerida e consequentemente, aplicou uma multa fixada em kz. 35 000, 00 (trinta e cinco mil kwanzas), nos termos do n.º 2 do artigo 292.º do CPPA.

O Tribunal Constitucional entende que o Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, não decidiu de forma arbitrária, sendo que este, em sede de julgamento do recurso, observou que os Recorrentes desencadearam de forma indevida a providência em pauta, ou seja, estes lançaram mão da providência de habeas corpus sem ter em atenção os fundamentos estabelecidos na lei, tal facto, deu lugar a que aquele aplicasse a multa, nos termos do n.º 2 do artigo 294.º CPPA.

Com relação ao pedido de declaração de inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 292.º CPPA, este não pode ser atendido em sede deste recurso, por não estarmos perante um processo de fiscalização abstracta, de realçar que o objecto de apreciação do recurso extraordinário de inconstitucionalidade são decisões que contrariam princípios, direitos, liberdades e garantias e não normas jurídicas.

Nesta perspectiva, o Tribunal Constitucional entende que o despacho recorrido não é inconstitucional, por não contrariar direitos, liberdades e garantias invocados pelos Recorrentes, nem qualquer princípio constitucional que coubesse conhecimento desta instância.

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 03/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda aos 24 de Fevereiro 2022.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria  Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)

Dra. Maria de Fátima de Lima de A. B. da Silva

Dra. Victória Manuel da Silva Izata