ACÓRDÃO N.º 787/2022
PROCESSO N.º 853-A/2020
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Alberto Miguel Manuel Pinto, Recorrente, com os demais sinais de identificação nos autos, veio junto do Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal Supremo proferido na 1.ª Secção da Câmara Criminal, no âmbito do Processo n.º 3764/2019.
O Acórdão em pauta confirmou a decisão do Tribunal a quo que condenou o Recorrente a 8 anos de prisão maior e, solidariamente, a indemnizar o montante de 68.497.926,00 (sessenta e oito milhões, quatrocentos e noventa e sete mil, novecentos e vinte e seis kwanzas) à favor da vítima, pelo crime de burla por defraudação.
Discordando da decisão, o Recorrente veio junto do Tribunal Constitucional interpor o presente recurso, arguindo, em síntese, as seguintes inconstitucionalidades sobre o Acórdão:
O Recorrente, conclui pedindo que seja declarado inconstitucional o Acórdão recorrido.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o requisito do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns, conforme estatuído nas disposições conjugadas do parágrafo único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, pelo que tem o Plenário do Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente é arguido no processo n.º 3764/2019, no qual foi prolactado o Acórdão recorrido, pelo que tem legitimidade para interpor o presente recurso.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto apreciar a conformidade constitucional do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que negou provimento ao recurso e confirmou a sentença condenatória do Tribunal a quo.
V. APRECIANDO
Atento às alegações, infere-se que o Recorrente exorta o Tribunal Constitucional a declarar inconstitucional o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo prolactado no Processo n.º 3764/2019, por entender que ao confirmar a decisão do Tribunal a quo, vulnerou o princípio do in dubio pro reo; o princípio do direito ao julgamento justo e conforme; o dever de fundamentação; o princípio do dispositivo; da razoabilidade, da proporcionalidade e da proibição de excessos; e, por último, o princípio da legalidade.
a). Sobre a violação do princípio do in dubio pro reo
Este princípio é um dos corolários do princípio constitucional da presunção de inocência, vertido no n.º 2 do artigo 67.º, e traduz-se num princípio central na valoração da prova pelo julgador, no sistema processual penal ínsito num Estado democrático de direito.
O princípio do in dubio pro reo significa que sempre que o tribunal não consiga provar ou tenha dúvidas, sobre uma ou várias condutas delituosas de que o arguido vem acusado, deve decidir a favor deste, julgando como não provada a acusação respectiva.
Isto é, diante de um non liquet - questão nubilosa ou duvidosa dos autos que seja objecto do processo da questão probanda- a dúvida deve ser valorada a favor do arguido.
Neste ínterim, assinalam com bastante eloquência Jorge Miranda e Rui Medeiros “A dúvida sobre a culpabilidade do arguido é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece (…) a final (…). Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração do ónus da prova a seu cargo, baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição págs. 724 -725.
O Recorrente invoca ter havido violação deste princípio sublinhando que o julgamento a que foi submetido e de que resultou a condenação é um exemplo flagrante de que muita dúvida pairou sobre a veracidade dos factos a si imputados.
Adita ainda que, o princípio em pauta “consagra a necessidade de se observar claros e inequívocos indícios de autoria e de materialidade dos factos, remete a necessidade de não subsistir a mais ínfima réstia de dúvida na aplicação de qualquer medida que venha a privar a liberdade do cidadão. Como se pode ver no Acórdão recorrido, o próprio tribunal manifesta dúvidas pelo que embarca em suposições como se de uma peça de ficção se tratasse”.
Com o resguardado respeito, o Recorrente não logrou evidenciar em termos concretos sobre que questões o Tribunal ad quem decidiu imbuído de dúvida razoável, que justificasse uma decisão absolutória. Ao invés, socorreu-se de argumentos perfunctórios e bastantes abstractos para suportar a tese da violação do princípio do in dubio pro reo.
Malgrado, compulsados os autos de fls. 1545 a 1549, que consigna o Acórdão recorrido, nada ressalta que o Tribunal ad quem decidiu baseado em dúvida, suposições ou hesitação quanto à culpabilidade do aqui Recorrente.
