ACÓRDÃO N.º 794/2022
PROCESSO N.º 969-C/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Elisa Rangel Nunes, melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 123/2016, pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo.
Consta dos autos que a Recorrente, identificada como Elisa Rangel Nunes, propôs um Recurso Contencioso de Impugnação de Acto Administrativo, que correu termos na Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, sob o Processo n.º 201/2008, em que pediu a declaração de nulidade do acto administrativo praticado pelo Instituto Nacional de Segurança Social (INSS), o pagamento com efeito retroactivo a partir de Janeiro de 2008 da diferença de 2/3 do valor mensal da pensão a que julga ter direito, bem como o pagamento de juros legais e de mora sobre o valor em dívida, até à data do efectivo pagamento, e a condenação do INSS nas custas totais do processo.
Em face dos pedidos considerados incompatíveis, pois ao pedido de declaração de nulidade a Recorrente cumulou outros pedidos condenatórios, a Juíza Conselheira Relatora convidou a Recorrente a proceder ao aperfeiçoamento do seu Requerimento Inicial, sob pena de arquivamento dos autos.
Por considerar que não foi cumprido este desiderato, a Juíza Conselheira Relatora, em exposição, propôs à Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo o arquivamento dos autos e, em consequência, foi elaborado por este Tribunal o Acórdão a ordenar o arquivamento dos autos.
Inconformada com a decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, a Recorrente interpôs recurso de Agravo, que correu termos no Tribunal Pleno e de Recurso, tendo, então, sido negado provimento ao recurso e, em consequência confirmado o Acórdão recorrido.
Insatisfeita com a decisão do Tribunal Pleno e de Recurso, a Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), conjugado com o artigo 13.º da Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, por inferir que o referido Acórdão viola o seu direito à reforma – direito à saúde e à protecção social, antes consagrado no n.º 1 do artigo 47.º da Lei Constitucional de 1992 e hoje no n.º 1 do artigo 77.º da CRA.
A Recorrente apresentou, em síntese, as seguintes alegações:
A Recorrente concluiu pedindo ao Tribunal Constitucional para dar provimento ao presente recurso e declarar inconstitucional o Acórdão proferido pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo por violação dos direitos e das garantias preceituadas no n.º 1 do art.º 77.º, art.º 29, art.º 6, art.º 72.º e no n.º 2 do art.º 226.º, todos da CRA.
O processo foi à vista do Ministério Público, que, promoveu, em síntese, o seguinte:
A decisão do Tribunal recorrido assenta no facto de o contencioso administrativo angolano não admitir cumulação de pedidos que implique, simultaneamente, decisão declarativa e condenatória como pretende a Recorrente.
Ora, do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, extrai-se a conclusão de que o recurso contencioso de impugnação de acto administrativo só pode abranger ou pedido de anulabilidade ou declaração de invalidade (nulidade ou inexistência) do acto. Isto é, a impugnação do acto administrativo faz-se mediante recurso contencioso de anulação, pois, não é admissível o pedido de condenação da administração pública.
Nesse sentido, a interpretação feita pelo Tribunal recorrido não merece reparo.
No entanto, considerando que no caso sub judice está em causa um direito fundamental reconhecido pelo artigo 77.º n.º 1 da CRA ao cidadão, entendemos que este direito deveria prevalecer ante a disposição do direito infraconstitucional e procedimental.
Havendo cumulação de pedidos incompatíveis e verificando-se que um deles se enquadra no espírito e letra da norma referida, entende o Ministério Público, que o Tribunal deveria conhecer deste, isto é, do pedido de anulação do acto administrativo, afastando os outros por incompatibilidade.
Nestes termos, pugnamos pelo provimento do pedido.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional - LPC, bem como da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho — Lei Orgânica do Tribunal Constitucional - LOTC.
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49.º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso
III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte no Processo n.º 1932/12, que correu os seus termos na 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual (...) podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (...) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem como objecto apreciar e decidir se o Acórdão prolactado pelo Tribunal Pleno e de Recurso, no âmbito do Processo n.º 123/2016, ofendeu ou não princípios e direitos constitucionalmente protegidos.
V. APRECIANDO
A Recorrente pede no recurso sub judice, no âmbito dos princípios, direitos e garantias constitucionais, a apreciação da decisão do Tribunal Pleno e de Recurso que negou provimento ao recurso e, em consequência, confirmou a decisão de arquivamento dos autos, prolactada pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro, do Tribunal Supremo, nos termos da alínea f) do artigo 41.º e do artigo 44.º, ambos do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo, por não ter a ora Recorrente aperfeiçoado o Requerimento Inicial.
Assim, cabe ao Tribunal Constitucional apreciar e resolver se o Acórdão recorrido ao decidir pelo arquivamento do processo inerente ao direito à pensão por reforma da Recorrente, consagrado nos artigos 76.º e 77.º da CRA, ofende ou não o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA).
Então Vejamos:
A Recorrente é pensionista do Instituto Nacional de Segurança Social (INSS) desde Janeiro de 2008 e, tendo, no mês de Março do mesmo ano, se apercebido da redução do montante da sua pensão, sem qualquer fundamento, interpôs recurso contencioso de impugnação do referido acto administrativo junto da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que decidiu pelo arquivamento do processo. Inconformada, recorreu junto do Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, que veio a confirmar tal decisão.
Atente-se que, no caso vertente, está em causa um direito constitucional, o direito à protecção social rectius o direito à reforma (artigo 77.º da CRA), que, devido ao arquivamento do processo, quer a Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro, quer o Tribunal Pleno e de Recurso, ambos do Tribunal Supremo, não se pronunciaram sobre o fundo da questão, ou seja, sobre a substância do pedido formulado pela Recorrente.
É de realçar, que no princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva integram-se direitos e garantias constitucionais reconhecidos aos cidadãos, que visam promover a actividade jurisdicional, a fim de fazer valer de modo pleno direitos e interesses legalmente protegidos.
Neste sentido, J. J. Gomes Canotilho, ensina que o direito de acesso aos tribunais é o ponto de partida para se usufruir de todas outras garantias que o processo faculta aos intervenientes da causa. De outro modo, caso haja uma clara negação deste direito, não se poderá falar de uma eventual tutela jurisdicional dos direitos, razão pela qual toda e qualquer construção de raciocínio em volta do princípio em causa deve, indubitavelmente, valorizar este pormenor. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, 17.ª Reimpressão, Editora Almedina, 2003, pág. 433.
O acesso aos tribunais pressupõe a observância de requisitos processuais, materialmente adequados à Constituição, para a acção a que se pretende e, a este respeito, JJ Gomes Canotilho diz que O direito de acesso aos tribunais implica o direito ao processo entendendo-se que este postula um direito a uma decisão final incidente sobre o fundo da causa sempre que se hajam cumprido e observado os requisitos processuais da acção ou recurso. Por outras palavras: no direito de acesso aos tribunais inclui-se o direito de obter uma decisão fundada no direito, embora dependente da observância de certos requisitos ou pressupostos processuais legalmente consagrados.
Daí que o direito à tutela jurisdicional não pode ficar comprometido em virtude da exigência legal de pressupostos processuais desnecessários, não adequados e desproporcionados. Compreende-se, pois, que o direito ao processo implique: (1) a proibição de requisitos processuais desnecessários ou desviados de um sentido conforme ao direito fundamental de acesso aos tribunais; (2) a exigência de fixação legal prévia dos requisitos e pressupostos processuais dos recursos e acções; (3) a sanação de irregularidades processuais como exigência do direito à tutela judicial. In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição (17.ª Reimpressão), Almedina, 2003, págs. 498 e 499.
Este princípio constitucional, alegado pela Recorrente como tendo sido ofendido pelo Acórdão em crise, vem consagrado no artigo 29.º da CRA que no seu n.º 1 estabelece que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)”.
Compulsados os autos, constata-se (fls. 24 verso e 28) que a Recorrente foi notificada pela Juíza Conselheira Relatora, em despacho liminar, com fundamento na alínea f) do artigo 41.º conjugado com o artigo 8.º, ambos do Decreto-Lei, n.º 4-A/96, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo, para aperfeiçoar o Requerimento Inicial interposto, no prazo de dez dias, sob pena dos autos serem arquivados.
Ao invés de aperfeiçoar o Requerimento Inicial, a Recorrente (fls. 29) pediu a aclaração do referido despacho por não entender em que medida a norma da alínea f) do artigo 41.º conjugada com o artigo 8.º, ambos do Decreto-Lei n.º 4-A/96, constituem fundamento para o aperfeiçoamento do Requerimento Inicial.
Em face disso, a Juíza Relatora reiterou a sua decisão de aperfeiçoamento do referido requerimento, nos seguintes termos: Dado que a recorrente vem pedir não só a anulação do acto administrativo, mas também a condenação da Administração Pública, violando expressamente o estatuído no artigo 8.º do D/L-4A/96.
Tendo em atenção que o pedido admissível, em sede de Contencioso Administrativo, é apenas o de anulação do Acto Administrativo, porquanto no Tribunal não é permitido condenar a Administração Pública. Em face dos pedidos formulados pela recorrente, reitero o meu desfecho de fls. 24 v.
Notificada deste Despacho, a Recorrente não apresentou, nos devidos termos, novo requerimento aperfeiçoado, mas respondeu, com fundamento nos artigos 8.º, 41.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, mediante documento dizendo que (…) vem em resposta ao despacho proferido a fls. 26 dos referidos autos e satisfazendo o que nele se requer, corrigir o pedido, formulado no requerimento inicial do seguinte modo:
Nestes termos e nos melhores de Direito e com o sempre douto suprimento de Vossas Excelências, a Requerente vem pedir, que nos termos dos artigos 35.º e 39º, ambos da Lei n.º 18/90 de 27 de Outubro, ainda em vigor por não terem sido revogados pela actual Lei de Bases de Protecção Social:
Que seja declarada a nulidade da decisão arbitrária, em que se fundamentou o requerido, ao reduzir a pensão a que a requerente tem direito, com violação, de modo grosseiro, do princípio da aplicação da lei no tempo. 11.07.08.
No mesmo documento, a Recorrente aduziu outros argumentos, apoiando-se na obra de Cremildo Paca, enfatizando que: E quanto ao Tribunal, não deve conhecer de outros pedidos senão a anulabilidade ou declaração de nulidade ou inexistência. A existência de outros pedidos não obriga o tribunal a conhecer senão aquele que deve conhecer, pois o tribunal competente não pode senão confirmar o acto ou anulá-lo ou declará-lo nulo ou inexistente. In Direito Contencioso Administrativo Angolano, Almeida, 2008, pág. 89.
Ademais, salientou que (...) foi exactamente assim que procedeu o Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro, Relator, Dr. Belchior Samuco nos autos de contencioso administrativo (processo n.º 190/08), (...) através do qual mandou citar o Requerido, Instituto Nacional de Segurança Social, para contestar e bem assim o Ministério Público para o mesmo efeito.
Na base de exposição lavrada pela Juíza Conselheira Relatora, a Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo acordou em ordenar o arquivamento dos autos.
Insatisfeita, e por considerar aquela decisão injusta, porque fere o seu direito à reforma, a Recorrente interpôs recurso de agravo para o Tribunal Pleno de Recurso, nos termos dos artigos 84.º, 86.º, 91.º e 93.º do Decreto-lei n.º 4-A/96 (fls. 53 e 56), tendo este Tribunal ad quem negado provimento ao recurso e, em consequência, confirmado a decisão recorrida.
Ora vejamos:
O facto de a Recorrente se limitar, in casu, a corrigir o pedido, sem ter apresentado, nos devidos termos, um novo requerimento inicial aperfeiçoado, justifica a decisão de arquivamento dos autos ora recorrida?
O pedido de aperfeiçoamento do requerimento inicial decorre de um despacho liminar do juiz, resultante do seu poder discricionário e assente na pressuposição da existência de irregularidade ou deficiência da petição inicial.
Nos termos da conjugação dos artigos 474.º e 477.º, ambos do CPC, o juiz somente pode convidar o autor a completar ou corrigir o requerimento inicial quando não haja motivo para indeferimento liminar.
Logo, quando o juiz convida para o aperfeiçoamento do requerimento inicial, é porque não está diante de nenhuma das situações que possa dar lugar ao indeferimento liminar (cfr. 474.º). Ou seja, com fundamento no n.º 1 do artigo 477.º do CPC, depois de pedir o aperfeiçoamento, o juiz já não pode indeferir liminarmente a petição inicial embora nada o impeça de indeferir o processo, o que não é o caso, se a correcção não se mostrar satisfeita e a deficiência comprometer o êxito da acção.
Mas, na verdade, não se verifica nos autos o indeferimento liminar do Requerimento Inicial, porque não se reconheceu, com a cumulação de pedidos, haver graves consequências, que tornassem manifestamente impossível de reconhecer e ter em consonância o pedido e a causa de pedir, com embaraço evidente da defesa e da decisão.
O que se verifica, e aqui a Recorrente recorre, é que, mesmo perante a falta de pressupostos para o indeferimento liminar do Requerimento Inicial, foi ordenado o arquivamento dos autos, quando, no seu entender e no do Ministério Público, se poderia aproveitar o processo, ignorando os demais pedidos e atendendo apenas àquele que lhe era compatível, in casu.
O arquivamento do processo, e que aqui se aprecia para decidir, segundo Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, É uma terceira atitude que o juiz pode tomar em face da petição, embora os autores a não refiram, pela raridade da sua verificação. O processo deve realmente ser arquivado se, por exemplo, a pretensão do autor for estranha à ordem jurídica, como na hipótese de o pároco pretender que um seu paroquiano baptizado seja condenado a frequentar os sacramentos, como sempre o fez nos anos anteriores, ou de o professor requerer a condenação do antigo aluno a ir a sua casa cumprimentá-lo todos os meses, como sempre fez depois de ter deixado a escola. In Manual de Processo Civil, 2.ª Edição (Reeimpressão), Coimbra Editora, 2004, pág. 265.
Na mesma esteira João Chimbungule Garcia afirma que A terceira possível atitude do juiz diante da petição inicial é o arquivamento do processo. O despacho de arquivamento é proferido quando a pretensão deduzida pelo autor na petição inicial extrapola o âmbito da ordem jurídica. Por exemplo, um Pastor interpõe uma acção contra a igreja requerendo que o tribunal condene a igreja a promovê-lo a Bispo, alegando o facto de o mesmo satisfazer os requisitos estatutários para o efeito. Um professor interpõe uma acção contra a escola onde leciona, pedindo a condenação da direcção da escola a ordenar a todos (alunos, colaboradores e professores da escola) a tratá-lo por Senhor Doutor Professor. In Manual de Processo do Trabalho Angolano, JG – João Garcia (auto edição), 2020, pág. 168.
Até porque, no âmbito do processo administrativo, sustentam Carlos Feijó e Lazarino Pouson que: i. O pedido é a pretensão formulada pelo recorrente e traduz-se na solicitação da anulação ou declaração de nulidade ou ainda da inexistência do acto administrativo (n.º 1 do artigo 8.º do CPA). Em princípio não se pede a modificação ou substituição, muito menos a condenação para a prática de actos devidos: o contencioso angolano é de mera legalidade, os tribunais não se substituem à Administração activa. A condenação à prática de actos devidos só acontece em contencioso de plena jurisdição. ii. A causa de pedir é o fundamento que o recorrente pode invocar para sustentar o pedido. A causa de pedir consiste na invalidade do acto administrativo impugnado. Não é correcto dizer-se que o fundamento é a ilegalidade porque existem actos inválidos, mas não ilegais. In A Justiça Administrativa Angolana, Lições, Revista e Actualizada, Casa das Ideias, 2011, pág. 85.
No mesmo sentido Cremildo Paca aflora que “No requerimento inicial do recurso contencioso, previsto no artigo 41.º, é necessário apresentar-se os factos e as razões em que se baseia o pedido. E quanto ao tribunal, não deve conhecer de outros pedidos senão da anulabilidade ou declaração de nulidade ou inexistência. Claro que em causa está a natureza objectivista do sistema angolano, em sede do qual só consagra o contencioso de mera legalidade e não um contencioso de plena jurisdição. O tribunal competente não pode senão confirmar o acto ou anulá-lo ou declará-lo nulo ou inexistente”. In Direito do Contencioso Administrativo, Almedina, 2008, pág. 89.
Já o Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, no seu artigo 43.º vem estabelecer que Apresentado o requerimento inicial, se o juiz ou relator verificar a falta de qualquer dos elementos constantes do artigo 41.º deve conceder ao demandante o prazo de 10 dias para completar. E o artigo 44.º do mesmo diploma legal, estabelece que Decorrido o prazo sem que tenha sido cumprido o ordenado no artigo anterior, o juiz singular ordena o arquivamento dos autos e o relator a remessa do processo à conferência para o mesmo efeito.
Não sendo este o caso em apreço, pois, à luz do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, resulta claramente que não se verificou a falta de qualquer dos elementos constantes do artigo 41.º do mesmo diploma legal, mas, pelo contrário, verifica-se um acumulado de pedidos formulados pela Recorrente, impunha-se que os demais pedidos poderiam ser considerados inúteis para o seu conhecimento e serem fundamentadamente afastados pelo Acórdão recorrido, conhecendo-se apenas o pedido que lhe é compatível.
Por outro lado, é de considerar que o direito à saúde e protecção social sub lite tem garantia constitucional, ex vi do n.º 1 do artigo 77.º da CRA. Portanto, o direito à reforma deve prevalecer perante a disposição infraconstitucional e procedimental que fundamentou o arquivamento dos autos e, consequentemente, poderia conhecer-se o pedido de “declaração de nulidade do acto administrativo proferido pelo Instituto Nacional de Segurança Social”, proposto pela Recorrente, por ser este o compatível com a causa de pedir e a forma de processo (recurso de impugnação de acto administrativo) prevista na alínea a) do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril.
Esta foi posição adoptada pelo Acórdão prolactado pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 498/2017, em que a Recorrente formula quatro pedidos, mas o Acórdão decidiu apreciar apenas dois dos pedidos afastando outros dois.
No Acórdão referido foram formulados os seguintes pedidos: a) Que seja o referido acto administrativo suspenso, nos termos do art.º 60.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril; b) Que seja nulo o Despacho de Demissão, com todos os seus efeitos jurídicos; c) Que seja o Recorrente reintegrado; d) Que sejam pagos ao Recorrente os salários e benefícios laborais que deixou de auferir, desde a data da sua demissão até à data da decisão do presente recurso.
Diante dos pedidos acima referidos, o Acórdão decidiu apreciar apenas os dois primeiros pedidos, tendo afastado os dois últimos, fundamentando a sua posição, em sede da questão prévia, nos seguintes termos:
O Recorrente, para além de pretender ver a decisão de que recorre ser declarada nula por este Tribunal, pretende também que este salvaguarde o pagamento de todos os salários que o mesmo deixou de auferir até à data da decisão do presente recurso.
Dito de outro modo, o ora Recorrente não vem impugnar apenas nesta Instância o acto de demissão contra si praticado pelo Recorrido, mas vem também pedir o pagamento dos salários em atraso referentes ao período que se encontra privado dos mesmos devido à sua demissão, até à data da decisão do presente recurso.
Questionamo-nos, assim, se poderão ser tais pedidos, atinentes a funcionários públicos ou agentes administrativos, de conhecimento em primeira instância da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo.
Em face do requerimento inicial, cumpre referir o seguinte:
Resulta da lei que, no recurso contencioso de impugnação de acto da Administração, o pedido pode abranger a invalidade do acto ou a sua anulação total ou parcial (art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 4/96, de 05 de Abril).
Destarte, entendeu o legislador administrativo que o pedido deverá ser sempre a anulação, a declaração de nulidade ou de inexistência do acto administrativo: se o acto é anulável, pede-se a sua anulação; se o acto é nulo ou inexistente, pede-se a declaração da sua nulidade ou a declaração da sua inexistência.
Em princípio, salvo lei que excepcionalmente estabeleça o contrário, nenhum outro pedido é admissível no recurso contencioso de anulação para além do pedido de anulação ou do pedido de nulidade. Assim, não é admissível qualquer pedido de modificação do acto recorrido, ou de substituição do acto recorrível por outro, tal como não é admissível qualquer pedido de condenação da Administração pública pela prática do acto devido.
Tal entendimento resulta da própria concepção dos Tribunais Administrativos, porquanto não se pretende que os mesmos se substituam à Administração activa no exercício da função administrativa.
Atendendo que os Tribunais Administrativos só podem exercer a função jurisdicional, estes não podem modificar os actos administrativos, nem praticar outros actos administrativos em substituição daqueles que reputem ilegais, nem sequer podem condenar a Administração a praticar este ou aquele acto administrativo.
Ainda que, por hipótese, se trate de um acto administrativo totalmente vinculado, o Tribunal não pode condenar a Administração a praticar esse acto: o Tribunal limita-se a anular o acto ou a declará-lo nulo ou inexistente, ou então, no caso de o acto ser válido, confirma a sua validade e mantém o acto. Não pode fazer outra coisa em recurso contencioso de anulação (vd. Diogo Freitas Do Amaral, in Direito Administrativo, Vol. IV, pág. 116, Lisboa, 1988).
Tal posição deve-se ao facto de o nosso recurso contencioso de anulação ser um recurso de mera legalidade ou um contencioso de mera anulação, e não um contencioso de plena jurisdição. Assim, neste ponto, não vai este Tribunal apreciar o pedido.
Aliás, foi neste contexto que o Digníssimo Representante do Ministério Público junto do Tribunal Supremo sustentou que: (…) entende o Mº Pº que a decisão recorrida, ao invés de mandar arquivar os autos, deveria também pronunciar-se sobre o pedido da al. a) (fls.5) do requerimento da recorrente. Não o tendo feito o Tribunal em primeira instância, o Mº Pº considera que o Tribunal Pleno e de Recurso deveria conhecer do pedido de “anulação do acto administrativo”, com a exclusão dos demais, de forma a que a requerente não se veja prejudicada, pelo simples facto de ter formulado pedidos a mais do que é permitido pela lei.
Na mesma esteira, o Digníssimo Representante do Ministério Público junto desta Corte Constitucional propugna que (…) considerando que no caso sub judice está em causa um direito fundamental reconhecido pelo artigo 77.º n.º 1 da CRA ao cidadão, entendemos que este direito deveria prevalecer ante a disposição do direito infraconstitucional e procedimental. Havendo cumulação de pedidos incompatíveis e verificando-se que um deles se enquadra no espírito e letra da norma referida, entende o Ministério Público, que o Tribunal deveria conhecer deste, isto é, do pedido de anulação do acto administrativo, afastando os outros por incompatibilidade.
Portanto, por não existir a falta de qualquer um dos elementos do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96 de 5 de Abril, e porque o elemento que a Juíza Relatora reclama com exclusividade consta, em boa verdade, do pedido formulado, não se justifica a decisão de arquivamento dos autos.
De tal maneira que, no âmbito do poder de cognição, estabelecido no artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96 de 5 de Abril, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo, o Tribunal de recurso pode conhecer da globalidade da causa e reapreciar a decisão impugnada em toda a sua extensão. Ademais, o n.º 2 deste mesmo preceito legal dispõe que Nos casos em que o Tribunal recorrido não conhece, por qualquer motivo, do mérito da causa, pode o tribunal de recurso fazê-lo, se entender que o motivo invocado não procede, que nenhum outro obsta ao julgamento e que o processo fornece elementos suficientes para tomar uma decisão.
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional considera que assiste razão à Recorrente, pois o Acórdão em crise ofende o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 29.º, da CRA.
Face ao exposto devem os autos baixar ao Tribunal Supremo, para os efeitos preconizados nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da LPC.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: Dar provimento ao Recurso, pois o Acórdão recorrido ofende o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.
Sem custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Dezembro de 2022.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor (declarou-se impedido)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata