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2.ª CÂMARA 
ACÓRDÃO N.º 1045/2025 
 
PROCESSO N.º 1305-A/2025 
Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade  
Em nome do Povo, acordam, em Sessão da Segunda Câmara do Tribunal Constitucional: 
I.  RELATÓRIO 
 
GESTOBRA – Gestão e Serviços Técnicos, SA., melhor identificada nos autos, veio interpor o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos previstos no artigo 36.º da Lei n.º 03/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), contra o Despacho do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, datado de 14 de Novembro de 2024, prolatado no âmbito do Processo n.º 333/2024 – TRL, que tramitou no Tribunal da Relação de Luanda. 
Na Decisão ora posta em crise, o Tribunal recorrido confirmou a Sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Luanda, que julgou deserto o recurso pelo pagamento tardio de custas processuais.  
Para sustentar a sua pretensão, a Recorrente alega em síntese que: 
 
O Despacho do Tribunal da Relação de Luanda, que confirmou o Despacho do Tribunal a quo que julgou deserto o recurso, é inconstitucional, porque, limita direitos, liberdades e garantias constitucionais.  
 
O referido Despacho, viola o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, na medida em que, denega a justiça por insuficiência de meios económicos. Todavia, não é esse o objectivo do presente recurso, pois, na situação material controvertida, a Recorrente pagou e pagou in tempo, porém, o Tribunal entende que pagou a destempo.  
 
Dúvidas não podem subsistir em relação a recorribilidade do Despacho que que julgou deserto o recurso por suposta falta de pagamento das custas processuais, porque, um Despacho dessa natureza ofende quer direitos constitucionais, quer direitos infraconstitucionais dos sujeitos processuais.  
 
Resulta cristalino e à vista desarmada, que a interpretação feita das normas do Código das Custas Judiciais (CCJ) aplicadas ao caso, estão desajustadas às normas e princípios da Constituição de 2010.  
 
O Despacho recorrido está alicerçado em normas inconstitucionais e revogadas como por exemplo o artigo 161.º do CCJ, norma esta, não subsumível ao caso, ao qual se aplica o disposto no artigo 479.º do CPP e artigo 148.º do CCJ.   
 
O Tribunal a quo fez uma interpretação errada das normas dos artigos 127.º e 149.º do CCJ, tendo tal interpretação sido confirmada pelo Tribunal da Relação.  
 
A Recorrente foi notificada do Despacho de admissibilidade do recurso no dia 31 de Julho de 2024. Na data da notificação do Despacho que admitia o recurso, o processo não tinha ainda sido contado, não sabendo, portanto, o Cartório Judicial o valor das custas devidas ao recurso. 
 
O processo foi contado no dia 8 de Agosto de 2024, tendo as guias sido emitidas somente no dia 12 de Agosto de 2024 data que corresponde com a notificação e também com o pagamento das guias conforme atestam os autos de fl. 46.  
 
O início do prazo só pode contar após a notificação da existência de guias das custas a serem liquidadas, não estando liquidadas as guias por razões alheias a vontade da Recorrente, nem tendo decorrido o prazo para o seu pagamento voluntário, não poderia o recurso ser julgado deserto.  
Termina as suas alegações pedindo a este Tribunal que julgue inconstitucional o Despacho recorrido alicerçado nos artigos 127.º, 148.º, 149.º e 161.º, todos do Código das Custas Judiciais que devem igualmente ser declaradas inconstitucionais.  
O processo foi à vista do Ministério Público que pugnou pelo provimento do recurso, por manifesta violação do artigo 29.º da CRA, afirmando que “a Decisão do Tribunal da Comarca de Luanda, confirmada pelo Despacho ora recorrido, incorre em violação da Constituição, por tês razões fundamentais: i) impede a Recorrente de ver o seu direito apreciado em sede recursal, configurando uma denegação da justiça; ii) adopta uma interpretação estrita e desproporcional da norma processual, contrariando o princípio da tutela jurisdicional efectiva e iii) contraria a jurisprudência consolidada pelo Tribunal Constitucional, que já declarou inconstitucional a prática em questão”. 
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.  
 
II.  COMPETÊNCIA 
 
A 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 21.º da Lei n.º 2/08 de 17 de junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) em conjunção com o n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento Geral do Tribunal Constitucional (RGTC), aprovado através da Resolução n.º 127/24, de 31 de Dezembro, pelo Plenário do Tribunal Constitucional. 
 
III.  LEGITIMIDADE 
 
A Recorrente constituiu-se Assistente no Processo n.º 577/2023-A, que culminou com a prolação do Despacho que julgou deserto o recurso, tendo apresentado reclamação para o Tribunal da Relação de Luanda e este, em sede do Processo n.º 333/2024 – TRL, confirmou a Decisão a quo, razão pela qual tem interesse directo na sua apreciação, possuindo legitimidade para a interposição do presente recurso, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 37.º da LPC.  
 
IV.  OBJECTO 
 
O presente recurso tem por objecto a fiscalização da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 127.º e 149.º, ambos do Código das Custas Judiciais, aplicadas no Despacho do Juiz Presidente Desembargador do Tribunal da Relação de Luanda no âmbito do Processo n.º 333/2024 – TRL e que julgou deserto o pedido da Recorrente.   
 
V.  APRECIANDO 
 
A Recorrente vem a este Tribunal interpor o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade do Despacho do Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, que confirmou a Decisão do Tribunal da Comarca de Luanda, Decisão esta, que julgou deserto o recurso de agravo por falta de pagamento de custas processuais no prazo legal.  
A impetrante é Assistente nos autos que correm no Tribunal da Comarca de Luanda (fl. 23) e alega que a Decisão recorrida incorre em violação directa dos princípios do julgamento justo e conforme bem como da tutela jurisdicional efectiva, pelo facto dos Tribunais a quo e ad quem terem feito uma interpretação errónea das normas dos artigos 127.º e 149.º, ambos do Código das Custas Judiciais (CCJ) da qual resultou a Decisão ora posta em crise.  
Compete, pois, a este Tribunal Constitucional apreciar se a interpretação normativa do CCJ aplicada na Decisão recorrida está em harmonia com a ordem constitucional vigente, aferindo a sua conformidade com os direitos, liberdades e garantias constitucionais.   
O recurso ordinário de inconstitucionalidade é um mecanismo inserido no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, cujo regime jurídico se encontra consagrado no artigo 36.º da Lei do Processo Constitucional (LPC), em articulação com o n.º 2 do artigo 181.º da Constituição da República de Angola (CRA). 
Entende a Recorrente que a Decisão confirmatória da Decisão proferida pelo Tribunal da Comarca de Luanda (fls. 65 e 66), feriu os princípios constitucionais alegados, por ter considerado o pagamento das custas processuais intempestivo, e em consequência ter declarado o recurso deserto. 
Cumpre, pois, apreciar a questão, ponderando os princípios constitucionais aplicáveis, a interpretação correcta das normas do CCJ ora postas em causa e saber se a efectiva tutela jurisdicional foi ferida.  
Examinemos, pois: 
As custas judiciais são os valores devidos pelas partes para compensar o Estado pelos encargos decorrentes da prestação do serviço jurisdicional que inclui taxas de justiça, despesas processuais e encargos diversos. 
Como tal, têm a dupla função de custear o funcionamento do sistema judicial, garantindo os meios materiais e humanos necessários para a administração da justiça e evitar litigâncias abusivas, desencorajando a propositura de acções temerárias e ou abusivas. 
Elas não constituem um fim em si mesmas e o seu regime deve sempre ser interpretado em harmonia com os princípios constitucionais, de forma a não impedir ou dificultar desproporcionalmente o acesso à justiça, direito fundamental consagrado no artigo 29.º da CRA. 
Decorre dos autos que a Recorrente é Assistente no Processo n.º 577/2023-A, cujo objecto é o crime de usurpação de imóvel, que corre os seus trâmites no Tribunal da Comarca de Luanda.  
Inconformada com a Decisão instrutória, que lhe foi notificada a 04 de Julho de 2024, interpôs recurso tendo o mesmo sido admitido. Em sede do Despacho de admissão, a Recorrente dispunha de 5 (cinco) dias para efectuar o pagamento das guias de depósito do incidente de recurso, ao abrigo do disposto nas disposições combinadas do § 3 do artigo 127.º e do artigo 149.º, ambos do CCJ, tendo a Recorrente sido notificada do referido Despacho de admissibilidade no dia 31 de Julho de 2024.  
Sucede, porém, que, no prazo indicado para o referido pagamento, este não foi feito pelo facto do Processo não ter sido contado. Saliente-se, entretanto, que somente no dia 08 de Agosto de 2024 houve a contagem do Processo, tendo a impetrante sido notificada pelo Cartório apenas no dia 12 de Agosto de 2024, data em que de imediato fez o pagamento de tais guias (fl. 91 dos autos).  
Entrementes, foi o recurso julgado deserto, pois, considerou o Juiz que o pagamento foi extemporâneo sustentando o seu Despacho nos termos das disposições combinadas dos artigos 292.º do CPC e dos artigos 116.º, 161.º, 148.º e 149.º todos do CCJ e do n.º 4 do artigo 3.º da Lei n.º 9/05, de 17 de Agosto com a nova redacção introduzida pela Lei n.º 5-A/21, de 5 de Março.    
Desde já, coloca-se em evidência um verdadeiro problema prático e jurídico: o prazo previsto no § 3 do artigo 127.º do CCJ pressupõe que as guias de pagamento estejam disponíveis e entregues com a notificação, o que não ocorreu. 
Ora, considerando que a parte não dispunha das guias para efectuar o pagamento dos preparos dentro do prazo no quadro dos respectivos normativos jurídicos e por causa imputável ao próprio Tribunal, como entender que, ainda assim, o Tribunal ad quem tenha considerado que houve incumprimento voluntário ou negligente da Requerente?  
Os princípios da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme a lei, previstos nos artigos 29.º e 72.º da CRA e com respaldo no artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, conjecturam a ideia de que as decisões judiciais se baseiam numa aplicação objectiva e razoável da lei, bem como impõem que todos tenham acesso real e prático à justiça, o que inclui a apreciação do mérito da causa sem obstáculos desproporcionais ou arbitrários. 
Aliás, qualquer interpretação formalista do § 3 do artigo 127.º do CCJ, que ignore a impossibilidade material de cumprimento do prazo por atraso imputável ao próprio órgão judicial cujas circunstâncias são alheias a Recorrente, certamente afastar-se-á do princípio da justiça material, fazendo com que a deserção declarada pelo Tribunal, nas circunstâncias em que ocorreu, se configure uma barreira injustificada ao acesso à justiça da Recorrente (vide, a propósito, o entendimento firmado no Acórdão n.º 989/2025, de 22 de Maio, disponível em www.tribunalconstitucional.ao).    
Neste sentido, este Tribunal entende que a interpretação e aplicação da norma do § 3 do artigo 127.º do CCJ ao caso em apreciação, de facto gerou uma situação de inconstitucionalidade na medida em que, o referido Despacho coloca fim ao processo. Ora, tal procedimento por parte de quem tem a obrigação de fazer cumprir a lei cerceou o direito ao recurso da Recorrente, mais, ainda, quando essa obrigação se deve única e exclusivamente ao Tribunal, nos termos do artigo 80.º do CCJ.  
É mister recordar que, a aplicação da referida norma ao caso em concreto ignorou as circunstâncias posteriores ao Despacho, que em nada abonam para a Decisão aqui posta em crise. 
Conforme acima se refere, o prazo apenas começa a contar quando a parte é notificada e aqui, para o caso, a referida notificação para efeitos do que estabelece os artigos 127.º e 149.º do CCJ pressupõe a emissão das guias, dando-se, assim, à Recorrente os elementos indispensáveis e as condições processuais objectivas de realizar o pagamento, de outro modo, qualquer outra interpretação e aplicação da norma que não atende às questões de inoperabilidade do Cartório do Tribunal conduz a um resultado manifestamente iníquo e incompactível com os princípios alegados.  
Assim e nesta conformidade, a 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional conclui que a deserção declarada e confirmada pelo Tribunal viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva e o direito a um julgamento justo e conforme.  
 
Nestes termos, 
 
 
 
 
DECIDINDO 
Tudo visto e ponderado, acordam, em Sessão, os Juízes Conselheiros da 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional, em: 
DAR PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO; 
 
DECLARAR INCONSTITUCIONAL A INTERPRETAÇÃO DADA A NORMA DO § 3 DO ARTIGO 127.º E DO ARTIGO 149.º, AMBOS DO CÓDIGO DAS CUSTAS JUDICIAIS, FEITA NO DESPACHO RECORRIDO.  
 
CONSIDERAR TEMPESTIVO O PAGAMENTO DAS CUSTAS REALIZADO LOGO APÓS A EMISSÃO DAS GUIAS PELA CONTADORIA E BAIXAR OS AUTOS AO TRIBUNAL DA PRIMEIRA INSTÂNCIA PARA CONFORMAÇÃO DA DECISÃO, NOS TERMOS DO N.º 2 DO 47.º DA LPC. 
 
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional. 
Notifique. 
Tribunal Constitucional, em Luanda, 13 de Novembro de 2025. 
 
OS JUÍZES CONSELHEIROS 
 
Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Presidente)  
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo  
Gilberto de Faria Magalhães (Relator)  
Lucas Manuel João Quilundo  
Vitorino Domingos Hossi