ACÓRDÃO N.º 726/2022
PROCESSO N.º 916-B/2021
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, os Juízes, Acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
AACA-Associação de Apoio a Criança Abandonada, Recorrente, com melhores elementos de identificação nos autos, inconformada com o Acórdão do Tribunal Supremo, prolactado na 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro sobre o Processo n.º 2142/14, que declarou extinta a instância por deserção, em virtude do pagamento extemporâneo do preparo inicial, veio dele interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, juntando, para tanto, em resumo, as seguintes alegações:
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”
Tendo havido esgotamento da cadeia recursória da jurisdição comum, imposto pelo § único do artigo supra, o Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º e do respectivo § único, da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
A Recorrente foi apelante no recurso ordinário que correu tramites em sede do Processo n.º 2142/14, tendo sido a parte vencida, assim sendo, tem legitimidade para interpor o presente recurso.
IV. OBJECTO
O recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade do Acórdão, retro identificado, da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que julgou deserto o recurso de apelação interposto com fundamento no pagamento extemporâneo do preparo inicial do recurso.
V. APRECIANDO
Nos processos cíveis é pelo teor das conclusões das alegações do Recorrente que, em regra, se delimita o objecto de apreciação do recurso, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso, assim importa saber:
A) Sobre a violação do direito ao duplo grau de jurisdição, artigo 29.º da CRA
Veio à terreiro a Recorrente sustentar que a decisão vertida no acórdão recorrido, ainda que conforme a solução legal infra- constitucional violou o seu direito ao duplo grau de jurisdição, e portanto está em desencontro com o actual regime constitucional.
Sublinhando que:
“É inconcebível que a Recorrente seja privada do acesso à justiça e ao direito pela suposta falta de pagamento de kz. 26 400,00 (vinte e seis mil e quatro centos kwanzas). Tal decisão representa um verdadeiro excesso, se comparado com a possível perda para a Recorrente”.
De realçar que o artigo 88.º do Código das Custas Judiciais estabelece que a parte responsável pelo pagamento das custas deve ser notificada do montante a pagar e do prazo para o pagamento, o que não foi cumprido no douto despacho de fls. 252 dos autos.
Numa apreciação estritamente legalista, é inquestionável a cominação decorrente da falta ou do pagamento tardio do preparo inicial em sede de recurso, já que tal consequência decorre do artigo 287.º, alínea c), conjugado com a primeira parte do n.º 1 do artigo 292.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC);
Porém, a deserção do recurso enquanto consequência da falta de pagamento do preparo, mostra-se excessiva, desproporcional e, por via disso, inconstitucional, porquanto, mostra-se antagónica aos princípios constitucionais que tutelam o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva, na dimensão do direito à dupla jurisdição, artigo 29.º da CRA”.
Vejamos,
Ora, nos autos consta que apresentado o requerimento de interposição de recurso, a 16.04.2012, a Recorrente não efectuou o pagamento do preparo inicial, nos termos estabelecidos no n.º1 do artigo 127.º do Código das Custas Judiciais.
Constatada a inércia do mandatário da Recorrente, o tribunal ad quem a fls. 252 dos autos exarou despacho a ordenar a Recorrente a efectuar o pagamento do preparo inicial acrescido de imposto de igual valor, ao abrigo do disposto no artigo 134.º do CCJ.
Notificada do despacho supra, a 20 de Novembro de 2014, conforme a certidão de fls. 254, a Recorrente apenas requereu o levantamento das guias de depósito a 25 de Novembro de 2014, conforme se vislumbra a fls. 255 dos autos.
Na sequência, a Recorrente efectuou o pagamento do preparo a 01 de Dezembro de 2014, depositou o comprovativo a 2 de Dezembro do mesmo ano.
O pagamento de que foi notificada a Recorrente deveria efectuar-se no prazo de 05 dias após a notificação, porém, efectuou o mesmo 11 dias depois.
Em face disto, com fundamento conjugado das disposições da alínea f) do artigo 287.º e n.º1 do artigo 292.º, ambos do CPC, a instância foi julgada extinta por deserção.
Que dizer?
A administração da justiça é um serviço público, mas que não é totalmente gratuito, exigindo sempre a comparticipação nos encargos pelas pessoas que recorrem aos tribunais.
Os processos cíveis estão sujeitos a custas, que compreendem o imposto de justiça, selos e encargos, solução que decorre do artigo 1.º do Código das Custas Judiciais.
“Isto quer dizer que não se exerce gratuitamente a actividade dos tribunais. Os litigantes têm de pagar certas taxas para que se ponha em marcha a máquina da justiça e têm de satisfazer, no fim do processo, as quantias de que o tribunal não se haja embolsado”(…) Professor Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado Vol. II. 3.ª edição, pág. 199.
Portanto, é imperioso precisar que a centralidade do direito de acesso à justiça e a tutela jurisdicional efectiva não se incompatibiliza com exigências de comparticipação nos encargos da administração da justiça que sejam impostas pela legislação ordinária.
À luz da legislação ordinária, vigora a regra sancionatória ou de cominação no artigo 292.º, n.º1,C.P.C segundo a qual “os recursos são julgados desertos pela falta de preparo ou custas no processo nos termos legais (entenda-se nos termos do C.C.J).
No caso vertente, por manifesta displicência do mandatário da Recorrente que não efectuou o pagamento do preparo dentro do prazo legal, primeiro aquando da apresentação do requerimento, segundo após a notificação para o pagamento do preparo inicial acrescido do imposto de igual montante.
Ao abrigo da legislação ordinária, o prazo legal para o pagamento dos preparos e das custas são peremptórios, cuja inobservância determina a preclusão do direito do interessado, conforme o n.º3 do artigo 145.º do C.P.C.
Razão por que, o Tribunal ad quem decidiu extinguir a instância do recurso por falta de pagamento do preparo inicial e do imposto, dentro do prazo.
Contudo, a Recorrente censura a constitucionalidade da decisão ora impugnada.
De facto, como se observa nas soluções legais acima, a cominação da deserção do recurso, por falta ou extemporaneidade do pagamento do preparo inicial e outras custas do processo encontra pleno acolhimento no direito infra- constitucional.
Com efeito, o Aresto recorrido revela-se de plena conformidade com o direito ordinário.
Todavia, os preceitos que suportaram a decisão são anteriores à Constituição de 2010, e o sistema difuso de controlo da constitucionalidade onera os magistrados judiciais, enquanto intérpretes e aplicadores do direito, a efectuar o controlo da conformidade constitucional, observando a necessidade de obstar a aplicar soluções legais contrastantes com a CRA, nos termos do n.º 1 do artigo 177.º da CRA.
No caso em análise, apesar do pagamento das custas ser uma obrigação justificada pelo benefício do serviço público, justiça e a ela não obstar a CRA, o mesmo não se pode dizer da sanção ou cominação da deserção pelo não pagamento do preparo inicial ou da sua extemporaneidade, que embora vigente no C.P.C, está em situação de inconstitucionalidade superveniente.
De resto, este Tribunal Constitucional em Acórdão 393/2016 sobre o Processo n.º 396-A/2013; consultável in www.tribunalconstitucional.ao
Sentenciou:
Porque a lei reguladora não é inequívoca no caminho que indica para lidar com a falta de pagamento…
Significa desde logo que há outras disposições a tomar em consideração que sustenta a não deserção do recurso, nomeadamente o artigo 116.º do CCJ quando estabelece que nenhum processo pode seguir em recurso sem estarem pagas as custas, deixando claro que estes podem ser pagos em momento posterior.
É entendimento do Tribunal Constitucional que a falta ou mora no pagamento das custas, vistos os princípios e valores que emanam da constituição não pode ser sancionada com deserção e o consequente sacrifício do direito fundamental ao recurso e tutela jurisdicional efectiva.
Esta sanção configura quebra da garantia constitucional de tutela jurisdicional efectiva, o que configura desrespeito ao estabelecido no artigo 29.º da CRA.
Solução semelhante encontramos nos sucessivos Acórdãos 387/2016; 617/2020 e 633/2020 emanados por este Tribunal Constitucional, consultáveis in www.tribunalconstitucional.ao
A sanção de deserção é havida por manifestamente excessiva e desproporcional quando ponderado com o direito que ele sacrifica, isto é, o direito ao recurso, privando os recorrentes da oportunidade de alegar, eventualmente juntar provas supervenientes ou argumentar em sentido contrário da decisão que é objecto de contestação em recurso, em suma o direito de ver reexaminada a decisão em que sucumbiu.
Para este tribunal é constitucionalmente intolerável e contrário ao direito à tutela jurisdicional efectiva extinguir o recurso por razões de custas ou despesas do processo, sendo que as mesmas podem ser satisfeitas em momento ulterior do processo.
O espírito da justiça pública e da tutela institucional dos direitos subjectivos consagrados na constituição colide com constrangimentos de ordem económica que encerram a flexibilidade de poderem ser satisfeitas de outro modo, sem que represente o gravame da deserção para parte que decai na demanda sem possibilidade de litigabilidade substantiva.
Neste contexto, este Tribunal é de entendimento de que a sanção da deserção imposta pelo aresto recorrido, no caso em análise, vulnerou não apenas o direito ao due process of law, mas também o direito a um julgamento justo e conforme nos termos do artigo 72.º. da CRA, sendo, portanto, inconstitucional.
B) Sobre a violação do dever de o Estado proteger a criança.
Argumenta ainda a Recorrente que “a actividade desenvolvida por ela reveste-se de grande importância, na medida em que concorre para salvaguarda do bem-estar de crianças sem lar, sendo que a manutenção da decisão prolactada, vai impactar negativamente na situação de inúmeras crianças abandonadas”.
Este Tribunal julga despropositado apreciar a eventual violação do dever de protecção da criança neste processo, por implicar pronunciamento sobre o mérito, o que seria desajustado com o objecto do processo.
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em:
Custas pela Recorrente nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – LPC.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda aos 24 de Fevereiro 2022.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Jacinto Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente – declarou-se impedida.
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite Silva Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima d´ A. B. da Silva
Dra. Victória Manuel da Silva Izata