ACÓRDÃO N.º 793/2022
PROCESSO N.º 937-C/2021
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
João Gomes Bartolomeu, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional impetrar Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade contra o Acórdão proferido no Processo n.º 722/18 pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo que julgou improcedente o pedido de impugnação da decisão da 3.ª Secção da Sala de Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, prolactada no âmbito de uma Acção de Recurso em Matéria Disciplinar, interposta contra a SONANGOL LOGÍSTICA, Lda.
No Acórdão impugnado, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo decidiu manter a decisão da primeira instância, que julgou procedente a medida de despedimento disciplinar aplicada contra o aqui Recorrente pela SONANGOL LOGÍSTICA, Lda., acolhendo, no essencial, o fundamento da existência de justa causa para o efeito.
Nesta Instância Constitucional, o Recorrente, inconformado, considera que o aresto posto em crise está ferido de inconstitucionalidade, na medida em que viola os princípios da legalidade, do julgamento justo e conforme, do contraditório, da ponderação, da ampla defesa e do processo equitativo, bem como o direito à igualdade e não discriminação e ainda os princípios da estabilidade do emprego, do favor laboratoris e o direito ao trabalho, reflectidos, respectivamente, nos artigos 6.º, 174.º, n.º 2, 177.º, n.º 1, 72.º, 29.º, n.º 4, 23.º e 76.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA).
Este entendimento é sustentado nas alegações submetidas à esta Corte, em que o Recorrente, em síntese, vem dizer o que se segue:
Ante o exposto, termina pedindo que o Tribunal Constitucional declare a inconstitucionalidade do Acórdão objecto do presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade e, em consequência, a anulação de todo o processo, incluindo o disciplinar.
O processo foi à vista do Ministério Público que, na sua promoção, pugnou pelo não provimento do Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, considerando, no essencial, que “(…) o Recorrente, mais do que estar em desacordo com o acórdão recorrido, demonstra sobretudo inconformação com o processo disciplinar, com as provas do âmbito deste e pela maneira como foi conduzido pela entidade empregadora, pois, em várias ocasiões, sugeriu que o Tribunal no seu acórdão deve remontar àquela fase, fazer considerações a respeito e produzir nova prova”. Prossegue, referindo que, “um tal exercício levaria esta instância a reapreciar o mérito do acórdão recorrido para lá das alegadas inconstitucionalidades, o que perpassa a competência desta Magna Corte. Mais aduz que “(…) tratando-se de um processo em matéria disciplinar e, sem demérito para o poder que o juiz tem no sentido de diligenciar para apurar a verdade e realizar a justiça, à instância judicial do trabalho cabe conhecer do mérito, fiscalizando essencialmente as formalidades e demais elementos de prova constantes do processo disciplinar (elemento central) e, a partir daí, aferir da validade ou não do despedimento”. Conclui, assim, acentuando que (…) dentro dos poderes de cognição e dos limites do recurso, o Acórdão recorrido cumpriu com este desiderato.”
Colhidos os vistos cumpre, agora, apreciar e decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, garantias e liberdades, previstos na Constituição, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis.
A decisão proferida pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo esgota, deste modo, a cadeia recursória em sede de jurisdição comum.
III. LEGITIMIDADE
A legitimidade processual decorre do interesse directo em demandar e ou contradizer, tal como estatui o n.º 1 do artigo 26.º do Código do Processo Civil, CPC, aplicado subsidiariamente aos processos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 2.º da Lei nº 3/08, de 17 de Junho.
Estabelece a alínea a) do artigo 50.º da LPC que têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade o Ministério Público e as pessoas, que de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
O Recorrente é parte vencida no processo cujo Acórdão é objecto da presente sindicância. Tem, como tal, legitimidade processual activa para recorrer.
IV. OBJECTO
Constitui objecto deste recurso é verificar a alegada inconstitucionalidade do Acórdão proferido no Processo n.º 722/18 pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, por violação de princípios, direitos e garantias plasmados na Constituição da República de Angola.
V. APRECIANDO
O Recorrente, ao abrigo do que estipula a alínea a) do artigo 49.º da LPC, peticiona a declaração de inconstitucionalidade do Acórdão da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo que decidiu pela improcedência do pedido de anulação da medida de despedimento disciplinar contra si aplicada e que havia sido confirmada, em sede da Acção de Recurso em Matéria Disciplinar, que correu trâmites na 3.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda
Assim, à luz dos parâmetros jurídicos constitucionais, cabe, pois, a esta Corte Constitucional avaliar em que medida o julgamento efectuado pelo Tribunal recorrido, reflectido na decisão ora posta em crise, traduz uma concreta violação dos já acima identificados princípios, direitos e garantias constitucionalmente consagrados.
Deste modo, vejamos.
É já considerável a jurisprudência deste Tribunal Constitucional referente à tutela de direitos fundamentais (Vide Acórdãos n.ºs 609/2020, 693/2021 e 747/2022) incidente sobre relações jus laborais e à densificação, em face do caso concreto, de alguns dos princípios alegadamente violados no processo sub judice, como os princípios da legalidade, do julgamento justo e conforme, do contraditório, da ponderação, da ampla defesa, da estabilidade do emprego e do favor laboratoris.
Assim:
Como tem sido reiterado, o princípio da legalidade, reflectido no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, constitui uma das traves mestras do Estado democrático de direito, que se subordina à Constituição e se funda na legalidade, figurando como um dos pressupostos da segurança jurídica e, consequentemente, da segurança social. É, assim, percebido como um princípio garantia de direitos e liberdades fundamentais e também como princípio limitador da acção dos órgãos do poder público, obrigados que estão a agir dentro da esfera de competências fixada pelo legislador.
É, também, no âmbito da presente compreensão que se insere a actuação dos juízes, cujas funções estão, do mesmo modo, balizadas pelo dever de respeitar e fazer respeitar a Constituição e a lei (artigo 179.º da CRA). Daqui decorre que os feitos submetidos à apreciação do Tribunal sejam decididos em conformidade com as normas e princípios constitucionais e legais em vigência expressa ou implícita no ordenamento jurídico. E esta é, como sabido, uma obrigação que se reflecte no dever de fundamentação da decisão judicial que, em si mesmo, é também compreendido como emanação do princípio da legalidade.
Nos presentes autos é entendimento do Recorrente que o Tribunal Supremo não apreciou a legalidade e validade do despedimento, nomeadamente quanto à competência para mandar instaurar o processo disciplinar, aos requisitos da convocatória e aos procedimentos do processo disciplinar violados pela empresa.
Antes de tudo, impõe-se reiterar que o âmbito material da sindicância levada a cabo por este Tribunal tem que ver, em termos gerais, com as eventuais violações de direitos e princípios constitucionais em sede da aplicação do direito ao caso concreto, o que, consequentemente, se vai reflectir no juízo de mérito relativo à contenda submetida a julgamento.
Assentes neste pressuposto e tendo em conta que a apreciação da inconstitucionalidade incide sobre o que configura o thema decidendum, é mister referir que o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre a legalidade e validade do processo disciplinar nos termos em que nesta Instância a questão é colocada, até mesmo se consideradas as quatro questões definidas como objecto da Apelação, designadamente: Saber se a decisão ora recorrida demonstrou ou não em que termos o trabalhador Eliseu Francisco Alfredo alegadamente confirmou ou não o desvio de combustível em conluio com o Apelante (aqui Recorrente); Saber se o Tribunal a quo teve em conta a existência ou não de justa causa imputada ao trabalhador para fundamentar a sua decisão; Saber se o Tribunal a quo deveria ou não ouvir as partes para decidir de forma justa e sã; e Saber se a decisão recorrida violou ou não os princípios do favor laboratoris e da estabilidade do emprego, sendo, por isso, inconstitucional.
É facto que a matéria subjacente à legalidade e validade do despedimento, tal como equacionada pelo Recorrente (competência para mandar instaurar o processo disciplinar, requisitos da convocatória e procedimentos do processo disciplinar), afigura-se de particular relevância no quadro da tutela e protecção do direito ao trabalho, configurado, in casu, por meio da relação jurídica de emprego, considerada, à partida, como uma relação de poder/sujeição e, como tal, desequilibrada em face do maior poder económico da entidade empregadora.
Outrossim, o facto de o processo disciplinar com o seu pendor pedagógico e preventivo relativamente ao cometimento da infracção por parte do trabalhador, reveste-se, também, de cariz sancionatório, destinado a apurar e punir infracções disciplinares, em que o despedimento configura a medida de ultima ratio e, como tal, sujeito a regras e princípios legais.
Tal pressupõe, por um lado, que uma decisão no sentido da não subsistência da relação jurídica laboral seja argumentativamente alicerçada na lei e no direito, o que, como já acentuado, materializa o princípio da legalidade de qualquer decisão judicial. Por outro lado, pressupõe que ao trabalhador sejam asseguradas todas as garantias que conformam o seu direito de defesa, como, por exemplo, o direito/obrigação de ser ouvido em entrevista, o que também traduz uma dimensão do princípio do contraditório e confere tutela efectiva ao procedimento em questão.
Ora, como decorre da lei e à excepção da admoestação verbal, a aplicação de qualquer sanção disciplinar depende da observância de um conjunto de procedimentos que, quando incumpridos, ferem de nulidade o decretamento da medida disciplinar que estiver em causa (artigo 48.º da Lei, n.º 7/15, de 15 de Junho, Lei Geral do Trabalho – LGT).
Sobre o julgador, porque vinculado ao dever de proferir decisão conforme as normas legais e ao direito aplicado ao caso concreto, impende, assim, a obrigação de sindicar o cumprimento dos pressupostos legais que conformam a validade da medida disciplinar, por forma a que não resulte afectada, de modo injusto e imprevisível, a relação jus laboral, afinal o objecto do direito fundamental ao trabalho, na sua dimensão de direito de protecção.
Assim sendo, e ainda que o objecto do presente recurso extraordinário de Inconstitucionalidade incida sobre o Aresto da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, importa, contudo, notar que a acção que está na origem do recurso para esta Instância Constitucional, a acção de Recurso em Matéria Disciplinar, tem por base o processo disciplinar. Sobre a questão trazida à apreciação desta Corte Constitucional, pode ler-se na sentença, proferida em sede da 1.ª Instância, o seguinte: “(…) no que respeita à regularidade da tramitação do procedimento disciplinar sub judice, quanto à forma nada houve a impugnar pelo Recorrente verificando-se, com efeito, que o trabalhador foi regularmente convocado e ouvido em auto de entrevista, tendo sido decidida e comunicada a medida disciplinar dentro do prazo legal, conforme impera do disposto nos artigos 48.º e seguintes da LGT N.º 7/15, de 15 de Junho, por conseguinte não enfermando o processo disciplinar de vício de forma conducente à sua nulidade”. (fls. 88).
Sendo a aferição da regularidade do procedimento disciplinar a questão a conhecer pelo Tribunal, sob pena de omissão de pronúncia (alínea d) do artigo 668.º, do CPC), facto é que o juízo de mérito relativamente à sua legalidade e validade, firmado pela 3.ª Secção da Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Luanda, não foi afastado em sede do Tribunal ad quem.
Na sua decisão, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo não deixou de sindicar a regularidade do processo disciplinar, apensado aos autos, ainda que para verificar, em concreto, a existência ou não de justa causa para o despedimento, o que também integra o âmbito da fiscalização da legalidade e validade do processo aqui em questão.
A par disso, este Tribunal Constitucional também constata que, nos autos referentes ao processo disciplinar, a decisão de o instaurar não foi tomada pela Directora dos Recursos Humanos, como alega o Recorrente, mas antes pelo Presidente da Comissão Executiva da SONANGOL LOGÍSTICA, Lda. Foi ainda constatado existir, como parte do processo, um relatório de inquérito que fundamenta a acusação de descaminho de produtos petrolíferos proferida contra o Recorrente (Vide fls. 4 e 7 do processo disciplinar).
Destarte, tendo os recursos ordinários como objecto a legalidade da decisão recorrida, o que significa, com as devidas excepções, que em sede recursiva não são apreciadas questões que não tenham sido suscitadas em 1.ª instância, e verificando-se não ter ocorrido omissão de pronúncia por parte do Tribunal Supremo, relativamente à legalidade e validade do processo disciplinar, como alegado pelo Recorrente, não se descortina a essência dos fundamentos de direito conducentes à violação do princípio da legalidade.
Associada à questão acima identificada, o Recorrente alega, além da não verificada violação do princípio da legalidade, como acima concluído, terem sido também violados o direito ao julgamento justo e conforme, os princípios do contraditório e da ponderação, bem como o direito ao processo equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 29.º da CRA.
Da sindicância aos princípios e direitos fundamentais, importa avaliar como, ante o caso concreto, se concretiza a sua ofensa ou violação, tendo em atenção as diferentes dimensões em que estes se materializam, sendo certo que os princípios e direitos tidos como violados corporizam realidades que se encontram interligadas, em resultado da sua aplicação.
Ora, como tem enfatizado esta Corte Constitucional, o direito ao julgamento justo e conforme, consagrado no artigo 72.º da CRA, incorpora quer uma dimensão formal, (associada às garantias do processo equitativo, que integram o acesso à justiça, a imparcialidade e independência do Julgador, a igualdade das partes processuais, o direito ao contraditório e de defesa, a publicidade dos actos processuais, a celeridade processual e entre outros, o direito à fundamentação da decisão judicial), quer uma dimensão material ou substancial (directamente relacionada com a resolução do caso concreto).
O direito ao julgamento justo incorpora, como se ilustra, a dimensão do processo equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 29.º da CRA, que, doutrinalmente e na perspectiva de garantia de uma tutela judicial efectiva, é, em resumo, definido como um processo informado, nas diferentes fases processuais, pelos princípios materiais de justiça, como já acima enunciado.
Por seu lado, o princípio do contraditório, reflectido no n.º 2 do artigo 174.º da CRA e o direito de defesa, estão interligados, representando concretizações um do outro e corolário do princípio do Estado democrático de direito.
No âmbito deste princípio, como sabido, está em causa assegurar a bilateralidade dos actos e termos do processo e a possibilidade de as partes oferecerem oposição, de modo a que seja plenamente garantida a sua igualdade, ou seja, de modo a que as partes litiguem com paridade de armas.
Nos dizeres de Lebre de Freitas, o princípio do contraditório configura uma garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. In Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais, Coimbra Editora, 1996, pág. 96.
Por sua vez, o princípio do contraditório configura uma manifestação do próprio direito de defesa, enquanto prerrogativa que é conferida às partes processuais para invocar as suas razões de facto e de direito sobre a contenda judicial, socorrendo-se de todos os meios probatórios e institutos associados para fazer valer os seus argumentos e pretensões em juízo.
Por conseguinte, é de assumir que ao Recorrente não foi coarctado o direito de influenciar activamente o desenrolar do processo e o seu resultado, não obstante esse resultado estar dependente da convicção formada pelo Tribunal a partir dos factos constantes do processo e da subsunção desses factos às normas jurídicas, ao abrigo de um processo de interpretação justificável no plano da motivação, da racionalidade, da prudência e da ponderação.
Por outro lado, importa não ignorar, como já referido, que na origem dos presentes autos está a acção de Recurso em Matéria Disciplinar, processada nos termos dos artigos 14.º e seguintes da Lei n.º 22-B/92, de 9 de Setembro, que incide sobre a fiscalização do processo disciplinar, o que significa, como se lê no Acórdão ora posto em crise, “ver se todas as fases do mesmo e os respectivos prazos foram devidamente observados e, por fim, aferir-se da existência ou não de Justa causa. Prosseguindo, lê-se, ainda, que nesta acção (recurso em matéria disciplinar) não se deve produzir prova já realizada no processo disciplinar, tal como preceitua o nº 2 do artigo 18.º da Lei n.º 22-B/92, salvo naqueles casos em que tal seja estritamente necessário para o apuramento da verdade e a realização da justiça (…)”. E este não foi o caso, como se depreende dos autos.
O Tribunal, em 1.ª Instância, não só procedeu à aferição da regularidade do processo disciplinar e deu como provados os factos carreados ao processo, como concluiu no sentido de existir justa causa para o despedimento disciplinar, juízo decisório que foi mantido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo.
No seu Acórdão, esta Câmara refere, a fls. 230, o seguinte: “(….) analisado o processo disciplinar apensado aos autos, do relatório de inquérito, a pág. 4, ficou provado que o ora Apelante (aqui Recorrente) participou de um grupo de colegas de serviço que “tinha como missão” subtrair fraudulentamente combustíveis da Apelada (SONANGOL LOGÍSTICA, Lda.). Que o Apelante tinha, com demais colegas, em conluio, a incumbência de desconectar o sistema na sala e na placa, para permitir que a programação do abastecimento de combustíveis fosse feita de forma manual, para aí colocar as quantidades que lhes aprouvessem, sem o conhecimento da Apelada. Com o seu comportamento, o Apelante violou o dever de lealdade, previsto nas alíneas d) e g), ambas do artigo 44.º da LGT, o que constitui, a nosso ver, justa causa, disciplinar nos termos da alínea g), do artigo 206.º, também da LGT”.
É óbvio que a existência de situação susceptível de configurar justa causa disciplinar poderia eventualmente não resultar na aplicação da medida disciplinar de despedimento. Porém, a sindicância que é requerida a este Tribunal constitucional não se dirige a análise das questões de legalidade decorrentes da aplicação do direito ordinário. O parâmetro de aferição aqui em causa tem que ver com a violação de princípios, direitos e garantias constitucionais. E nesta medida, do processo sub judice, não se extraem fundamentos de facto e de direito que permitam ajuizar no sentido da inconstitucionalidade da decisão objecto de impugnação.
A fundamentação jurídica expendida no Acórdão recorrido legítima, assim, a decisão tomada à luz da legalidade ordinária, pelo que, em face das razões fáctico-jurídicas que motivam o que foi decidido, entende este Tribunal não ser de colocar em causa os princípios referidos.
Como já assinalado, o direito ao trabalho está consagrado no artigo 76.º da CRA e, igualmente, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 23.º) ou no Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (artigo 6.º), instrumentos jurídicos internacionais que integram a ordem constitucional angolana, por força do n.º 3 do artigo 26.º da CRA.
Enquanto direito fundamental, o direito ao trabalho comporta, como se sabe, uma dimensão de direito de defesa, o que pressupõe, lato sensu, a garantia de liberdade de exercício de uma profissão e o dever, por parte dos poderes públicos, de não impedir esse livre exercício, pese eventuais restrições legais. Integra, igualmente, uma dimensão de protecção, que se traduz no facto de se reconhecer neste direito uma posição jurídica fundamental da qual decorre o direito de exigir do Estado protecção contra ingerências lesivas de terceiros, incluindo do próprio Estado. Neste âmbito, se pode incluir a protecção contra o despedimento arbitrário ou sem justa causa.
Na dimensão de protecção importa atender, ainda, que o bem protegido não se cinge apenas ao direito ao trabalho. Incide, igualmente, como já aflorado, sobre a relação jurídica de emprego, caso esta já se encontre constituída.
No seu número 4, o artigo supracitado dispõe sobre a ilegalidade do despedimento sem justa causa e sujeita a entidade empregadora, se for o caso, ao dever de justa indemnização, articulado que, deste modo, reflecte a consagração do princípio da estabilidade no emprego, uma das manifestações inseridas no âmbito da protecção do direito ao trabalho.
Do princípio em abordagem decorre, assim, o direito de qualquer trabalhador conservar o seu emprego desde que não exista Justa causa objectiva que determine o seu despedimento, ainda que tal aconteça contra a vontade da entidade empregadora.
A dimensão de protecção subjacente ao direito ao trabalho manifesta-se, também, no momento de aplicação das normas jus laborais, momento que, à luz da axiologia deste ramo de direito, é parametrizado pelo recurso ao princípio do favor laboratoris. Deste resulta, em termos gerais, que ao trabalhador seja conferida tutela privilegiada, na perspectiva de compensar o desequilíbrio típico da relação jurídica de trabalho.
Ora, ainda que o princípio da protecção do trabalhador conforme toda a estruturação das relações de trabalho que, na medida do possível, devem perdurar no tempo, também neste particular não se descortinam os fundamentos de direito conducentes, no caso vertente, à violação deste princípio, tanto na dimensão que se relaciona com a estabilidade no emprego, como na do favor laboratoris.
No Acórdão impugnado é reconhecida a existência de justa causa, materializada na participação do Recorrente no descaminho de combustível, ilícito que foi considerado infracção disciplinar grave e insusceptível de fazer perdurar o vínculo de trabalho.
Relativamente ao princípio da igualdade, previsto no artigo 23.º da CRA, o Recorrente alega a sua violação pelo facto de todos os trabalhadores despedidos, nas mesmas circunstâncias e altura, terem sido reintegrados.
Como tem observado este Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade, também um dos princípios fundantes do Estado democrático de direito, pode ser perspectivado em face de duas dimensões distintas. Uma relativa à igualdade formal que, stricto sensu, significa igualdade perante a lei ou igualdade na aplicação da lei, o que pressupõe que a lei seja aplicada a todos nos mesmos termos e condições, ou seja, à margem de quaisquer critérios de diferenciação, tendo em vista o estabelecido no artigo 23º da CRA (1- Todos são iguais perante a Constituição e a lei.). Uma segunda referente à igualdade substancial ou material.
Nesta dimensão (igualdade substancial) está em causa reconhecer e legitimar a existência de desigualdades, tendo em conta factores concretos (materiais ou substanciais) de diferenciação (idade, género, condições sociais, económicos ou culturais e outros), o que implica tratar desigualmente os que se encontram em situação desigual, na medida em que um tratamento igual redundaria em situação de desigualdade, ofensiva ao princípio da igualdade.
Acontece, porém, que a questão relativa à violação do princípio da igualdade não integra o objecto da Apelação decidida em sede da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, estando, como tal, fora do âmbito do controlo deste Tribunal, pois que desprovido de fundamentos de direito que permitam avaliar os critérios que dariam lugar a um juízo valorativo sobre a alegada violação deste princípio.
Nestes termos,
Decidindo:
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: negar provimento ao presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda , aos 14 de Dezembro de 2022.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva (declarou-se impedida)
Dr. Simão de Sousa Victor
Dra. Victória Manuel da Silva Izata