Ademais, este Tribunal não acompanha o entendimento manifestamente equivocado do Recorrente sobre o alcance do princípio do in dubio pro reo, quando sugere que na valoração da prova não pode subsistir a mais ínfima réstia de dúvida da culpa do arguido (…).
Este princípio exige sim que a convicção sobre a culpabilidade do arguido esteja assente e sustentada numa verdade objectiva e motivada pelos elementos probatórios constantes do processo e acopladas pelas regras da experiência comum.
Com efeito, a verdade material imposta não reivindica uma verdade que seja de dimensão metafísica ou ultra-humana, excomunal, como sugere o Recorrente.
Quando se afirma que na dúvida decide-se à favor do arguido, não se está a sustentar a tese de qualquer dúvida, mesmo a mais ínfima ou insignificante diante dos elementos objectivos do processo. A dúvida que conduz ao dever de absolvição do arguido é apenas aquela que seja razoável e acessível a qualquer pessoa mediana e sensata que quando confrontada com os factos e as provas do processo fique dividida entre a inocência e a culpabilidade do arguido.
Dos autos não resultam elementos que objectivamente suscitem que o tribunal decidiu imbuído de dúvidas objectivas quanto a culpabilidade do Recorrente em relação a sua participação nos crimes de que foi condenado.
Com efeito, este Tribunal entende que a pretensa violação do princípio do in dubio pro reo nada mais é do que a discordância em relação à condenação, estando esta ancorada em provas que não suscitam dúvida razoável da culpabilidade do arguido, designadamente: ter sido um dos mobilizadores de interessados na compra de divisas; ter sido ele e outros arguidos que indicaram a ofendida, a coordenada bancária onde foi depositada uma parte do dinheiro dado por burlado.
Nesta esteira, este Tribunal improcede a aludida violação do princípio do in dubio pro reo.
b). Sobre a violação do direito ao julgamento justo e conforme
O artigo 72.º da CRA, dispõe que “a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo e conforme a lei”.
O disposto supra consagra um princípio garantístico de expansão assaz expressivo no processo penal, que tem como postulados o direito a ser julgado por um tribunal imparcial, independente e competente, a exigência de um Juiz natural; que o julgamento seja baseado na equidade e igualdade de armas, o direito de indicar testemunhas; o direito à interrogar ou fazer interrogar a testemunha indicada pela acusação; o direito a não auto-incriminação; o direito a não ser punido com medida mais gravosa do que a prevista por lei à data da infracção; o direito a que as garantias processuais das partes sejam asseguradas durante todo processo, que seja dado o direito a assistência e patrocínio judiciário às partes, para que estas possam exercer na plenitude o direito a ampla defesa; o direito a recurso e que a demanda tramite e seja decidida dentro dos parâmetros constitucionais e legais.
O primado do julgamento justo e conforme está compenetrado com a dimensão axiológica do processo penal de a todo tempo assegurar-se um equilíbrio entre a acusação e a defesa, impedindo que o arguido seja relegado a uma posição de desvantagem relativamente à acusação, por outro lado, impõe-se que o tribunal seja constituído e funcione regularmente segundo o direito.
Argumenta o Recorrente que o Tribunal ad quem violou o princípio do direito a um julgamento justo e conforme, consignado no artigo 72.º da CRA, ao decidir como decidiu, acompanhando a decisão do Tribunal ad quo, baseando-se fundamentalmente em prova indiciária para condenar o Recorrente, pois a quem coube acusar não apresentou provas, não caucionou um juízo de certeza próximo da verdade material.
Vejamos,
No caso vertente, o Tribunal a quo condenou o aqui Recorrente pelo crime de burla, na venda de dólares norte americanos, com o seguinte fundamento: justificou-se que foi um simples intermediário, convenceu as ofendidas que o negócio era seguro. Nega ter-se beneficiado de algum valor. No entanto, ficou provado que foi ele e o co-Réu Bernardo Marques que forneceram a coordenada bancária às ofendidas. Não conseguiu justificar como teve acesso às referidas contas.
Por razões de imediação, em matéria de prova, vigora no sistema processual penal angolano os princípios da liberdade e legalidade da prova; e o princípio da livre apreciação da prova. O primeiro significa que são admitidos todos os meios de prova não proibidos por lei; o segundo admite ao Juiz retirar das provas produzidas o valor probatório que a sua convicção ou consciência lho orientasse, desde que não o faça de forma arbitrária.
Constata-se a fls. 1429 dos autos, inequivocamente, que a convicção formada pelo Tribunal a quo, e confirmada pelo Tribunal ad quem, foram sustentadas sobretudo pelas declarações prestadas pelas ofendidas nos autos, a fls. 1428-1432, e do próprio Recorrente que teve acesso a uma das contas na qual foi depositada uma fracção do dinheiro considerado burlado, sendo que as declarações são meios de prova não proibidos por lei, nada obsta, nos termos da CRA que a condenação se funde naquele meio de prova.
Nesta esteira, este Tribunal não corrobora com a afirmação veiculada pelo Recorrente, de que foi condenado apenas com base numa prova indiciária, sem que o tribunal tenha chegado a um juízo de certeza.
Com efeito, importa salientar que o entendimento jurisprudencial que tem feito carreira é que não compete ao Tribunal Constitucional proceder à valoração da prova produzida na jurisdição comum, no sentido de declarar uma prova como bastante ou temerária para condenar o arguido.
Esta instância limita-se a sindicar se a condenação está estribada em provas produzidas no processo, ou se a prova admitida é ilícita, no sentido de ter sido produzida ao arrepio da lei.
Nesta conformidade, improcede a inconstitucionalidade invocada sob alegada violação do princípio do julgamento justo e conforme.
c). Sobre a violação do princípio do dever de fundamentação
Sustenta o Recorrente que o Acórdão em crise está eivado de vício de carência de fundamentação, alegando para o efeito que a decisão judicativa-decisória não reveste de fundamentação, uma vez que não justifica, não explicita os pressupostos de facto e de direito que lhe são subjacentes, fazendo suas as palavras do Ministério Público e ignorando os argumentos da defesa.
Frise-se, contudo, que pese embora não consagrado de forma expressa na CRA, o dever de fundamentação das decisões judiciais é uma injunção constitucional, que opera como um dever-ser constitucional e uma garantia integrante do princípio do Estado Democrático e de Direito, nos termos do artigo 2.º densificado legalmente no prescrito no artigo 158.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ao Processo Penal por remissão do § único do artigo 1.º do Código de Processo Penal, então em vigor.
Ao abrigo do artigo 158.º do CPC sob a epígrafe “dever de fundamentar as decisões”, resulta que:
1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
Do cotejo das disposições constitucional e legais referidas, fundamentar as decisões judiciais consiste em enunciar expressa e claramente as razões e o raciocínio seguido pelo tribunal para tomar a decisão e dotá-la de certo conteúdo.
A fundamentação consiste em deduzir, de forma explícita, da decisão as premissas fácticas, probatórias e jurídicas em que assenta, de modo que o destinatário possa perceber o exercício mental, ou seja, o raciocínio seguido pelo julgador.
Tal como ensina Eduardo Couture “a fundamentação permite fiscalizar a actividade intelectual desenvolvida pelo juiz frente ao caso concreto que foi chamado a resolver de forma a apurar-se se a sua decisão foi um acto meditado, proveniente do estudo atento das circunstâncias que envolvem a questão, e não um acto arbitrário”. In Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 3.ª edição, Tellos editora, 1994, pág. 286.
A ausência de fundamentação de facto e de direito em uma decisão judicial é sancionada com nulidade, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC.
Com efeito, como bem sublinha Fernando Amâncio Ferreira, “a falta de motivação susceptível de integrar a nulidade da sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos, quer estas respeitem a factos, quer ao direito.
A motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a, consequentemente, ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso”. In Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, Almedina, 2009, pág. 55.
Importa analisar se a decisão recorrida está inquinada de nulidade, por estar totalmente destituída da exposição das motivações de facto e de direito que motivaram a decisão, como defende o Recorrente.
Não é curial reproduzir toda factualidade vertida no Acórdão recorrido, autuados de fls. 1545 a 1548, de cuja leitura se constata que o mesmo dispõe de uma ordem de fundamentação de facto e da subsunção destes factos ao direito.
Vejam-se alguns excertos:
“Os réus (Bernardo António Marques, Alberto Miguel Manuel Pinto e Manuel Rosélio da Silva Escórcio) durante a fase de instrução preparatória negaram os factos a eles imputados e foram unânimes em afirmar que não se conhecem.
Porém, seus argumentos são abalados pelas declarações da ofendida Ana Pande que, a fls.747, afirmou que por volta das 9 horas do dia 29 de Abril de 2017 os réus, juntos, deslocaram-se às imediações do supermercado Jumbo ao seu encontro e com eles conversou sobre o negócio. Aditou ainda que no momento que se dirigiu ao banco para proceder ao depósito fazia-se acompanhar dos réus (…)”, vide fls. 626, 712, 719 e 818.
Na subsunção jurídico-penal consta que:
“Compulsados os autos, constata-se que os réus engendraram com dolo a sua acção, recebendo dinheiro das mãos da ofendida, usando artifício fraudulento de que conseguiriam obter divisas em dólares norte americanos através de um leilão no Banco Nacional de Angola.
Assim, com o comportamento acima descrito cometeram os réus um crime de burla por defraudação p. e p. pelas disposições combinadas dos artigos 451.º n.º 3 e 421.º n.º 5, ambos do Código Penal “.
Destes excertos extraídos do Acórdão, não deixam dúvidas de que o Acórdão consigna a exposição das razões de facto e de direito que suportam a decisão, pelo que não se comprova a omissão que inquinaria o aresto em crise do vício de falta de fundamentação.
Assim, este Tribunal dá como improcedente a arguida inconstitucionalidade por falta de fundamentação.
d). Sobre a violação do princípio do dispositivo
Sustenta, para tanto, o Recorrente que o Acórdão feriu o princípio do dispositivo, uma vez que adoptou uma postura de non facere perante o conhecimento de flagrantes violações dos direitos, liberdades e garantias do Recorrente, como de locomoção e o da defesa, que deviam ser de conhecimento oficioso por força do n.º 3 do artigo 26.º da CRA.
Do exposto argumentativo do Recorrente não se consegue deduzir, com clareza, de que violações em concreto se refere o Recorrente, nem em que medida haveria violação do princípio dispositivo, que é próprio do processo civil, num processo de natureza penal.
Não obstante, no que concerne as alegadas violações aos direitos de locomoção e de defesa, por alegada inércia, deduz-se que quanto a violação do seu direito de ir e vir, quer o Recorrente impugnar a prisão preventiva que lhe foi submetida antes do julgamento. Porém, estando em apreciação o recurso do processo principal, afigura-se-nos inoportuno apreciar a legalidade da prisão preventiva a que estava sujeito.
Para o efeito, a CRA e a lei asseguravam-lhe mecanismos legais autónomos, próprios e expeditos para impugnar a pretensa violação do seu direito à liberdade física, como é o habeas corpus, ao qual poderia ter feito recurso à data.
No que concerne à violação do direito de defesa, o Recorrente cingiu-se em arguir a violação de forma abstracta, sem precisar em que circunstância lhe foi obstaculizado o direito de defesa.
Este Tribunal cuidou de analisar, oficiosamente, o processo e desta análise não constatou a ocorrência de qualquer cerceamento ao direito de defesa do Recorrente, pelo que dá como improcedente esta inconstitucionalidade invocada.
e). Sobre a violação do princípio da legalidade
Ainda em sede de alegações, o Recorrente suscita a inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal ad quem sob alegada violação do princípio constitucional da legalidade, argumentando que o Tribunal a quo não se pautou por critérios exclusivamente jurídico-legais perante o reconhecimento da deficiente decisão do juiz de turno, pois, não determinou a reposição da legalidade face às inúmeras violações da Lei Processual Penal.
Ora, o princípio da legalidade está consagrado no n.º 2 artigo 6.º da CRA, nos termos do qual se postula “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar a lei”. Trata-se de uma disposição fundante da CRA com irradiações para o poder Judicial, designadamente, nos artigos 175.º, e n.º 1 do artigo 177.º, ambos da CRA.
O princípio da legalidade é um instrumento de limitação e orientação da actuação de todos os órgãos do poder público, que serve, outrossim, de baluarte de protecção dos cidadãos contra arbítrios do Estado.
Para o caso sub judice, o princípio da legalidade, nas vestes de legalidade processual penal, impõe ao julgador uma actuação pautada no direito processual constituído e conforme à constituição, sendo vedada qualquer acção ou omissão não prevista na lei.
Mais especificamente, impõe aos tribunais que fiscalizem e garantam que o processo penal tramite segundo os cânones tabulados e que nenhum acto, diligência ou omissão ocorra sem que a lei o preveja.
O Recorrente, por seu turno, considera que o Acórdão recorrido contende com o princípio da legalidade por confirmar a decisão do Tribunal a quo que não se determinou em repor a legalidade em face às inúmeras violações da Lei Processual Penal pela decisão do juiz de turno.
O juiz de turno foi instituído para fiscalizar jurisdicionalmente as medidas de coacção impostas pelo Ministério Público, isto ao abrigo do artigo 3.º da Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal, então vigente.
Ora, percebe-se com evidência que o Recorrente suscita a violação do princípio da legalidade impugnando a medida de coacção validada pelo juiz de turno no Tribunal a quo, e suscitando o Tribunal Constitucional a ajuizar a constitucionalidade da decisão do juiz de turno.
Não é, francamente, avisado que seja apreciada a legalidade da decisão do juiz de turno, por não constituir objecto do recurso em equação, conquanto, o objecto do presente recurso não são as medidas cautelares, mas antes a conformidade constitucional do Acórdão recorrido que confirmou a condenação do aqui Recorrente.
Nesta conformidade, improcede a arguida inconstitucionalidade do aresto do Tribunal ad quem por violação do princípio da legalidade.
f). Sobre a violação dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da proibição de excesso
Entende o Recorrente que ao confirmar a decisão do Tribunal a quo, o Acórdão recorrido violou os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da proibição dos excessos e da necessidade, pois pela análise dos factos ditos e comprovados pela leitura atenta dos autos, depreende-se que a sanção é absolutamente desnecessária, visto que outra responsabilização cumpria os fins visados.
“Na sua utilização mais comum, ao princípio da idoneidade (também designado de adequação/razoabilidade) é atribuído o sentido de exigir que as medidas restritivas em causa sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição.
Ao princípio da indispensabilidade ou da necessidade o sentido de que, de todos os meios idóneos disponíveis e igualmente aptos a prosseguir o fim visado com a restrição, se deve escolher o meio que produza efeitos menos restritivos; por sua vez o princípio da proporcionalidade em sentido restrito respeitaria à justa medida ou a relação de adequação entre bens e interesses em colisão ou, mais especificamente, entre o sacrifício imposto pela restrição e o benefício por ela prosseguido”. Jorge Reis Novais. In Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, págs.171-191.
O Recorrente questiona a constitucionalidade da pena que lhe foi aplicada, reputando-a desproporcional, desnecessária e não razoável, por entender que outra medida penal menos gravosa cumpriria igualmente o fim visado.
Analisada a arguição do Recorrente convoca o Tribunal Constitucional a reapreciar o mérito da pena aplicada, suscitando um exercício judicativo de graduação ou doseamento da pena que deveria ter sido aplicada.
Contudo, não é competência do Tribunal Constitucional aferir se a sanção criminal aplicada é excessiva ou não, ou sob os auspícios dos princípios invocados fazer um juízo de mérito de compatibilidade entre a culpa e a pena concreta aplicada ao arguido. Admitir isto, seria converter esta Corte numa terceira ou quarta instância de recurso da jurisdição comum e extrapolar a competência do Tribunal Constitucional estabelecida nos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, que se circunscrevem em administrar a justiça em matéria jurídico-constitucional.
Como ensina Carlos Blanco de Morais “O Tribunal Constitucional (…) deve abster-se de julgar, ou mesmo de se pronunciar sobre o mérito da questão de fundo que está a ser julgada no processo principal, já que lhe cumpre, apenas, administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (…) Não opera, deste modo como uma instância suprema de mérito, ou um tribunal de super-revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo (…)”. In Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do Contencioso Constitucional, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 619.
Nesta esteira, este Tribunal abstém-se de se pronunciar sobre a justeza da pena imposta ao Recorrente e, por conseguinte, dá como improcedente as inconstitucionalidades invocadas neste conspecto.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: Negar provimento ao presente recurso, por não se verificar a violação de nenhuma disposição constitucional.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 13 de Dezembro de 2022.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata