ACÓRDÃO N.º 791/2022
PROCESSO N.º 949-C/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Henriques Gongo Diogo Manuel, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei do Processo Constitucional (LPC) interpor o recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 402/16.
Consta dos autos, que o Recorrente intentou uma acção de recurso em matéria disciplinar, sob a forma sumária, contra a empresa SOGESTER-Sociedade Gestora de Terminais, S.A., em virtude de ter-lhe sido instaurado um processo disciplinar que culminou com o seu despedimento, a qual a 2.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda julgou improcedente por entender que o Recorrente colocou em causa, de forma irremediável, a relação de confiança que deve existir entre empregador e trabalhador, tornando imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo jurídico-laboral que mantinha com a empresa.
Inconformado, interpôs recurso para o Tribunal Supremo por entender que a decisão de primeira instância violou o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil (CPC), tendo a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo confirmado a decisão recorrida, por não existir contradição entre os fundamentos e a decisão do Juiz da causa, isto é, a decisão então recorrida não está oposta aos fundamentos ali consignados, confirmando no todo o aresto, por considerar procedente a justa causa para o despedimento disciplinar.
Com a interposição do recurso extraordinário de inconstitucionalidade e convidado apresentar as alegações nos termos do artigo 45.º da LPC, fê-lo, em síntese, com os fundamentos seguintes:
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º, e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte vencida no processo n.º 402/16, que correu os seus trâmites na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, pelo que tem direito de contradizer, segundo dispõe a parte final do n.º 1 do artigo 26.º do Código de Processo Civil (CPC), que se aplica, subsidiariamente, ao caso em apreço, por previsão do artigo 2.º da referida LPC.
Assim sendo, tem, o Recorrente, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, conforme estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem como objecto analisar se a decisão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, que confirma a decisão de primeira instância e julga improcedente o recurso apresentado, é inconstitucional por ofender os princípios da protecção do trabalhador e do julgamento justo e conforme.
V. APRECIANDO
O Tribunal recorrido, por Acórdão datado a 10 de Agosto de 2017, confirmou a decisão de 1.ª instância, proferida pela 2.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, sob o processo n.º 488/15-G, em sede de acção de conflito laboral intentada pelo aqui Recorrente, e julgou improcedente o recurso interposto, por não se terem verificado as irregularidades imputadas ao processo disciplinar instaurado ao então Apelante, aqui Recorrente, enquanto trabalhador da SOGESTER, S.A., que consubstanciou no seu despedimento imediato.
Ficou provado nos autos que o ora Recorrente era funcionário da empresa SOGESTER-Sociedade Gestora de Terminais, S.A. e exercia a função de Auxiliar Operacional. Em 2015, o Recorrente compareceu ao Gestor de Portaria, acompanhado de outro indivíduo, solicitando a documentação que permitiu a entrada de 30 contentores cheios para exportação, tendo sido detectado que os contentores não possuíam processos alfandegários, dos quais apenas 10 foram taxados e pagos (fls. 43-45 do processo disciplinar apenso aos autos).
Ao Recorrente já haviam sido aplicadas duas medidas disciplinares de Admoestação Registada, em 2011 e 2014, por ter recebido contentores sem os respectivos comprovativos de pagamento de taxas alfandegárias, bem como autorizou a saída de um contentor a pedido do planificador para favorecer um cliente, violando o disposto na lei e no regulamento interno (fls. 2 e 4 do processo disciplinar apenso aos autos).
Inconformado com a decisão, vem o Recorrente ao Tribunal Constitucional interpor Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, fundamentando que o processo disciplinar instaurado está sobejamente eivado de vícios e que a referida decisão violou gravemente os princípios da inversão do ónus da prova, da igualdade e do contraditório, devendo, por isso, ser declarado nulo e dar-se provimento ao presente recurso.
Não obstante o facto de o Recorrente ter pedido a este Tribunal a declaração de nulidade da decisão recorrida, no processo constitucional, rectius, no Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, o pedido deve ser a declaração de inconstitucionalidade.
Assim sendo, em sede do presente recurso, a nulidade não pode ser objecto do pedido, podendo, se for o caso, ser causa de pedir da declaração de inconstitucionalidade, nos termos das disposições combinadas da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC e da alínea a) do artigo 49.º da LPC.
Face ao exposto, e de acordo com o previsto na alínea a) do artigo 49.º da LPC, fazendo uma interpretação correctiva e verificando que estão reunidos todos os requisitos para o efeito, este Tribunal procederá à apreciação do pedido em sede da conformidade, ou não, da decisão, objecto de recurso, com a CRA.
O Recorrente, nas suas alegações, ignora completamente a decisão do Tribunal Supremo, direccionando a sua fundamentação de recurso à decisão tida em primeira instância e ao processo disciplinar instaurado pela entidade empregadora, como se o Tribunal Constitucional fosse uma terceira instância da jurisdição comum, o que contraria claramente o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 49.º da LPC, que determinam que ao Tribunal Constitucional cabe exclusivamente verificar se as decisões dos demais tribunais contêm ou não fundamentos de facto e de direito que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição.
