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ACÓRDÃO N.º 791/2022

PROCESSO N.º 949-C/2022

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Henriques Gongo Diogo Manuel, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei do Processo Constitucional (LPC) interpor o recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 402/16.

Consta dos autos, que o Recorrente intentou uma acção de recurso em matéria disciplinar, sob a forma sumária, contra a empresa SOGESTER-Sociedade Gestora de Terminais, S.A., em virtude de ter-lhe sido instaurado um processo disciplinar que culminou com o seu despedimento, a qual a 2.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda julgou improcedente por entender que o Recorrente colocou em causa, de forma irremediável, a relação de confiança que deve existir entre empregador e trabalhador, tornando imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo jurídico-laboral que mantinha com a empresa.

Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal Supremo por entender que a decisão de primeira instância violou o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil (CPC), tendo a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo confirmado a decisão recorrida, por não existir contradição entre os fundamentos e a decisão do Juiz da causa, isto é, a decisão então recorrida não está oposta aos fundamentos ali consignados, confirmando no todo o aresto, por considerar procedente a justa causa para o despedimento disciplinar.

Com a interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade e convidado apresentar as alegações nos termos do artigo 45.º da LPC, fê-lo, em síntese, com os fundamentos seguintes:

  1. A razão e a necessidade deste recurso prendem-se com a sentença proferida pelo tribunal a quo e confirmada pelo Tribunal Supremo, o que constitui uma violação dos direitos do Recorrente plasmados na CRA.
  2. O princípio do contraditório (previsto no artigo 3.º do CPC, conjugado com o artigo 174.º da CRA) atribui à parte, não só o direito ao conhecimento de que contra ele foi instaurado processo disciplinar, mas também o direito de ter acesso à convocatória, devendo esta conter todos os seus elementos necessários para que exerça a sua defesa, o que não se verificou no caso concreto como infra se verá, pois, a convocatória faz menção a uma infracção que ocorreu há mais de um ano. Nenhum trabalhador deve ser punido por infracção ocorrida há mais de um ano, ferindo desse modo os princípios do contraditório, da igualdade, ampla defesa, verdade material e o direito ao emprego.
  3. Analisado o teor da decisão recorrida, resulta evidente que o Tribunal a quo alicerçou a sua decisão com base maioritariamente, para não dizer, mesmo, exclusivamente em presunções, visto que não respeitou o princípio da inversão do ónus da prova, que pressupõe que tenha havido uma recusa de cooperação processual por uma das partes que tenha tornado culposamente impossível a prova ao onerado.
  4. A verdade é que os factos alegados e provados com base em documentos juntos à petição inicial que não foram impugnados pela Ré, permitem concluir o exacto oposto da factualidade considerada assente pelo Tribunal a quo, com a inevitável conclusão quanto ao desacerto da decisão proferida pelo Tribunal, pois o ónus de provar, nos termos da lei, incumbe à Recorrida e deve ser feito por documentos, o que não aconteceu no caso subjudice, violando-se gravemente o disposto no artigo 489.º do CPC, aplicável subsidiariamente, uma vez que em momento algum o Recorrente confessou os factos.
  5. Foi entregue ao Recorrente uma convocatória, na qual a infracção que lhe é imputada ocorreu há mais de um ano, violando desse modo o princípio do contraditório e o princípio da igualdade.
  6. Foi também imputada ao Recorrente uma infracção, da qual resultou um processo-crime, no âmbito do qual não foi constituído arguido, violando desse modo a presunção da inocência. A convocatória, a entrevista e a comunicação estão eivadas de vícios.
  7. O Recorrente pertence ao sindicato, ou seja, é sindicalista, devendo desse modo ter sido notificado o sindicato, conforme manda a lei, o que não ocorreu no caso concreto. Nos autos não consta qualquer prova de ter sido cumprido o disposto no artigo 50.º, n.º 3 da LGT.
  8. Por outro lado, o Tribunal a quo partiu de um pressuposto errado (presunções), ignorando totalmente o ónus da prova, para considerar que o processo disciplinar foi bem conduzido e os factos perfeitamente demonstrados. Além do mais, o documento base para o início do processo disciplinar (convocatória), está eivado de vícios, constando deste datas erradas.
  9. Todos esses fundamentos permitem concluir que, não só na decisão recorrida não foram tomados em consideração elementos de prova juntos aos autos pelos Recorrentes, como o Tribunal a quo julgou procedente o direito da Recorrida que esta não só não alegou, como confessadamente não fez prova.
