ACÓRDÃO N.º 792/2022
PROCESSO N.º 956-B/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Gun Guohua, t.c.p. Guan, Shao Yun Bin; Pang Yong Yu, t.c.p. Filipe, Noé Armindo Gonga, João Capitango Catanha, Pedro Guilherme Neto e Pedro Munecorigo Lutiki, t.c.p. Pedro, melhor identificados nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 3569/19, que negou provimento ao recurso interposto e alterou a qualificação jurídica da condenação em primeira instância, condenando-os com a pena única de 22 anos de prisão maior, por inferir que o referido acórdão ofende os princípios da legalidade, da igualdade, do in dúbio pro reo, da pessoalidade e intransmissibilidade da responsabilidade penal, da independência, bem como o direito a um julgamento justo e conforme, previstos no n.° 1 do artigo 2.°, n.° 2 do artigo 6.°, 175.º, 23.°, n.° 2 do artigo 67.°, n.° 1 do artigo 65.° e 72.°, respectivamente, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
Os Recorrentes apresentaram, em síntese, as seguintes alegações:
Os Recorrentes concluíram as suas alegações referindo que o Acórdão recorrido, ofende, pois, os princípios da legalidade, da igualdade, do in dubio pro reo, da pessoalidade e intransmissibilidade penal, bem como o dever de fundamentação das decisões judiciais e o direito a julgamento justo e conforme, previstos no n.º 1 do artigo 2.º, n.º 2 do artigo 6.º, no artigo 23.º, no n.º 2 do artigo 67.º, no n.º 1 do artigo 65.º e no artigo 72.º, respectivamente, todos da CRA, pelo que deve ser declarado inconstitucional.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho — Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
Os Recorrentes interpuseram recurso da decisão condenatória no Processo n.º 3569/19, que correu os seus trâmites na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, pelo que, têm legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.° da LPC, ao abrigo do qual, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para interpor recurso ordinário.
IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto apreciar se o Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.° 3569/19, ao alterar a qualificação jurídica e condenar todos os Recorrentes na pena única de 22 anos de prisão maior, ofendeu ou não princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na CRA.
V. APRECIANDO
Os Recorrentes invocam nas suas alegações que o Acórdão recorrido, para além de confirmar a decisão do Tribunal de 1.ª instância, alterou a qualificação jurídica para a moldura penal mais elevada, condenando, assim, todos eles na mesma pena única de 22 anos de prisão maior.
Os Recorrentes invocam, também, que o Tribunal ad quem mal andou ao ter apreciado os factos, tal como o fez, separados da sua correcta e efectiva subsunção às normas que deveria aplicar, não tendo evidenciado a relação entre os factos e as provas constantes dos autos.
Ademais, alegam os Recorrentes que o Acórdão recorrido não fundamentou a sua decisão tendo em atenção o objecto do recurso, nem tão pouco teve em atenção as provas produzidas nos autos.
Inconformados, consideram os Recorrentes que o Tribunal ad quem ao decidir nos termos em que o fez, ofendeu princípios e direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, nomeadamente os princípios da legalidade, da igualdade, do in dubio pro reo, da pessoalidade e da intransmissibilidade da responsabilidade penal, do dever de fundamentação das decisões judiciais e do direito a julgamento justo e conforme, que se afigura pertinente apreciar e decidir.
a). Sobre a ofensa aos princípios da igualdade e da pessoalidade e intransmissibilidade da responsabilidade penal.
Os Recorrentes alegam que o Acórdão recorrido ofendeu o princípio da igualdade, por ter condenado todos os Recorrentes de forma igual, ou seja, na mesma pena, quando a participação de cada um dos arguidos, aqui Recorrentes, foi totalmente diversa.
Outrossim, referem os Recorrentes que é incompreensível o raciocínio seguido pelo Acórdão recorrido, uma vez que, tratando-se de crimes supostamente cometidos por vários réus, em circunstâncias, qualidades e responsabilidades diferentes, é mister aplicar o princípio penal segundo o qual a cada crime a sua pena.
O princípio da igualdade, em causa, apresenta-se como um direito geral de igualdade e outros de direitos especiais de igualdade, exaltando, no âmbito do princípio do Estado de direito, que se deve “tratar de forma igual o que é igual e de forma desigual o que é desigual”, ou seja, igualdade não significa tratar tudo e todos da mesma forma.
Nesta perspectiva, ensinam Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes que “O princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes dos direitos fundamentais. Ela pode ser entendida enquanto “igualdade formal” (igualdade jurídica), própria do estado liberal, e “igualdade material” que prevê que as pessoas sejam iguais, mas baseadas em pressupostos bem claros, ou seja, não se pode tratar duas pessoas como iguais que verdadeiramente não o sejam. Este princípio impõe um tratamento jurídico idêntico a todos os que se encontram em situação idêntica ou similar”. In Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, 2014, pág. 261.
O princípio da igualdade, também conhecido como princípio da isonomia, vem expressamente consagrado nos termos do artigo 23.º da Constituição da República de Angola (CRA).
Destarte, para a efectivação do controlo constitucional ora requerido, importa apreciar se o acto de reapreciação e decisão pelo Acórdão recorrido teve ou não em atenção a conduta e o grau de culpabilidade de cada um dos Recorrentes e, consequentemente, atentou ou não contra o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.
Expressa o Acórdão recorrido, a fls. 796, que os factos descritos nos autos reproduzem no essencial provas conducentes à responsabilização criminal dos réus e que, (...) “a acção foi efectivamente praticada pelos réus, sendo que, para além da prova indiciária produzida na fase de instrução preparatória, os réus Shao Yun Bin, Pang Yong Yu, Noé Armindo Gonga, João Capitango Catanha, Pedro Guilherme Neto e Pedro Munecongo Lutiki, com excepção do có-réu Gun Guohua, confessaram prontamente os factos quer na instrução preparatória (fls. 7, 8, 9 e 10), como na audiência de discussão e julgamento da causa (fls. 598, 609 e 612) (...) e que (...) os ofendidos foram unânimes nas suas declarações prestadas quer na fase de instrução preparatória, como na audiência de discussão e julgamento em apontar como autores dos factos os réus descritos na acusação e pronúncia (fls. 475 a 480)”.
Em matéria de prova, respeitante à conduta de cada réu, consta igualmente dos autos, fls. 687 a 692, ter havido por parte dos co-réus uma elevada intensidade da ilicitude da conduta e da culpabilidade dos mesmos, que permitiu ao Tribunal ad quem concluir (fls. 796 verso) que, embora o réu Gun Guohua tenha alegado, em sua defesa, que é inocente e não tomou parte das agressões, os argumentos por este esgrimidos não são de acolher.
Nestes termos, não cabe razão aos Recorrentes, pois consta do Acórdão recorrido que a imputação da responsabilidade criminal dos réus, aqui Recorrentes, deveu-se ao facto de todos eles terem tido participação activa na acção criminal e a culpa de cada um considerada como provada.
Por outro lado, alegam os Recorrentes que, nesta óptica, o Acórdão recorrido ofende, também, o princípio da individualização da responsabilidade penal (criminal).
Este princípio, aqui invocado pelos Recorrentes como prejudicado, assevera que, para cada crime existe uma pena, que varia de acordo com as circunstâncias do cometimento do crime, ou seja, a personalidade do agente, o meio de execução, entre outras, devendo a cada um ser aplicada a pena a que lhe é devida.
Ensina Manuel Lopes Maia Gonçalves que “O carácter pessoal da pena impõe que esta só possa atingir o próprio delinquente, e dimana da natureza pessoal da culpa, que é fundamento e principal determinante da medida da pena. O princípio da pessoalidade impede que os efeitos da pena se estendam a terceiros”. In Código Penal, 2.ª Edição, Almedina, 1972, pág. 212.
Jorge Miranda e Rui Medeiros realçam que o princípio da pessoalidade e da intransmissibilidade da responsabilidade criminal contém as seguintes implicações: “a primeira, a da impossibilidade de “substituição/transferência” por terceiro (ou seja, que não o próprio condenado) no cumprimento ou na execução de uma pena — seja no caso da “transmissão” voluntária, seja naturalmente no caso da “transmissão” legal ou forçosa, da responsabilidade penal ou sancionatória (embora exista legislação penal em sentido contrário, afirmando quase uma responsabilização, subsidiária, “automática”); a segunda, a de que, por força da pessoalidade da pena criminal, ela se extingue com a morte do condenado”. In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Revista, actualizada e ampliada, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2010, págs. 683 e 684.
A pena a aplicar só pode afectar o réu, acusado e pronunciado, conforme vem consagrado no n.º 1 do artigo 65.º da CRA, ao estabelecer que a responsabilidade penal é pessoal e intransmissível.
O princípio da individualidade da responsabilidade criminal, está expressamente consagrado no artigo 28.º do Código Penal, vigente a data dos factos, que estabelece que a responsabilidade criminal recai única e individualmente nos agentes de crimes ou de contravenções, bem como no artigo 113.º, do mesmo diploma legal, que dispõe que as penas não passarão em caso algum da pessoa do delinquente.
O mesmo espírito, segue o Código Penal Angolano (CPA) vigente, aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, que, embora não aplicável ao caso sub judice por ser posterior à ocorrência dos factos, no seu artigo 27.º dispõe que “Cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou grau de culpa dos outros comparticipantes”.
Isto significa que a pena deve ser imposta ao condenado, ela não pode transcender, ou seja, não pode passar da pessoa do condenado. É somente o condenado que deverá ser submetido a uma sanção penal.
Nesta conformidade, consta dos autos que o Acórdão recorrido, a fls. 795, teve como matéria provada o envolvimento dos réus, tendo o réu Gun Guohua, desferido violentos golpes contra os ofendidos e ordenou aos seus súbditos, a continuação da agressão aos ofendidos, por si iniciada.
Outrossim, verifica-se que para a aplicação da pena, o Acórdão recorrido teve em atenção a ocorrência de diversas circunstâncias, conforme fls. 688, 689, 690 e 797.
Constata-se, igualmente, que, para aplicação da pena, o Acórdão recorrido teve em atenção diversas circunstâncias agravantes e atenuante a descrever, a fls. 797, que “Agravam a responsabilidade criminal dos réus as circunstâncias, 7ª (ter sido o crime pactuado entre duas ou mais pessoas), 8ª (ter havido convocação de outras pessoas), 10ª (ter sido o crime cometido por duas ou mais pessoas), 14ª (ter sido cometido o crime com o emprego simultâneo de diversos meios ou com insistência em o consumar) e 34ª (haver acumulação de crimes), todas do artº 34.º do Código Penal. Atenuam a responsabilidade criminal dos réus as circunstâncias, 1ª (ausência de antecedentes criminais), 9ª (confissão do crime, com excepção do réu Gun Guahua) e 19-ª (natureza reparável do dano causado em relação ao crime de roubo), todas do artigo 39.º do C. P. Atentos ao especial valor das circunstâncias atenuantes apuradas, julgamos justo e equitativo o uso do art.º 94.º n.º 1 do Cód. Penal”.
Nestes termos, não existem razões para admitir que o Acórdão prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo tenha ofendido o princípio da pessoalidade e intransmissibilidade da responsabilidade penal, aqui alegado pelos Recorrentes.
b). Sobre a ofensa ao princípio do in dubio pro reo
Os Recorrentes alegam que tendo em atenção tudo quanto foi produzido em termos de prova, para Guan Guohua, t.c.p. Guan, na pior das hipóteses caberia o recurso ao princípio in dúbio pro reo e, no que diz respeito aos demais, cada um seria condenado na medida da sua culpa, uma vez que todos intervieram de forma diferente, com posições hierárquicas diferentes e o Guan naquela data, hora e circunstâncias se encontrava a dormir.
O princípio in dubio pro reo, aqui alegado pelos Recorrentes, é corolário do princípio da presunção de inocência, sendo uma garantia processual penal do acusado pela prática de uma infracção penal, oferecendo-lhe a prerrogativa de não ser considerado culpado por um acto delituoso até que a sentença penal condenatória transite em julgado.
Nesta perspectiva, defendem Ana Prata, Catarina Veiga e José Manuel Vilalonga que, “necessariamente ligado a este princípio, como seu corolário, está o princípio do in dubio pro reo, do qual resulta que (...) se o tribunal permanecer em dúvida sobre a veracidade de certos factos ou sobre a realidade de certa prova ou, no limite, sobre a acusação que impende sobre o arguido, o Juiz deve proferir uma decisão que lhe seja favorável”. In Dicionário Jurídico - Direito Penal e Direito Processual Penal, 2.ª edição, Volume II, Almedina, 2008, pág. 395.
Na mesma esteira, Vasco Grandão Ramos ensina que, “sempre que a prova produzida seja insuficiente e não conduza à formação de um juízo de certeza sobre a existência da infracção ou de que foi o arguido que o cometeu, deve ser absolvido. Na dúvida decide-se a favor do réu”. In Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Colecção Faculdade de Direito - UAN, 2015, pág. 98.
O princípio da presunção de inocência vem consagrado no n.º 2 do artigo 67.º da CRA, ao prescrever que, presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
Igualmente, o princípio em pauta vem consagrado no artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e no artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP), aplicáveis, de entre outros, por força do n.º 3 do artigo 26.º da CRA.
As alegações de que o réu Gun Guohua é inocente, por não ter tomado parte das agressões, nem tido conhecimento dos factos no momento da sua ocorrência, tendo sido o único que negou os factos, não foram acolhidas pelo Tribunal ad quem, por considerar provado o seu envolvimento.
Aliás, consta dos autos, fls. 688-690, que o “réu Gun Guohua foi quem chamou para a sala de jogos, os có-réus Noé Armindo Gonga, João Capitango Catanha e Pedro Munecongo Lutuk e foi ele que iniciou com a agressão, desferiu um violento golpe à vítima Chama Bunene Bienvenue e um outro golpe ao Nkulu Shayumba Dadim com uma das cadeiras que encontrou na sala. De seguida, o mesmo réu (Gun Guahaua) mandou os demais co-réus amarrarem os membros superiores e inferiores dos ofendidos e darem continuidade ao espancamento das vítimas, o que aconteceu. Foi também, o réu Gun Guohua que mandou deslocar as vítimas da sala de jogos, para o rés-do-chão e aí sob o seu comando os co-réus continuaram a espancar as vítimas”.
Ademais, o Acórdão recorrido realça, a fls. 796, que os factos “(...) não suscitam dúvidas de terem os réus cometido os crimes de que vêm acusados, pois os autos descrevem-nos com precisão e clareza para a formação do juízo de certeza de que a acção foi efectivamente praticada pelos réus, sendo que, para além da prova indiciária produzida na fase de instrução preparatória, os réus Shao Yun Bin, Pang Yong Yu, Noé Armindo Gonga, João Capitango Catanha, Pedro Guilherme Neto e Pedro Munecongo Lutiki, com excepção do co-réu Gun Guohua, confessaram prontamente os factos quer na fase de instrução preparatória (fls. 7, 8, 9 e 10), como na audiência de discussão e julgamento da causa (fls. 598, 609 e 612) alegando que não tinham pretensão de pôr termo a vida de uma das vítimas e que apenas pretendiam dar um correctivo às mesmas, uma vez que tentaram ludibriar a partida de jogo que decorria no referido casino. Por fim revelaram-se arrependidos. Outrossim, os ofendidos foram unânimes nas suas declarações prestadas quer na fase de instrução preparatória, como na audiência de discussão e julgamento em apontar como autores dos factos os réus descritos na acusação e pronúncia”.
Isto posto, o Tribunal Constitucional entende que o Acórdão recorrido não ofende o princípio do in dubio pro reo, alegado, aqui, pelos Recorrentes.
c). Sobre a ofensa ao princípio da legalidade
Os Recorrentes consideram que o Acórdão recorrido ofendeu o princípio da legalidade, uma vez que, a pena única aplicada a todos, bem como a má qualificação dos factos e a aplicação de normas que não se coadunam com tudo quanto foi produzido nos presentes autos, não observou o princípio penal segundo o qual “a cada crime a sua pena”.
O princípio da legalidade é essencial para a segurança jurídica e demais valores consagrados na Constituição e na lei. Em sentido amplo, este princípio pressupõe que a actividade das instituições do Estado (seus órgãos e agentes) deve pautar-se no respeito stricto da lei. Neste sentido, Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes defendem que “O Estado de Direito não é apenas um estado constitucional. Ele é na sua essência um estado de direito que se funda no respeito da legalidade (...). A não conformidade dos actos normativos, dos actos administrativos e dos actos dos órgãos do poder local ou de qualquer outra entidade pública apenas são válidos se estiverem em conformidade com a Constituição”. In Constituição da República de Angola anotada, Tomo I, 2014, pág. 200.
Aplicado ao Direito Penal, este princípio assegura aos cidadãos a protecção ante o poder judicial, na ideia segundo a qual não há crime, nem pena, sem prévia lei, ou, se quisermos, nullum crimen, nulla poena sine lege. Dito de outro modo, a aplicação da lei penal obriga ao recurso do princípio da legalidade penal, uma vez que, nenhum facto pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo facto tenham sido instituídos por lei o tipo de delito e a pena correspondente.
Nesta perspectiva, ao referir-se à tipicidade como princípio da legalidade na incriminação, diz Manuel Lopes Maia Gonçalves, que “É necessário que o comportamento humano coincida formalmente com a descrição feita em norma incriminadora, para que possa integrar uma infracção criminal. A lei formula o quadro de situações da vida real que considera deverem ser incriminadas, assim criando os tipos legais de crimes. Adentro deste quadro se manterá o julgador, sem possibilidade de interpretação analógica ou mesmo extensiva, no domínio da incriminação”. In Código Penal Português, na Doutrina e na Jurisprudência, 2.ª Edição, Almedina, 1972, pág. 7.
Outrossim, diz Grandão Ramos que “o princípio da legalidade decorre da natureza do processo e dos interesses tutelados pelo direito penal (interesses fundamentais e disponíveis do Estado), que através dele se realizam. Por isso, este princípio não se compadece com juízos discricionários de utilidade prática ou de casuística conjuntural. É um pressuposto do Estado de direito e a melhor garantia contra o arbítrio do poder, as desigualdades de tratamento processual penal e contra as injustiças”. In Direito Processual Penal — Noções Fundamentais, Colecção Faculdade de Direito — U.A.N, 3.ª Edição, 2003, pág. 80.
Nesta acepção jurídico-penal, o n.º 2 do artigo 65.º da CRA consagra que Ninguém pode ser condenado por crime senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados por lei anterior.
Ora, o Acórdão recorrido considerou que, “(…) cometeram os réus um crime de roubo concorrendo com homicídio frustrado p.p.p. art. 433.º do Cód. Penal em concurso real com 4 (quatro) crimes de homicídio frustrado p.p.p. disposições combinadas dos art.ºs 10.º, 104.º, 349.º e 350.º do mesmo diploma legal, por convolação nos termos do art. 447.º do Cód. de Processo Penal (fls. 797 e 797 verso)”. Portanto, o aresto qualificou os factos e condenou os réus, aqui Recorrentes, nos termos da lei vigente na altura da prática dos actos criminais.
Consta, ainda, do mesmo Acórdão, a referência a circunstâncias agravantes e atenuantes da responsabilidade criminal dos ora Recorrentes, constantes dos artigos 34.º e 39.º, respectivamente do Código Penal, em vigor à data dos factos.
Assim, fica evidente que as leis aplicadas pelo Tribunal ad quem, quer para alterar a qualificação jurídica, quer para aplicar as penas parcelares aos réus, aqui Recorrentes, são as vigentes na altura do cometimento da infracção criminal e, nestes termos, o Tribunal Constitucional considera que o Acórdão recorrido não ofende o princípio da legalidade.
d). Sobre a violação do princípio do direito a julgamento justo e conforme e do dever de fundamentar as decisões judiciais
Os Recorrentes alegam que o Acórdão recorrido, ao alterar a moldura penal aplicada pela 1.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, condenando, assim, todos os Recorrentes na pena única de 22 anos de prisão maior, tendo em conta a elevada intensidade da ilicitude da conduta e da culpabilidade dos mesmos, sem prestar a devida atenção a factos que o Tribunal de primeira instância já tinha decidido, viola o direito ao julgamento justo e conforme.
Ainda neste âmbito, os Recorrentes alegam que o Acórdão recorrido se alicerçou em posições discricionárias, com natureza subjectiva, violando, assim, o dever de fundamentar as decisões judiciais, pois aquela instância não fundamentou a sua decisão de aplicar penas mais graves, tendo em atenção o objecto do recurso interposto e aquilo que foi produzido nos autos.
Assim, a violação ou não do princípio do direito a julgamento justo e conforme será apreciada e decidida conjuntamente com a referida violação do dever de fundamentar as decisões judiciais.
Todos os réus, aqui Recorrentes, foram acusados (fls. 435 a 442), pronunciados (fls. 475 a 480) e, realizado o julgamento, a acção foi julgada procedente porque provada, tendo os mesmos, por convolação nos termos do artigo 447.º do Código de Processo Penal (CPP), sido condenados pelos crimes de sequestro e roubo qualificado.
O Ministério Público interpôs recurso por imperativo legal e os réus, aqui Recorrentes, interpuseram recurso clamando por ponderação na aplicação da pena, nos termos do artigo 84.º e das disposições conjugadas dos artigos 91.º e 94.º, todos do CP e, em consequência, a suspensão da sua execução (fls. 729).
A 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no Acórdão recorrido decidiu, conforme fls. 797 verso, (...) “alterar a qualificação jurídica, sendo os réus condenados por um crime de roubo com o crime de homicídio p.p. pelo artigo 433.º do Código Penal na pena de 20 (vinte) anos de prisão maior e por 4 (quatro) crimes de homicídio frustrado p.p. pelos artigos 10.º, 349.º e 104.º do Código Penal na pena de 12 (doze) anos de prisão maior, a cada um por cada crime. Em cúmulo jurídico, na pena única de 22 (vinte e dois) anos de prisão maior. Fixar a indemnização a título solidário em Kz: 1.500.000,00 a cada um dos ofendidos. No mais se confirma”.
Em matéria de recursos em processo penal, o Tribunal ad quem é livre, nos termos do artigo 447.º do CPP vigente à data da ocorrência dos factos, de rever e modificar (agravando ou desagravando) a sentença do tribunal recorrido, excepto no caso da reformatio in pejus (cfr. 667.º do CPP).
Diz Manuel Lopes Maia Gonçalves que a lei (...) “confere ao tribunal inteira liberdade para alterar a incriminação da pronúncia, ainda que para infracção mais severamente punida, desde que os factos em que se baseia a qualificação jurídico-penal adoptada na sentença constem do despacho de pronúncia ou equivalente. É que, sendo os mesmos elementos de facto em que se apoia a acusação constantes do despacho de pronúncia ou equivalente e da sentença final, não se pode dizer que o réu seja prejudicado no seu direito de defesa, já que se trata só de uma questão de interpretação e aplicação da lei, a que se não pode vincular o tribunal”. In Código de Processo Penal Anotado e Comentado, Almedina, 1972, pág. 595.
No caso sub judice o Acórdão do Tribunal ad quem reproduz a matéria de facto apurada no Tribunal de primeira instância e conclui que “Os factos acima descritos reproduzem no essencial a prova vertida nos autos, suficiente para a responsabilização criminal dos réus. Os factos recortados no acórdão recorrido não suscitam dúvidas de terem os réus cometido os crimes de que vêm acusados, pois os autos descrevem-nos com precisão e clareza para a formação do juízo de certeza de que a acção foi efectivamente praticada pelos réus (...)” (fls. 796).
Porém, na subsunção jurídico-penal dos mesmos factos (fls. 797) estabelece o mesmo Acórdão que “Pela acção praticada, e olhando para os factos, ressalta desde logo a elevada intensidade da ilicitude da conduta e da culpabilidade dos réus. Os mesmos actuaram com dolo directo e particularmente intenso, pois afigura-se que nem sequer ponderaram as consequências do seu comportamento. Assim, com a conduta acima descrita cometeram os réus um crime de roubo concorrendo com homicídio p.p.p. art.º 433.º do Cód. Penal em concurso real com 4 (quatro) crimes de homicídio frustrado p.p.p. disposições combinadas dos art.ºs 10º, 104º, 349º e 350º do mesmo diploma legal, por convolação nos termos do art. 447.º do Cód. de Processo Penal”.
Verifica-se, assim, que o Tribunal ad quem, ao apreciar juridicamente os factos em recurso, procedeu a uma nova qualificação, considerando terem os Recorrentes cometido os crimes de roubo concorrendo com homicídio, em concurso real com quatro crimes de homicídio frustrado, condenando, deste modo, os réus na pena única de 22 anos de prisão maior, para cada um deles, sem aditar os fundamentos, ou seja, sem demonstrar de forma expressa, clara e coerente, as razões de direito que levaram a realizar tal diferenciação na qualificação dos crimes e, em consequência, a alteração da medida das penas.
Portanto, da análise da decisão objecto do presente recurso, verifica-se que o Acórdão recorrido não fundamenta a alteração realizada, pelo que, se fica sem perceber as razões de direito que levaram o Tribunal ad quem a considerar a conduta adoptada pelos Recorrentes como crime de roubo com homicídio, em concurso real com quatro crimes de homicídio frustrado e não como crimes de sequestro e roubo qualificado em que estavam condenados.
Aliás, a este propósito, verifica-se, com alguma estranheza, que as referências da Lei n.º 14/11, de 10 de Fevereiro, a que reiteradamente quer o Acórdão recorrido (fls.793), quer o Acórdão da 1.ª Instância (fls. 703), se socorrem como suporte à qualificação jurídica e consequente condenação no crime de sequestro, não estão em conformidade, pois, com uma data diferente, a referida Lei n.º 14/11, de 18 de Março é a Lei do Conselho Superior da Magistratura Judicial.
As referências textuais estão em conformidade, mas a lei que pune o crime de sequestro e condiz com a condenação dos ora Recorrentes, em primeira instância e aqui convolada, é a Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro, Lei Sobre a Criminalização das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais, que tem por objecto proceder a criminalização de um conjunto de condutas visando adequar a legislação penal angolana à protecção de determinados bens jurídicos fundamentais, que prevê e pune, no âmbito dos Crimes Contra a Liberdade Pessoal, o crime de sequestro nos termos do artigo 15.º, onde no seu n.º 4 dispõe que A pena é de prisão de 3 a 15 anos, se da privação da liberdade resultar a morte da vítima.
A fundamentação de direito consubstancia, no fundo, a determinação, interpretação e aplicação dos preceitos legais aos factos provados, ou seja, são as razões jurídicas que justificam a decisão.
No quadro das dimensões endoprocessual e extraprocessual, a mera evocação, simplista e rígida de uma norma legal, não basta como fundamentação jurídica, pelo que a motivação de direito deve conceber-se como exposição dos critérios interpretativos onde o juiz se escuda para aplicar a lei, tornando pública e transparente uma decisão onde se assumiu uma escolha.
Ademais, para além de se tratar de uma nova qualificação, esta é acentuadamente agravada, pois os réus viram, com surpresa, as suas condenações passarem de 9 e 15 anos de prisão maior, para 22 anos de prisão maior.
Assim, o Acórdão recorrido peca por ausência de fundamentação, quer em sede de enquadramento jurídico-penal quer em sede de medida da pena, porquanto, em face do agravamento da pena, os réus, que apresentaram recurso, têm direito a esclarecimento sobre as razões dessa alteração.
Visitando a jurisprudência desta Corte, o Acórdão n.º 394/2016, analisando a constitucionalidade de uma decisão do Tribunal Supremo que, tal como no caso em concreto, alterou a qualificação jurídica dos crimes feita pelo Tribunal de 1.ª instância, ressalta que (…) “no presente caso e tendo apreciado o Acórdão recorrido considera este Tribunal que foram apresentados de modo bastante os fundamentos de facto que sustentam a convicção da existência de crime, assim como os fundamentos de direito que qualificam tal ilícito penal como burla por defraudação (como constava na acusação e na pronúncia) e não como abuso de confiança (conforme sentença de 1.ª instância que o Acórdão recorrido modificou)”.
Conforme defendido por Gomes Canotilho e Vital Moreira, “As decisões dos tribunais são fundamentadas nas formas previstas na lei - obedecem a várias razões extraídas do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais. Sob o ponto de vista da juridicidade estatal (princípio do Estado de direito), o dever de fundamentação explica-se pela necessidade de justificação do exercício do poder estadual, da rejeição do segredo nos atos do Estado, da necessidade de avaliação dos atos estaduais, aqui se incluindo a controlabilidade, a previsibilidade, a fiabilidade e a confiança nos atos do Estado. A estes exige-se clareza, inteligibilidade e segurança jurídica. Sob o ponto de vista do princípio democrático, para além de algumas das razões explicitadas a propósito do princípio da juridicidade, podem acrescentar-se as exigências de abertura e transparência da actividade judicial, de clarificação da responsabilidade jurídica (e política) pelos resultados da aplicação das leis, a indispensabilidade de aceitação das sentenças judiciais e dos seus fundamentos por parte dos cidadãos. Finalmente, sob o prisma da teleologia dos princípios processuais, a fundamentação das sentenças serve para a clarificação e interpretação do conteúdo decisório, favorece o autocontrolo do juiz responsável pela sentença, dá melhor operacionalidade ao heterocontrolo efectuado por instâncias judiciais superiores e, em último termo, contribui para a própria justiça material praticada pelos tribunais”. In Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição, revista, 2010, Págs. 526 e 527.
No mesmo sentido Jorge Miranda e Rui Medeiros, apregoam que “Além disso, quanto à fundamentação em matéria de facto, máxime da sentença final, pode dizer-se que a exigência constitucional de fundamentação racionaliza o princípio, vigente no direito processual português, da livre apreciação da prova, excluindo o carácter voluntarístico ou subjectivo da sentença. Com efeito, apesar de julgar a matéria de facto de acordo com a sua consciência, o juiz deve explicar objectivamente, através de critérios baseados na experiência comum, em juízos de probabilidade, por que razão formou a sua convicção em determinado sentido e não noutro.
A exigência de fundamentação não constitui uma simples exigência formal desprovida de sentido. A fundamentação cumpre, simultaneamente, uma função de caráter objectivo — pacificação social, legitimidade e auto-controlo das decisões — e uma função de caráter subjectivo — garantia do direito ao recurso, controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários”. In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, págs. 70 e 71.
No âmbito do Direito penal, como dizem Mário Ferreira Monte e Flávia Noversa Loureiro, “A decisão tem de ser sempre fundamentada. Porque, não se esqueçam de uma coisa: vigora o princípio da livre apreciação da prova. Este princípio significa que o juiz deve apreciar segundo a sua livre convicção, mas de acordo com as regras da experiência. E, portanto, tem de fundamentar objectivamente, de forma motivada, dizer por que razão é que está a decidir assim. Na sentença, tem de haver essa fundamentação. Caso contrário, é facilmente impugnável”. In Direito Processual Penal, AEDUM, 2009, pág. 319.
O artigo 158.º do Código do Processo Civil (CPC), aplicável ao processo constitucional por força do artigo 2.º da LPC, estabelece que: 1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.
Já a Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum (LOFTJC), vigente à data do aresto recorrido, estabelece no n.º 1 do artigo 17.º que: 1. As decisões dos Juízes sejam por via de acórdãos, sentenças ou meros despachos são sempre fundamentados de facto e de direito. O n.º 2 deste mesmo preceito legal vai um pouco mais além ao estabelecer que: 2. A fundamentação não pode consistir na mera evocação de uma norma legal nem na adesão, por parte do juiz, às razões e alegações evocadas por qualquer das partes, incluindo o Ministério Público. (Sublinhado nosso).
Portanto, nos termos deste preceito legal, a LOFTJC consagra, de forma inquestionável, o dever de fundamentação expressa das decisões judiciais e das sentenças, penal em especial, como garantia constitucional imanente a um Estado Democrático de Direito.
De referir que a nova Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum (LOFTJC) - Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto - que revoga a suprareferenciada Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, do mesmo nome, mantém o dever de fundamentação ao prescrever, no artigo 17.º que As decisões dos Tribunais da Jurisdição Comum, que não sejam de mero expediente, são fundamentadas na forma prevista na lei.
Além do mais, segundo a alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, a sentença é nula quando não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Por outro lado, embora não aplicável ao caso vertente, porque a data da sua entrada em vigor é posterior à decisão recorrida, é, ainda, de levar em conta que o n.º 3 do artigo 473.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA), no sentido de imprimir maior garantia ao direito de defesa do réu, veio estabelecer que, quando o Tribunal superior qualificar diversamente os factos (…) deve, antes de decidir, notificar o arguido, o Ministério Público e o assistente para, no prazo de oito dias, se pronunciarem, querendo, sobre a questão da nova qualificação jurídica suscitada no recurso.
Neste sentido, a fundamentação de direito consubstancia, no fundo, a determinação, interpretação e aplicação dos preceitos legais aos factos provados. São os motivos de direito, ou seja, são as razões jurídicas que justificam a decisão.
Segundo o Acórdão n.º 122/2010 desta Corte Constitucional, “Este dever de fundamentação das decisões judiciais decorre directamente do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRA, pois este princípio obriga a que se “desenvolva toda uma dimensão garantística que para além de protecção da liberdade individual, projecta exigências diferenciadas sobre a actuação do poder que de alguma forma possa afectar os particulares”.
A imposição deste dever legal visa, essencialmente, afastar o arbítrio judicial e fiscalizar a actividade jurisdicional, impondo ao juiz a necessidade de motivar os seus pronunciamentos decisórios e conferindo legitimidade democrática e constitucional, apresentando-se, pois, como uma garantia de racionalidade, imparcialidade e ponderação da decisão judicial.
O dever de fundamentação constitui, não só, um elemento crucial para o autocontrolo judicial, como também visa assegurar o direito ao recurso, o que é possível apenas mediante exteriorização dos fundamentos da decisão adoptada.
Neste contexto, a falta de fundamentação de direito, ofende directamente o princípio do direito a julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, na medida em que uma decisão conforme, é sempre uma decisão fundamentada.
O direito a julgamento justo e conforme é um direito fundamental que visa concretizar o afastamento dos casos de injustiça, pois ampara qualquer cidadão contra intervenções estatais arbitrárias, dando-lhes segurança para que não sejam privados de suas liberdades, sem antes enfrentarem um julgamento justo, pautado na lei., Segundo Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes “O direito a julgamento justo é um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. (…) por outro lado, os juízes e os outros operadores da justiça têm de ser tecnicamente capazes de responder às necessidades dos processos por mais complexos que sejam”. In Constituição da República, Anotada, Tomo I, 2014, pág. 398.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional considera que o Acórdão recorrido viola o direito a julgamento justo e conforme, consagrado no artigo 72.º da CRA, na medida em que procede à alteração da moldura penal aplicada pelo Tribunal de 1.ª instância condenando todos os Recorrentes na pena única de 22 anos de prisão maior, sem, no entanto, apresentar as razões de direito que fundamentam a realização de tal operação.
Face ao exposto devem os autos baixar ao Tribunal Supremo, para os efeitos preconizados nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da LPC.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: Dar provimento ao recurso interposto e, em consequência, declarar inconstitucional o Acórdão recorrido, por ofensa do princípio do direito a julgamento justo e conforme, consubstanciada na omissão do dever de fundamentação.
Sem custas pelos Recorrentes, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Dezembro de 2022.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata