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ACÓRDÃO N.º 728/2022

 

PROCESSO N.º 864-D/2020

(Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade – Habeas Corpus) 

Em nome do Povo, os Juízes, Acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional: 

I. RELATÓRIO

Kikoca da Silva André, melhor identificado nos autos, veio a este Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 41.º e da alínea a) do artigo 49.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado a 1 de Outubro de 2020, no Processo n.º 558/2020, que indeferiu a providência de habeas corpus com fundamento na falta de legalidade da prisão.

Por não se ter conformado com a decisão jurisdicional, o Recorrente interpôs o presente recurso e, em síntese, alegou o seguinte:  

  1. O direito do Recorrente de liberdade física foi coacrtado a partir do dia 1 de Novembro de 2019, há aproximadamente dois (2) anos, supostamente pelo cometimento do crime de homicídio voluntário simples, previsto e punível à luz do artigo 349.º do Código Penal (CP).
  2. No acto da detenção, em circunstância alguma lhe havia sido exibido qualquer mandado de captura ou de detenção que justificasse o desiderato executado pelas autoridades muito menos a entrega do duplicado se constatou.
  3. Os n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º (Direito à liberdade física e à segurança pessoal) da Constituição da República de Angola (CRA) afirmam expressamente que Todo o cidadão tem direito à liberdade física e à segurança individual e ninguém pode ser privado da liberdade, excepto nos casos previstos pela Constituição e pela lei.
  4. Transcorridos mais de três dias, apercebeu-se o Recorrente que a sua detenção foi efectuada por “Mandato de Captura”, emitido pela 8.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, mediante desfecho de uma sentença desconhecida por si, tão pouco houve notificação para o julgamento.
  5. Após prolacção da decisão, um dos co-réus interpôs recurso com efeito suspensivo, que beneficia igualmente o Recorrente, como estabelece o artigo 663.º do Código de Processo Penal (CPP). Por isso, o Recorrente intentou, a 23 de Janeiro de 2020, uma acção de habeas corpus, registada com o n.º 438/20, porque a privação da liberdade foi motivada por facto que não autoriza prisão.
  6. O artigo 315.º, § único, alínea b), descreve que só pode haver lugar à providência referida neste artigo quando se trate de prisão efectiva e actual, ferida de ilegalidade por qualquer dos seguintes motivos: ser motivada por facto pelo qual a lei não autoriza a prisão.
  7. O habeas corpus é uma medida genérica da tutela de liberdade pessoal contra as violações oriundas do abuso de poder, o oposto da narrativa acima exposta, que demostra claras evidências da violação do direito de liberdade.
  8. Prescreve o n.º 1 do artigo 658.º do CPP que têm efeito suspensivo do processo, os recursos interpostos das sentenças ou acórdão finais condenatórios (…). O Recorrente, ao beneficiar do recurso, nos termos do artigo 663.º do CPP, estando suspensa a decisão proferida pelo Tribunal a quo, não devia estar sob a medida de coacção pessoal de prisão preventiva.
  9. Privado da liberdade há dois (2) meses, descortina-se um excesso de prisão preventiva, pois, vencidos todos os prazos e limites previstos no artigo 40.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (LMCPP), deve o Recorrente ser imediatamente restituído à liberdade.
  10. O não acatamento da norma supra, implica subversão do direito de igualdade plasmado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 23.º da Constituição da República de Angola (CRA), com o teor “todos são iguais perante a Constituição e a lei. Ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito (…)”.
  11. Pela factologia, vem o Recorrente clamar ao Venerando Tribunal Constitucional que sejam impostas as regras consagradas pelos artigos 36.º, 23.º, 26.º e 29.º, todos da CRA, e o artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

O Recorrente termina solicitando a nulidade do acórdão recorrido, por violação do direito à liberdade e do princípio da igualdade.

Nesta instância, continuados os autos com vista ao Digno Magistrado do Ministério Público, pronunciou-se este nos seguintes termos:

“Ora compulsados os autos constata-se que, o recorrente foi julgado e condenado a revelia nos termos do art.º 571º, corpo, do C.P.P. vigente à data dos factos.

Nos termos do parágrafo 1º do referido artigo, o réu ora recorrente foi preso e notificado da sentença. 

O mesmo artigo no parágrafo 2.º reconhece ao recorrente faculdade de:

  1. Recorrer da sentença no prazo de cinco dias a contar da data de notificação ou,
  2. Requerer que se proceda o novo julgamento, se tiver sido condenado em pena maior, deduzindo logo a sua defesa ou indicando as provas que oferece.

Esses são os meios de defesa que a lei colocou a disposição do reu nos casos de condenação a revelia.”

Destarte, o Ministério Público requer o não provimento do recurso”.      

O Processo foi a vista do Ministério Público.     

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

A alínea m) do artigo 16.º e o n.º 4 do artigo 21.º, ambos da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), consagram o poder de apreciação do Tribunal Constitucional de recursos extraordinários de inconstitucionalidade interpostos de decisões dos demais tribunais após esgotamento da cadeia recursória e que ofendam princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição.

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto   do Acórdão do Tribunal Supremo que negou provimento à providência de habeas corpus, sendo por isto certo, ser este Tribunal Constitucional competente para apreciar o aresto, nos termos da alínea a) do artigo 49.º, conjugado com o artigo 53.º, ambos da LPC. 

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é arguido no processo n.º 3155, que corre seus trâmites no Tribunal Provincial de Luanda e autor da acção ordinária de providência de habeas corpus intentada no Tribunal Supremo cf. fls. 2 dos autos, tendo, por isso, interposto o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, como expressão do interesse directo em demandar.

Deste modo, o Recorrente tem legitimidade, nos termos do, n.º 1 do artigo 26.º, conjugado com o n.º 1, do artigo 680.º do CPC, aplicável em virtude do princípio jurídico-constitucional da subsidiariedade do Código de Processo Civil aos processos do Tribunal Constitucional, consagrado no artigo 2.º da referida LPC.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto verificar se a decisão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo ofendeu e ou violou os princípios e os direitos previstos nos artigos 23°, 29° e 36.º da CRA.

V. APRECIANDO

O presente recurso de inconstitucionalidade foi interposto da decisão final do Tribunal Supremo, que negou, a Providência de habeas corpus, nos termos da alínea e) do artigo 3.º e da alínea a) do artigo 49.º, ambos da LPC, pelo que, cabe a este Tribunal Constitucional, porque competente apreciar o aresto. 

O habeas corpus é uma providência com dignidade constitucional consagrada na Constituição da República de Angola e traduz-se processualmente numa providência excepcional e de modo célere, contra as situações anómalas de privação de liberdade, consubstanciadas no abuso de poder perpetrado por órgãos da função judiciária do Estado, através da imposição de prisão ou detenção ilegal de qualquer cidadão, e tem por finalidade a reposição da legalidade mediante uma decisão tuteladora do direito fundamental à liberdade física ou de locomoção dos cidadãos.

Tendo sido negado provimento a providência de habeas corpus, o Recorrente veio em recurso extraordinário de inconstitucionalidade alegar a fls. 25 a 28 dos autos que a decisão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo ofendeu princípios e violou direitos contidos nas disposições legais dos artigos 23.º (Princípio da igualdade), 29.º (Acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva) e 36.º (Direito à liberdade física e à segurança pessoal), todos da CRA.

Impõem, pois, a Constituição e a LPC que cabe ao Tribunal Constitucional o dever de sindicar a constitucionalidade da decisão recorrida quanto a ofensa e ou a violação dos princípios e direitos alegados pelo Recorrente no Processo n.º 558/2020.

Vejamos pois se lhe assiste razão para:

A) Sobre a Ofensa ao Princípio da Igualdade.

Entende, o Recorrente que a decisão do Tribunal ad quem ofendeu o princípio da igualdade, na medida em que o co-réu encontra-se numa condição diferente da sua, por ter beneficiado do efeito suspensivo da decisão condenatória do Tribunal a quo.

De facto, ao ter sido expedido o mandado de captura do agora Recorrente, e recolhido a prisão para cumprimento efectivo da pena, este não beneficiou do efeito suspensivo da mesma.

É entendimento deste Tribunal, que tendo a decisão condenatória sido objecto de recurso, admitido e com efeito suspensivo, os co-réus não deveriam estar em situações distintas, como se verifica.

Aliás, estando o co-réu em prisão preventiva à data da prolacção da sentença, o efeito suspensivo do recurso interposto, que sustou os termos do processo, não teve para este alguma utilidade, ao contrário dos efeitos que teve para o Recorrente, que passou ao cumprimento efectivo da pena.

Por este facto, andou mal a Câmara Criminal do Tribunal Supremo, ao decidir que, tendo o Recorrente sido julgado a revelia, não beneficiava dos efeitos do recurso colocando-o em situação de desigualdade.

Como sustenta, a doutrina de J. J. Gomes Canotilho, que existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (proibição do arbítrio) tratadas como desiguais. Por outras palavras, o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária. O arbítrio da desigualdade seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da igualdade, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, 2003, pág. 428

Neste sentido e por este facto, corresponde à verdade constitucional a alegação do Recorrente segundo a qual a decisão, da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, ofendeu o princípio da igualdade, consagrado no artigo 23.° da CRA, por não ter beneficiado do efeito suspensivo da pena, condição distinta do co-réu.

B) Sobre a Ofensa ao Princípio do Acesso ao Direito e a Tutela Jurisdicional Efectiva

O Recorrente sustenta nas suas alegações que a decisão recorrida ofendeu o princípio do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva ao referir nas conclusões das suas alegações que… Pela factologia, vem o Recorrente clamar ao Venerando Tribunal Constitucional que sejam impostas as regras consagradas pelos artigos 36.º, 23.º, 26.º e 29.º, todos da CRA, e o artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Quanto a alegada ofensa ao princípio do acesso ao direito e da tutela efectiva, previsto no artigo 29.° da CRA, entende este Tribunal, que não procede a alegação do Recorrente, em concreto por ser um enunciado oco e desprovido de qualquer fundamentação.

Sendo uma garantia constitucional, o princípio da garantia da tutela efectiva resulta na pratica, na independência dos juízes, na realização de um  julgamento justo e em prazo razoável da realização do pleno contraditório e de decisões com o rigor técnico de que se espera dos órgãos de justiça.

Infere-se dos autos que, o Recorrente não teve qualquer constrangimento no decorrer do processo, aliás a sua condição de revel, enfraquece as pretensões do que alega, porquanto, estando em tempo, como refere no ponto 4 das alegações, deixou de exercer as garantias processuais que lhe assistiam no momento da sua detenção, nos termos do parágrafo 2.° do art.°571 do CPP, não configura ofensa ao princípio Constitucional em causa, facto que não pode ser imputável ao Tribunal ad quem.

Recorda-se, ainda, que o Recorrente, porque inconformado com a sua condição interpôs junto do Tribunal Supremo, a providência de habeas corpus, julgada em tempo útil, pelo que não se vislumbra qualquer interferência prejudicial na plena realização dos seus direitos constitucionais neste capítulo.

C) Sobre a Violação do Direito à Liberdade Física e à Segurança Pessoal

O Recorrente foi condenado a revelia no processo n.º3155 cf. fls. 62 à 66. Decorrente da decisão foi expedido o mandado de captura que culminou com a sua detenção no dia 1 de Novembro de 2019.

Alega o Recorrente estar na condição do cumprimento efectivo de uma pena de forma ilegal porque, tendo sido admitido o recurso com efeito suspensivo, interposto por um dos co-réus, serem os efeitos deste por si aproveitados.

Ora vejamos;

A decisão que nega provimento a providência de habeas corpus é fundamentada na interpretação que faz a Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que o Recorrente, condenado a revelia não goza dos benefícios processuais resultantes da interposição do recurso com efeito suspensivo.

Entendeu a Câmara Criminal do Tribunal ad quem, secundar a posição do Ministério Público ao reafirmar na sua decisão, que assistia ao Recorrente, tão somente os benefícios processuais do parágrafo 2.º do artigo 571.º do CPP, ignorando a regra processual imposta pelo art.° 663.º do mesmo diploma.

O artigo 663.º do C.P.P. estabelece que “se responderem diversos réus e for interposto recurso da decisão final, ainda que só relativamente a alguns deles, o tribunal de recurso conhecerá da causa em relação a todos”.

Ignorou, ainda, aquela decisão, a certidão junta aos autos e que constitui fls 67, que no terceiro parágrafo diz “o presente acórdão não transitou em julgado, por ter sido dele interposto recurso pelas partes”.

Ora, o trânsito em julgado é uma garantia do processo penal estabelecida no n.º2 do art.º 67.º da Constituição,” e cita-se “Presume-se inocente todo cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

De facto, a prisão seria legal no caso em concreto, se assente em decisão condenatória transitada em julgado que, a tornaria definitiva e lhe conferiria exequibilidade.

Neste sentido, entende este Tribunal, que interposto recurso e admitido com efeito suspensivo, a decisão do Tribunal a quo, o Tribunal Provincial de Luanda, nunca deveria ter sido executada, quer quanto ao réu preso, quer quanto ao réu revel que daquele se beneficia, pelo que, não faz sentido que o mandado decorrente desta decisão fosse cumprido, porque a todo tempo inexistente para os efeitos daquela decisão suspensa.  

Ao ter sido executado o mandado de captura decorrente daquela decisão, limitou-se com aquela decisão, o direito à liberdade física do Recorrente e o colocou na condição de cumprimento de uma decisão eivada de um vício, o da legalidade que dimana do direito à liberdade física consagrado no n.°2 do artigo 36° da CRA, segundo o qual “ninguém pode ser privado da liberdade, excepto nos casos previstos pela Constituição e pela lei”

Nestes termos,

DECIDINDO      

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes do Tribunal Constitucional em: 

Sem custas, nos termos do artigo 15.o da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 24 de Fevereiro de 2022.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dr. Carlos Alberto Burity da Silva 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira 

Dr. Gilberto de Faria Magalhães (Relator)

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango 

Dra. Maria de Fátima de Lima d´ A. B. da Silva 

Dra. Victória Manuel da silva Izata