  10. O Recorrente ingressou nos quadros da recorrida aos 6 de Julho de 2009, vinculado por contrato de trabalho por tempo indeterminado. Durante a vigência do contrato sempre manteve uma perfeita relação interpessoal com todos, desempenhando sempre as suas funções com dedicação, lealdade, diligência, zelo e total profissionalismo, contribuindo inegavelmente para o sucesso da Recorrida.
  11. Há na sentença proferida pelo Tribunal a quo um manifesto equívoco, pois é visível como a água cristalina que o procedimento disciplinar está de alguma forma viciado.
  12. No caso concreto, o Recorrente gozava de protecção especial contra o despedimento, nos termos da alínea a) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 207.º da LGT.
  13. Nos autos não consta nenhuma prova de que a Recorrida comunicou a aplicação da medida disciplinar, o despedimento, ao sindicato, sendo que o ónus de provar o cumprimento das formalidades do despedimento disciplinar, nos termos da lei, recai sobre a Recorrida, por meio de documentos.
  14. Fazendo uma análise cuidada aos factos constantes da convocatória, não se consegue precisamente enquadrá-los nas circunstâncias essenciais: modo, tempo e espaço, que esboçam a elaboração de uma convocatória.
  15. A convocatória não faz a descrição suficiente dos factos para que o Recorrente exerça o contraditório. Entende o Recorrente que a convocatória deve ser de carácter descritivo, verídica e factual para possibilitar a defesa do trabalhador, pois só os factos nela constantes podem fundamentar a decisão de despedimento. Por ser uma peça importante no processo disciplinar deve ser elaborada com maior cuidado, o não que ocorreu no caso concreto.
  16. Andou mal o Tribunal a quo, visto que, analisada a convocatória, fácil é concluir que esta ofende os princípios sacrossantos do contraditório, da ampla defesa e da dignidade da pessoa humana, e, por isso mesmo, é inexistente porque está viciada no seu conteúdo.
  17. Na entrevista do Recorrente, os outros implicados responderam à perguntas que mereceram respostas de que o empregador desejava ouvir, limitando assim a defesa do Recorrente, bem como das testemunhas escolhidas a dedo pela entidade empregadora, confirmando, única e exclusivamente, os factos alegados pela Recorrida.
  18. Entende o Recorrente que a entrevista é considerada o único meio processual ao dispor do trabalhador para apresentar a sua defesa, daí se considerar como um dos elementos essenciais da fase da instrução do processo disciplinar.
  19. Pelos fundamentos supra evocados, entende suficiente para declarar nulo o processo disciplinar que culminou com o despedimento imediato do Recorrente, porque está eivado de vícios no seu conteúdo. Ora, para a instrução do processo disciplinar, é necessário que o mesmo respeite os parâmetros legais; in casu, o somatório dos vícios acima descritos inquinam a validade do processo disciplinar.
  20. No entanto, a entidade empregadora lançou mão da medida disciplinar de despedimento, em desatenção à severidade que a mesma encerra e ao princípio da estabilidade no emprego, previsto no artigo 211.º da LGT, que deve balizar o vínculo jurídico, visto que o Recorrente laborou por mais de 15 anos pela Recorrida, tendo mantido sempre um comportamento exemplar, como provam os vários prémios que arrecadou naquele período.
  21. No caso sub judice, o processo disciplinar existe, porém, não está preenchido com o requisito formal legalmente exigido. Assim, o despedimento disciplinar do trabalhador padece de vício de invalidade, por inobservância do requisito formal.
  22. A Recorrida, ao instaurar um processo disciplinar e instruí-lo assim, nada mais fez senão despedir o Recorrente ao arrepio da lei, configurando, com a situação acima elencada, uma violação gravosa do procedimento disciplinar, de tal sorte que as consequências que pretendiam com o mesmo, não podem ser admitidas, pois estamos perante uma nulidade do despedimento, à luz do n.º 1 do artigo 228.º da LGT, conjugado com o n.º 1 do artigo 50.º do mesmo diploma.
  23. Analisados os autos, fica patente que o Tribunal a quo andou mal, visto que, em momento algum ficou provado que o Recorrente cometeu infracção.
  24. Na sentença proferida pelo Tribunal a quo é evidente que o mesmo inverteu o ónus da prova, deixando patente que a Recorrida não teve que provar nada, ficando esse papel exclusivamente para o Recorrente, numa clara violação do princípio da inversão do ónus da prova. Ademais, analisada a entrevista e o relatório final, fica patente que os outros trabalhadores admitiram que procederam mal e a nenhum deles foi instaurado processo disciplinar, apontando única e exclusivamente as baterias para o Recorrente e, surpreendentemente, os mesmos mantiveram as suas funções até à presente data, numa clara violação ao princípio da igualdade, nos termos do artigo 23.º da CRA.
  25. Pelos fundamentos supra evocados, estão preenchidos todos os pressupostos da nulidade do processo disciplinar que culminou com o despedimento imediato do Recorrente porque viciado está o seu conteúdo.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

 III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é parte vencida no processo n.º 402/16, que correu os seus trâmites na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.

Assim sendo, tem, o Recorrente, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.

IV. OBJECTO

 O presente recurso tem como objecto analisar se a decisão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, que confirma a decisão de primeira instância e julga improcedente o recurso apresentado, é inconstitucional por ofender os princípios da protecção do trabalhador e do julgamento justo e conforme.

V. APRECIANDO

 O Tribunal recorrido, por Acórdão datado a 10 de Agosto de 2017, confirmou a decisão de 1.ª instância, proferida pela 2.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, sob o processo n.º 488/15-G, em sede de acção de conflito laboral intentada pelo aqui Recorrente, e julgou improcedente o recurso interposto, por não se terem verificado as irregularidades imputadas ao processo disciplinar instaurado ao então Apelante, aqui Recorrente, enquanto trabalhador da SOGESTER, S.A., que consubstanciou no seu despedimento imediato.

Ficou provado nos autos que o ora Recorrente era funcionário da empresa SOGESTER-Sociedade Gestora de Terminais, S.A. e exercia a função de Auxiliar Operacional. Em 2015, o Recorrente compareceu ao Gestor de Portaria, acompanhado de outro indivíduo, solicitando a documentação que permitiu a entrada de 30 contentores cheios para exportação, tendo sido detectado que os contentores não possuíam processos alfandegários, dos quais apenas 10 foram taxados e pagos (fls. 43-45 do processo disciplinar apenso aos autos).

Ao Recorrente já haviam sido aplicadas duas medidas disciplinares de Admoestação Registada, em 2011 e 2014, por ter recebido contentores sem os respectivos comprovativos de pagamento de taxas alfandegárias, bem como autorizou a saída de um contentor a pedido do planificador para favorecer um cliente, violando o disposto na lei e no regulamento interno (fls. 2 e 4 do processo disciplinar apenso aos autos).

Inconformado com a decisão, vem o Recorrente ao Tribunal Constitucional interpor Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, fundamentando que o processo disciplinar instaurado está sobejamente eivado de vícios e que a referida decisão violou gravemente os princípios da inversão do ónus da prova, da igualdade e do contraditório, devendo, por isso, ser declarado nulo e dar-se provimento ao presente recurso.

Não obstante o facto de o Recorrente ter pedido a este Tribunal a declaração de nulidade da decisão recorrida, no processo constitucional, rectius, no Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, o pedido deve ser a declaração de inconstitucionalidade.

Assim sendo, em sede do presente recurso, a nulidade não pode ser objecto do pedido, podendo, se for o caso, ser causa de pedir da declaração de inconstitucionalidade, nos termos das disposições combinadas da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC e da alínea a) do artigo 49.º da LPC.

Face ao exposto, e de acordo com o previsto na alínea a) do artigo 49.º da LPC, fazendo uma interpretação correctiva e verificando que estão reunidos todos os requisitos para o efeito, este Tribunal procederá à apreciação do pedido em sede da conformidade, ou não, da decisão, objecto de recurso, com a CRA.

O Recorrente, nas suas alegações, ignora completamente a decisão do Tribunal Supremo, direccionando a sua fundamentação de recurso à decisão tida em primeira instância e ao processo disciplinar instaurado pela entidade empregadora, como se o Tribunal Constitucional fosse uma terceira instância da jurisdição comum, o que contraria claramente o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 49.º da LPC, que determinam que ao Tribunal Constitucional cabe exclusivamente verificar se as decisões dos demais tribunais contêm ou não fundamentos de facto e de direito que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição.

Cingindo-se ao alegado pelo Recorrente, depreende-se que toda a estruturação formal do recurso ao longo das suas densas conclusões se situa no desacordo sobre a conformidade do processo disciplinar contra si instaurado pela entidade empregadora.

Por este motivo, toda a argumentação esgrimida padece do erro de se perspectivar a fiscalização cometida a este Tribunal como se de mais uma instância interpretativa e aplicativa do direito infraconstitucional se tratasse.

Nas suas alegações de recurso, o Recorrente não enuncia um preciso e claro sentido ou dimensão normativa, nem identifica qual o resultado hermenêutico que, judicialmente construído, considera violar os princípios da igualdade, do contraditório, da presunção de inocência.

Tendo em atenção ao já sedimentado por esta Corte: “(…) não basta, para assegurar um problema de inconstitucionalidade judicial, fazer referência a um ou vários preceitos normativos, e remeter genericamente para uma sua interpretação. Na verdade, há que atender à distinção, formal e funcional, no âmbito do sistema de fiscalização da constitucionalidade, entre a (s) norma (s), princípios ou interpretação normativa que constitui objecto de julgamento cometido ao Tribunal Constitucional, e a fundamentação, de facto ou de direito, onde se aloja o critério ou padrão de decisão efectivamente aplicado como determinante do julgado”, in Acórdão n.º 621/2020, pág. 4.

Entende o Recorrente que a decisão recorrida ofende os princípios do contraditório e da ampla defesa, pois, a convocatória entregue em sede de processo disciplinar que lhe fora instaurado, não continha todos os elementos, mormente, onde e quando é que a infracção disciplinar foi cometida.

De igual modo, sustenta o Recorrente que a decisão recorrida ofende o princípio da presunção da inocência, porque cabia ao empregador fazer prova documental da infracção disciplinar e penal que o Recorrente cometeu e que justificou a instauração do processo disciplinar de que foi alvo.

O princípio do contraditório, com assento constitucional no artigo 67.º, n.º 1, tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que às partes deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar provas em condições que não lhe coloquem dificuldades ou desvantagens em relação às outras partes, propiciando a audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo.

Compulsados os autos, verifica-se à fls. 27 e 28, que a convocatória está redigida de forma suficiente e clara a que o Recorrente pudesse exercer o seu direito de defesa, com uma descriminação exaustiva dos factos de que o trabalhador fora acusado e as infracções que se subsumiam àqueles factos, acrescentando-se a informação de que o trabalhador poderia fazer-se acompanhar, na entrevista, por até cinco (5) testemunhas ou pessoas da sua confiança, pertencentes ou não ao quadro do pessoal da empresa ou ao sindicato em que esteja filiado.

A entrevista foi realizada no dia 3 de Março de 2015, cumprido o prazo previsto no artigo 48.º da Lei n.º 7/15, de 15 de Junho-Lei Geral do Trabalho (LGT), passados apenas 9 dias da data de entrega da convocatória, aos 23 de Fevereiro de 2015.

Relativamente ao princípio da igualdade, não se percebe ao certo por que razão o Recorrente aqui o evoca. Não se depreende qualquer fundamentação que serve de base à decisão recorrida merecedora de censura à luz do princípio da igualdade, e muito menos a razão de ser de tal juízo negativo.

A crítica de inconstitucionalidade, neste caso, é dirigida ao acto de julgamento em si mesmo, por, na óptica do Recorrente, ter sido decidida a causa de forma injusta e acolhida uma leitura do direito ordinário que o Recorrente considera incorrecta.

O Recorrente teve oportunidade de estar em posição de igualdade com a então Recorrida, empregador, sendo que a decisão do Tribunal Supremo é sustentada pelas provas (documentais e testemunhais) que serviram de base à decisão do tribunal de primeira instância. Não se constatam arbitrariedades na decisão recorrida passíveis de a inquinar por ofensa ao princípio da igualdade.

Assevera, ainda, o Recorrente que a decisão recorrida ofende o princípio da proibição do despedimento sem justa causa, porque em nenhum momento ficou provado o cometimento de qualquer infracção e, se assim fosse, seria um ilícito penal. Em momento algum foi o Recorrente constituído arguido, notando-se claramente da análise à entrevista e ao relatório final que este não praticou nenhuma infracção laboral.

Por força do princípio constitucional da proibição do despedimento sem justa causa, ínsito no n.º 4 do artigo 76.º da CRA, nenhum trabalhador deve ser despedido sem justa causa, conceito previsto no artigo 205.º e densificado no artigo 206.º, ambos da LGT, que regulam a disciplina da cessação do contrato de trabalho por iniciativa do empregador.

Depreende-se como conceito de justa causa de despedimento o comportamento do trabalhador que viole os seus deveres contratuais, gerando uma crise contratual de tal modo grave e insuperável capaz de provocar uma ruptura irreversível entre as partes contratantes. Esta ruptura deverá ainda ser de tal forma intensa, de modo que não seja exigível a um empregador normal e razoável a continuação da relação laboral.

Como bem refere António Monteiro Fernandes, não se trata de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço, in concretu, dos interesses em presença, fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo. In Direito do Trabalho, 13.ª Edição. Coimbra, Almedina, 2007, pág. 559.

Certo é que a redacção e leitura equivocada da norma constante do artigo 206.º da LGT propicia a interpretação ou inferência de que a verificação de qualquer das situações aí descritas fundamentam, por si só, a justa causa para despedimento disciplinar.

Esta inferência seria errónea e não se coaduna com a inserção sistemática do referido artigo. Conforme resulta da redacção do artigo 205.º da LGT, e bem, a existência de um comportamento culposo do trabalhador, traduzido na prática de infracção grave é fundamento de justa causa, quando da violação dos seus deveres pessoais e profissionais resulte a imediata impossibilidade prática de subsistência do vínculo laboral com o empregador.

Constituem, deste modo, requisitos da justa causa de despedimento: um elemento subjectivo, traduzido num comportamento danoso do trabalhador por acção ou omissão, um elemento objectivo, traduzido na impossibilidade de subsistência da relação laboral, e um nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.

As circunstâncias descritas na norma do artigo 206.º da LGT, evidenciando infracções disciplinares graves, devem ser tidas apenas como indiciadoras da impossibilidade prática de permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que a ele importa, devendo esta ser provada pelo empregador, nos termos do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, o que ocorreu no caso em questão.

Conforme consta da decisão de primeira instância e confirmada pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, o Tribunal não só constatou a verificação da infracção disciplinar, mas também o preenchimento do conceito de justa causa no caso dos autos.

Lê-se no aresto (fls. 101): “Da factualidade apurada, atendendo a experiência do Recorrente, ao grau de responsabilidade que acarreta a sua profissão, ao número de contentores que saíram sem o pagamento de taxas alfandegárias e dos antecedentes disciplinares, entende este Tribunal que o Recorrente actuou com culpa consciente.

Ora, a prática dos actos, acima referenciados, pelo Recorrente levantaram sérias reservas e profundas dúvidas quanto ao seu comportamento futuro, caso continuasse a trabalhar com a Recorrida, abalando, assim, todas as condições mínimas de uma vinculação duradoura. Por fim, reitera-se que o Recorrente pôs em causa, de forma irremediável, a relação de confiança que deve existir entre empregador e trabalhador, tornando imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo jurídico-laboral que o mesmo mantinha com a Recorrida, o que nos leva a concordar com a medida aplicada”.

Da decisão de despedimento não só é possível aferir quais os factos concretos que foram dados como provados e sobre os quais radicou a decisão de aplicação da sanção disciplinar de despedimento, como também se demonstrou a impossibilidade prática de subsistência do vínculo laboral e o consequente nexo causal entre aquele comportamento e esta impossibilidade, sendo o referido despedimento proporcional e adequado.

É evidente que o que o Recorrente pretende é, pois, ver o processo disciplinar reapreciado por discordar do entendimento do tribunal de primeira instância, confirmado pelo Tribunal Supremo.

É jurisprudência assente no Tribunal Constitucional que, “quando a interpretação feita pela jurisdição comum no aresto recorrido é conforme a CRA, por ser fundamentada em legislação subsidiariamente aplicável ao caso concreto, e garantindo-se o direito a ampla defesa, que é um direito com dignidade constitucional, permitindo-se que as partes apresentem todos os argumentos de razão a seu favor perante o julgador com o objectivo de influenciá-lo, direito este que é uma manifestação do direito ao contraditório”, não pode aquele considerar-se inconstitucional por violar o direito a um julgamento justo e conforme, estabelecido no artigo 72.º da CRA. In Acórdão n.º 606/2020, pág. 7.

Considerando, pois, que o julgador forma o juízo de certeza com base nos factos submetidos à sua apreciação, a lei confere a este uma livre apreciação e valoração das provas. No entanto, por não se tratar de uma terceira instância de jurisdição comum, cujas competências estão escalpelizadas nas disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08 de 17 de Junho (redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10 de 3 de Dezembro), que são estritamente as de administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, não pode este Tribunal pronunciar-se sobre o mérito da decisão da causa (Vide, entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 613/2020 e 621/2020).

Ademais, não é competência do Tribunal Constitucional aferir se o juiz a quo procedeu a uma correcta apreciação da prova. Conforme refere Carlos Blanco de Morais: “esta não é uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super-revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo (…)”. In Justiça Constitucional - O Direito do Contencioso Constitucional, TOMO II, 2ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pág. 619.

Do acima expendido, o Tribunal Constitucional conclui que não se verificam na decisão recorrida as inconstitucionalidades imputadas, por contender com os princípios do contraditório, da ampla defesa, da igualdade e o da proibição do despedimento sem justa causa, previstos na Constituição.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: Negar provimento ao presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique.

 

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Dezembro de 2022.

 

OS JUÍZES CONSELHEIROS

 

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva 

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto   

Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva

Dr. Simão de Sousa Victor 

Dra. Victória Manuel da Silva Izata