Cingindo-se ao alegado pelo Recorrente, depreende-se que toda a estruturação formal do recurso ao longo das suas densas conclusões se situa no desacordo sobre a conformidade do processo disciplinar contra si instaurado pela entidade empregadora.
Por este motivo, toda a argumentação esgrimida padece do erro de se perspectivar a fiscalização cometida a este Tribunal como se de mais uma instância interpretativa e aplicativa do direito infraconstitucional se tratasse.
Nas suas alegações de recurso, o Recorrente não enuncia um preciso e claro sentido ou dimensão normativa, nem identifica qual o resultado hermenêutico que, judicialmente construído, considera violar os princípios da igualdade, do contraditório, da presunção de inocência.
Tendo em atenção ao já sedimentado por esta Corte: “(…) não basta, para assegurar um problema de inconstitucionalidade judicial, fazer referência a um ou vários preceitos normativos, e remeter genericamente para uma sua interpretação. Na verdade, há que atender à distinção, formal e funcional, no âmbito do sistema de fiscalização da constitucionalidade, entre a (s) norma (s), princípios ou interpretação normativa que constitui objecto de julgamento cometido ao Tribunal Constitucional, e a fundamentação, de facto ou de direito, onde se aloja o critério ou padrão de decisão efectivamente aplicado como determinante do julgado”, in Acórdão n.º 621/2020, pág. 4.
Entende o Recorrente que a decisão recorrida ofende os princípios do contraditório e da ampla defesa, pois, a convocatória entregue em sede de processo disciplinar que lhe fora instaurado, não continha todos os elementos, mormente, onde e quando é que a infracção disciplinar foi cometida.
De igual modo, sustenta o Recorrente que a decisão recorrida ofende o princípio da presunção da inocência, porque cabia ao empregador fazer prova documental da infracção disciplinar e penal que o Recorrente cometeu e que justificou a instauração do processo disciplinar de que foi alvo.
O princípio do contraditório, com assento constitucional no artigo 67.º, n.º 1, tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que às partes deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar provas em condições que não lhe coloquem dificuldades ou desvantagens em relação às outras partes, propiciando a audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo.
Compulsados os autos, verifica-se à fls. 27 e 28, que a convocatória está redigida de forma suficiente e clara a que o Recorrente pudesse exercer o seu direito de defesa, com uma descriminação exaustiva dos factos de que o trabalhador fora acusado e as infracções que se subsumiam àqueles factos, acrescentando-se a informação de que o trabalhador poderia fazer-se acompanhar, na entrevista, por até cinco (5) testemunhas ou pessoas da sua confiança, pertencentes ou não ao quadro do pessoal da empresa ou ao sindicato em que esteja filiado.
A entrevista foi realizada no dia 3 de Março de 2015, cumprido o prazo previsto no artigo 48.º da Lei n.º 7/15, de 15 de Junho-Lei Geral do Trabalho (LGT), passados apenas 9 dias da data de entrega da convocatória, aos 23 de Fevereiro de 2015.
Relativamente ao princípio da igualdade, não se percebe ao certo por que razão o Recorrente aqui o evoca. Não se depreende qualquer fundamentação que serve de base à decisão recorrida merecedora de censura à luz do princípio da igualdade, e muito menos a razão de ser de tal juízo negativo.
A crítica de inconstitucionalidade, neste caso, é dirigida ao acto de julgamento em si mesmo, por, na óptica do Recorrente, ter sido decidida a causa de forma injusta e acolhida uma leitura do direito ordinário que o Recorrente considera incorrecta.
O Recorrente teve oportunidade de estar em posição de igualdade com a então Recorrida, empregador, sendo que a decisão do Tribunal Supremo é sustentada pelas provas (documentais e testemunhais) que serviram de base à decisão do tribunal de primeira instância. Não se constatam arbitrariedades na decisão recorrida passíveis de a inquinar por ofensa ao princípio da igualdade.
Assevera, ainda, o Recorrente que a decisão recorrida ofende o princípio da proibição do despedimento sem justa causa, porque em nenhum momento ficou provado o cometimento de qualquer infracção e, se assim fosse, seria um ilícito penal. Em momento algum foi o Recorrente constituído arguido, notando-se claramente da análise à entrevista e ao relatório final que este não praticou nenhuma infracção laboral.
Por força do princípio constitucional da proibição do despedimento sem justa causa, ínsito no n.º 4 do artigo 76.º da CRA, nenhum trabalhador deve ser despedido sem justa causa, conceito previsto no artigo 205.º e densificado no artigo 206.º, ambos da LGT, que regulam a disciplina da cessação do contrato de trabalho por iniciativa do empregador.
Depreende-se como conceito de justa causa de despedimento o comportamento do trabalhador que viole os seus deveres contratuais, gerando uma crise contratual de tal modo grave e insuperável capaz de provocar uma ruptura irreversível entre as partes contratantes. Esta ruptura deverá ainda ser de tal forma intensa, de modo que não seja exigível a um empregador normal e razoável a continuação da relação laboral.
Como bem refere António Monteiro Fernandes, não se trata de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço, in concretu, dos interesses em presença, fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo. In Direito do Trabalho, 13.ª Edição. Coimbra, Almedina, 2007, pág. 559.
Certo é que a redacção e leitura equivocada da norma constante do artigo 206.º da LGT propicia a interpretação ou inferência de que a verificação de qualquer das situações aí descritas fundamentam, por si só, a justa causa para despedimento disciplinar.
Esta inferência seria errónea e não se coaduna com a inserção sistemática do referido artigo. Conforme resulta da redacção do artigo 205.º da LGT, e bem, a existência de um comportamento culposo do trabalhador, traduzido na prática de infracção grave é fundamento de justa causa, quando da violação dos seus deveres pessoais e profissionais resulte a imediata impossibilidade prática de subsistência do vínculo laboral com o empregador.
Constituem, deste modo, requisitos da justa causa de despedimento: um elemento subjectivo, traduzido num comportamento danoso do trabalhador por acção ou omissão, um elemento objectivo, traduzido na impossibilidade de subsistência da relação laboral, e um nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.
As circunstâncias descritas na norma do artigo 206.º da LGT, evidenciando infracções disciplinares graves, devem ser tidas apenas como indiciadoras da impossibilidade prática de permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que a ele importa, devendo esta ser provada pelo empregador, nos termos do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, o que ocorreu no caso em questão.
Conforme consta da decisão de primeira instância e confirmada pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, o Tribunal não só constatou a verificação da infracção disciplinar, mas também o preenchimento do conceito de justa causa no caso dos autos.
Lê-se no aresto (fls. 101): “Da factualidade apurada, atendendo a experiência do Recorrente, ao grau de responsabilidade que acarreta a sua profissão, ao número de contentores que saíram sem o pagamento de taxas alfandegárias e dos antecedentes disciplinares, entende este Tribunal que o Recorrente actuou com culpa consciente.
Ora, a prática dos actos, acima referenciados, pelo Recorrente levantaram sérias reservas e profundas dúvidas quanto ao seu comportamento futuro, caso continuasse a trabalhar com a Recorrida, abalando, assim, todas as condições mínimas de uma vinculação duradoura. Por fim, reitera-se que o Recorrente pôs em causa, de forma irremediável, a relação de confiança que deve existir entre empregador e trabalhador, tornando imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo jurídico-laboral que o mesmo mantinha com a Recorrida, o que nos leva a concordar com a medida aplicada”.
Da decisão de despedimento não só é possível aferir quais os factos concretos que foram dados como provados e sobre os quais radicou a decisão de aplicação da sanção disciplinar de despedimento, como também se demonstrou a impossibilidade prática de subsistência do vínculo laboral e o consequente nexo causal entre aquele comportamento e esta impossibilidade, sendo o referido despedimento proporcional e adequado.
É evidente que o que o Recorrente pretende é, pois, ver o processo disciplinar reapreciado por discordar do entendimento do tribunal de primeira instância, confirmado pelo Tribunal Supremo.
É jurisprudência assente no Tribunal Constitucional que, “quando a interpretação feita pela jurisdição comum no aresto recorrido é conforme a CRA, por ser fundamentada em legislação subsidiariamente aplicável ao caso concreto, e garantindo-se o direito a ampla defesa, que é um direito com dignidade constitucional, permitindo-se que as partes apresentem todos os argumentos de razão a seu favor perante o julgador com o objectivo de influenciá-lo, direito este que é uma manifestação do direito ao contraditório”, não pode aquele considerar-se inconstitucional por violar o direito a um julgamento justo e conforme, estabelecido no artigo 72.º da CRA. In Acórdão n.º 606/2020, pág. 7.
Considerando, pois, que o julgador forma o juízo de certeza com base nos factos submetidos à sua apreciação, a lei confere a este uma livre apreciação e valoração das provas. No entanto, por não se tratar de uma terceira instância de jurisdição comum, cujas competências estão escalpelizadas nas disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08 de 17 de Junho (redacção dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 24/10 de 3 de Dezembro), que são estritamente as de administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, não pode este Tribunal pronunciar-se sobre o mérito da decisão da causa (Vide, entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 613/2020 e 621/2020).
Ademais, não é competência do Tribunal Constitucional aferir se o juiz a quo procedeu a uma correcta apreciação da prova. Conforme refere Carlos Blanco de Morais: “esta não é uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super-revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo (…)”. In Justiça Constitucional - O Direito do Contencioso Constitucional, TOMO II, 2ª Edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pág. 619.
Do acima expendido, o Tribunal Constitucional conclui que não se verificam na decisão recorrida as inconstitucionalidades imputadas, por contender com os princípios do contraditório, da ampla defesa, da igualdade e o da proibição do despedimento sem justa causa, previstos na Constituição.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: Negar provimento ao presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Dezembro de 2022.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata