ACÓRDÃO N.º 1044/2025
PROCESSO N.º 1321-A/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)
Em nome do Povo, acordam em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
Miguel Hamilton Campos Prazeres, com os demais sinais de identificação nos autos, vem ao Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade contra a decisão do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação do Lubango, prolatada no âmbito do Processo n.º 33/2025, que julgou improcedente o recurso interposto contra a decisão de indeferimento da providência de habeas corpus por si impetrada.
Nesta Corte, notificado para apresentar alegações, o Recorrente pronunciou-se, em síntese, do seguinte modo:
O Recorrente foi detido no dia 18 de Março de 2025, por volta das 15h, em sua residência pelos agentes do Departamento de Investigação de Ilícitos Penais, sem o competente mandado de detenção e sem flagrante delito, por ter ajudado o seu vizinho conhecido por Jonas, a estacionar em sua residência uma viatura de marca Toyota, modelo Rav 4.
Ficou detido ilegalmente durante 5 dias, isto é, de 18 a 22 de Março, e só no dia 23 foi apresentando ao Digno Magistrado do Ministério Público, que promoveu o Processo junto do Juiz de Garantias, no dia 27 de Março, tendo sido conduzido para os serviços prisionais da Huíla, no dia 28 do mesmo mês e ano.
O Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação, ao concordar com o mau posicionamento do Tribunal de primeira instância, violou o preceituado no n.º 4 do artigo 254.º do CPP, que estabelece o prazo de 48 horas para que o detido seja apresentado ao Juiz de Garantias.
O Juiz Presidente do Tribunal da Relação não fez uma boa apreciação dos factos, tendo-se limitado a reproduzir o Despacho do Juiz Presidente do Tribunal de primeira instância.
O primeiro interrogatório do Recorrente decorreu no dia 24 de Março, mas o Despacho de condução do arguido à cadeia foi exarado no dia 26 do mesmo mês, pelas 15 horas.
O Juiz Presidente Desembargador ao dar legitimidade a posição tomada pelo Tribunal de primeira instância, esteve mal, colaborando, deste modo, com a posição errada e desajustada daquela instância, de que não se verifica a actualidade da ilegalidade.
O Juiz Presidente do Tribunal da Relação salientou que o Recorrente deve sujeitar-se a prisão preventiva, em obediência ao princípio da actualidade. O Recorrente acredita estar perante um acto de ilegalidade, sub-rogando assim os princípios fundamentais de um Estado Democrático de Direito.
Os prazos para a detenção do Recorrente esgotaram-se na totalidade, mesmo assim o Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação manteve a medida mais gravosa, a prisão preventiva, ignorando o estabelecido no n.º 1 do artigo 250.º do CPPA.
O recurso ora apresentado tem como objecto impugnar a decisão da matéria de facto e de direito, enfatizar o mal desempenho do Tribunal da Relação e refutar a detenção ilegal do Recorrente.
Além do mais, o Recorrente foi detido no dia 18 de Março do ano em curso e no dia 18 de Julho completou 4 meses de prisão preventiva sem acusação.
Terminou pedindo que se dê provimento ao presente recurso.
O Processo foi à vista do Ministério Público (fls. 85 a 88).
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
III. LEGITIMIDADE
Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC, conjugado com a alínea b) do n.º 1 do artigo 463.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA), dispõe, o Recorrente, de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por ter ficado vencido no âmbito do Processo n.º 33/2025, que correu os seus termos no Tribunal da Relação do Lubango.
IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto a Decisão do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação do Lubango, prolatada no âmbito do Processo n.º 33/2025, que correu os seus termos naquela instância, cabendo, por ora, verificar se a mesma ofende o direito à liberdade do Recorrente ao ter indeferido a providência de habeas corpus.
V. APRECIANDO
No caso vertente, foi o Recorrente detido no dia 18 de Março de 2025, tendo sido apresentado para o primeiro interrogatório no dia 24 de Março do mesmo ano, do qual resultou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, por ter sido indiciado pelos crimes de associação criminosa, furto qualificado e falsificação de documentos, previstos e punidos pelos artigos 296.º, 393.º e 251.º, todos do Código Penal Angolano, respectivamente.
No entanto, irresignado, interpôs providência de habeas corpus no Tribunal da Comarca do Lubango, aos 31 de Março de 2025 (fls. 3), com fundamento na ilegalidade da detenção por excesso de prazo, visto que foi apresentado para primeiro interrogatório decorridas mais de 48 horas.
Naquela instância, apreciados os autos, foi indeferida a referida providência, com fundamento no facto de não se verificar a actualidade da ilegalidade da detenção. Desta Decisão, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Lubango que, a fls. 41 a 46v, negou o seu provimento, confirmando-a.
Uma vez mais, inconformado, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por considerar que a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva não faz cessar a ilegalidade da detenção efectuada sem o competente mandado. Sustenta, de igual modo, que foi apresentado ao Juiz de Garantias depois de esgotado o prazo legal de 48 horas e que a prisão preventiva aplicada excedeu, à data, o seu prazo de duração sem a dedução tempestiva da acusação.
Assistirá razão ao Recorrente?
Veja-se:
O n.º 1 do artigo 68.º da Constituição da República de Angola consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder em virtude de prisão ou detenção ilegais, concebido como direito de não ser detido, aprisionado ou confinado a um determinado espaço fora das condições legalmente previstas.
Tal expediente, que pode ser requerido pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (n.º 2 do artigo 68.º da Constituição), destina-se a provocar a intervenção do poder judicial com o fim de fazer cessar qualquer ofensa ao direito de liberdade por motivo de autoridade ou erro grosseiro (Manuel Simas Santos e João Simas Santos, Direito Processual Penal de Angola, Rei dos Livros, 2022, p. 365).
Constitui, assim, uma medida extraordinária ou excepcional de urgência (no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra detenção ou prisão ilegais) perante ofensas graves à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, ou seja, perante situações que, nos termos das alíneas a) a f) do n.º 4 do artigo 290.º do CPPA, configuram casos de inadmissibilidade legal da privação da liberdade.
No caso dos autos, como se afirmou, o Recorrente impetrou a aludida providência com fundamento na ilegalidade da detenção, por ausência de mandado competente e por excesso de prazo, alegando, também, nesta instância, a ilegalidade da prisão preventiva aplicada decorrente de excesso de prazo sem efectivação da acusação.
Efectivamente, compulsados os autos, constata-se que a detenção, fora de flagrante delito, foi efectuada sem o competente mandado e o Recorrente foi apresentado para primeiro interrogatório decorridas mais de 48 horas, contrariamente ao que estabelece o no n.º 1 do artigo 250.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 254.º, ambos do CPPA.
Com efeito, nos termos do n.º 2 do artigo 254.º do CPPA, a detenção fora de flagrante delito exige a expedição de mandado de detenção por parte da autoridade judiciária competente, sem o qual tal detenção é ilegal. Assim, tendo o Recorrente sido detido fora de flagrante delito, sem exibição do mandado de detenção competente, entende este Tribunal que a detenção deveria ter sido considerada ilegal.
Por esta razão, entende-se que o Juiz de Garantias, na sequência de um primeiro interrogatório de arguido detido decorrente de uma detenção ilegal, não deveria validar a detenção nem aplicar a medida de coacção de prisão preventiva. Uma vez apresentado ao Juiz de Garantias, deveria o Recorrente ter sido imediatamente restituído à liberdade.
Todavia, verificada a situação carcerária do Recorrente no momento de apreciação do presente Processo por este Tribunal, foi dado conhecimento de que a medida de coacção de prisão preventiva já havia cessado a sua vigência (fls. 91 e 92). Assim, o facto de o Recorrente encontrar-se em liberdade, compromete a apreciação do mérito do presente recurso e o torna supervenientemente inútil.
A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se “quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência requerida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, da impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio” (cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3.ª ed., 2014, p. 546).
Está-se perante uma situação de impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, quando devido a novos factos, verificados na pendência do processo, não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir, quando já não é possível o pedido ter acolhimento ou quando o fim visado com a acção foi atingido por outro meio (cf. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra, 1946, pp. 368-369).
Nesse sentido se tem pronunciado variada jurisprudência deste Tribunal, em que se consignou que a instância se extingue sempre que se torne supervenientemente impossível, ou seja, sempre que a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento do objecto do processo, determinando a impossibilidade de atingir o resultado visado. Neste caso não subsistirá um interesse suficientemente relevante no conhecimento do pedido, nem sequer no que toca a tais efeitos, sendo suficientes outras vias ou iniciativas processuais (neste sentido, vide, entre outros, os Acórdãos n.ºs 422/2017, 485/2018, 544/2019, 549/2019, 683/2021, 922/2024 e 1011/2025, disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Destarte, uma vez que nos presentes autos subjaz um pedido de habeas corpus decorrente de detenção e prisão preventiva ilegais e tendo esta última cessado, considera-se extinta a instância por inutilidade superveniente, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil (CPC), nesta lide aplicável por força do artigo 2.º da LPC.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DECLARAR EXTINTA A INSTÂNCIA POR INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 5 de Novembro de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Jacinto Prazeres (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Amélia Augusto Varela
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo
Vitorino Domingos Hossi