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ACÓRDÃO N.º 797/2023

PROCESSO N.º 965-C/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

António Manuel dos Santos Máquina, com os demais sinais de identificação nos autos, veio, junto desta instância, interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 4025/19.
O Arguido, doravante Recorrente, foi, nos termos das disposições combinadas dos artigos 313.º, 421.º n.º 5 e 437.º, do Código Penal (CP), em vigor à data dos factos, acusado, pronunciado e condenado em primeira instância, a um ano de prisão, como cúmplice do crime de peculato, no pagamento de kz 150 000, 00 (cento e cinquenta mil kwanzas) de taxa de justiça e no ressarcimento solidário de kz 14 899 260, 00 (catorze milhões oito centos e noventa e nove mil e duzentos e sessenta kwanzas) a favor do Estado angolano.
Inconformado com a decisão, interpôs recurso tendo o Tribunal ad quem confirmado a decisão do Tribunal a quo.
O Recorrente, insatisfeito com a decisão do Tribunal ad quem, veio junto desta instância interpor o presente recurso, com base nos fundamentos que abaixo se sintetizam:
1. O Acórdão recorrido (…) não apreciou as alegações do Recorrente, tendo António Manuel dos Santos Máquina sido condenado em segunda instância em violação flagrante da Constituição, dos princípios da legalidade constitucional, do julgamento justo e da ampla defesa.
2. (…) A confirmação da condenação do Recorrente como cúmplice do crime de peculato, configura uma grave violação da Constituição e da lei.
3. O crime de peculato (…) é uma infração especial, sendo apenas aplicável a agentes com qualidade de funcionário público. Todavia, existindo uma incriminação para os casos em que o agente não tem essa qualidade, a incriminação é de abuso de confiança.
4. (…) O crime de peculato é cometido no exercício das funções públicas (…) porém, a apropriação de bens que tenham sido confiados a quem não for funcionário público constitui abuso de confiança.
5. (…) A condenação em pena de prisão fixada fora dos casos em que a lei permite, configura uma inconstitucionalidade – artigos 36.º n.º 2 e 67.º n.º 1, ambos da CRA.
6. Nos termos da Constituição e da lei, ninguém pode ser condenado fora dos casos e condições previstos na Constituição e na lei;
7. (…) As decisões dos Tribunais a quo e ad quem é peremptoriamente ilegal e inconstitucional, porque proferida sem subordinação à Constituição e a lei, artigo 6.º n.º 2 da CRA.
8. A não apreciação das alegações do Recorrente, pelo Tribunal ad quem, em sede de recurso ordinário (…) configura uma clara limitação do direito de defesa, denegação de justiça, violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, violação do direito ao julgamento justo e conforme a lei.
9. (…) Tal situação configura ainda uma omissão de pronúncia aos fundamentos de facto de uma decisão, que dá lugar a nulidade da decisão (…) nos termos do artigo 668.º n.º 1 alínea a), do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.
O Recorrente terminou as alegações solicitando que se julgue procedente os fundamentos apresentados, e, em consequência, se declare a decisão do Tribunal Supremo sem efeito, absolvendo-o do crime de que foi condenado nos termos da Constituição e da lei.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.


II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) do artigo 49.º e do § único da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.


III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é parte no processo que deu lugar a decisão recorrida, pelo que, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, que dispõe o seguinte, “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.


IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto apreciar a constitucionalidade do Acórdão proferido pela 1ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que confirmou a decisão do Tribunal de primeira instância e condenou o Recorrente a 1 ano de prisão, como cúmplice do crime de peculato, no âmbito do processo n.º 4025/19.


V. APRECIANDO

Para melhor apreciação do recurso, far-se-á uma abordagem sumária sobre a matéria factual.
Depreende-se dos autos que, se deu como provado que o Recorrente enquanto proprietário da empresa “António Máquina e Filhos, LDA”, emitiu uma factura para prestação de serviços de manutenção e assistência do sistema de abastecimento de água a Administração Municipal de Belize, no montante de kz 14 899 260, 00 (catorze milhões oito centos e noventa e nove mil e duzentos e sessenta kwanzas).
O valor da factura foi pago na totalidade pelo Ministério das Finanças (MINFIN), porém, a empresa do Recorrente, não prestou o serviço para o qual foi contratado a prestar à Administração Municipal de Belize. Tudo não passava de um artifício, pois, o Recorrente estava em conluio com os Senhores André Ndimba Tati (à data dos factos desempenhava as funções de Administrador Municipal de Belize) e Afonso Muandi (então chefe de Secção das Finanças da Administração acima mencionada). Estes, engendraram tal plano, com o intuito de se locupletar do dinheiro do Estado.
Por este facto, foi o Recorrente indiciado, acusado, pronunciado e condenado, em primeira instância, a 1 ano de prisão, como cúmplice do crime de peculato. Este recorreu da decisão, tendo o Tribunal de segunda instância confirmado a decisão recorrida.
Em face disto, o Recorrente entende que a sua condenação como cúmplice do crime de peculato, por não ter a qualidade de funcionário público, ofendeu os princípios constitucionais da legalidade, do julgamento justo e conforme a lei.
A decisão recorrida terá violado ou não o princípio constitucional da legalidade criminal?
Vejamos:

a) Sobre a violação do princípio da legalidade

O Recorrente sustenta, em sede de alegações, que “o Acórdão recorrido violou o princípio da legalidade, previsto no n.º 2 do artigo 6.º e nos artigos 36.º n.º 2 e 67.º n.º 1, todos da CRA, uma vez que, não sendo um funcionário público, ao ter sido condenado como cúmplice do crime de peculato, naquela situação em concreto, em que se exige a qualidade de funcionário público ao autor do crime, configura uma flagrante violação da Constituição e da lei”.
O Recorrente opõe-se ao Acórdão, arguindo o entendimento de que sendo o peculato um tipo incriminador especial, só se aplica a quem é empregado público, pelo que não podia ser condenado nem mesmo à título de cúmplice.
Veja-se!
Nos termos do disposto no artigo 19.º do Código Penal então vigente “os agentes do crime são autores, cúmplices ou encobridores”.
O n.º 2 do artigo 22.º estabelece que são cúmplices “os que concorreram directamente para facilitar ou perpetrar a execução nos casos em que, sem esse concurso, pudesse ter sido cometido o crime”.
Dos autos, vislumbra-se que o Recorrente, em virtude da concertação com os co- arguidos (André Ndimba Tati e Afonso Muandi), emitiu a factura, e com isso auxiliou directamente a perpetrar o crime de peculato, conforme fls. 75, 76 e 77 dos autos.
O Recorrente foi condenado como cúmplice, em virtude de ter prestado a sua colaboração na execução do crime de peculato, através da emissão de uma factura para um serviço que não foi prestado ao Estado.
O Recorrente partiu da premissa de que por ser um tipo-ilícito especial só os que têm a qualidade de empregado público podem responder por ele.
De facto, este Tribunal não comunga desta opinião, conquanto, o Recorrente incorre em equívoco ao confundir a condenação como autor com a condenação como cúmplice.
A exigência da qualidade especial de empregado público para responsabilidade criminal no tipo incriminador de peculato apenas se põe para os autores, não já para os cúmplices.
Pois, a política criminal subjacente a punição dos cúmplices tem em mira repelir actos de auxílio a condutas criminais dos autores. Ou seja, o juízo de censura criminal é dirigido ao cúmplice pelo facto de ter prestado colaboração ou auxílio na execução do crime, que de per si é legalmente punido.
Como sublinha Jorge de Figueiredo Dias “o fundamento da punição da cumplicidade reside, pois, (…) no contributo que o comportamento do cúmplice oferece para a realização pelo autor de um facto típico-ilícito (...). O que a actuação do cúmplice directa e imediatamente viola não é a proibição do comportamento do autor, mas a de prestar auxílio material ou moral `aquele comportamento proibido (…)”. In Direito Penal parte geral, Tomo I, 2.ª Edição, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 826.
Embora exista relação acessória entre a cumplicidade e o tipo incriminador, os pressupostos para a condenação do cúmplice não são totalmente os mesmos que os do autor.
Neste contexto, este Tribunal declina a alegada inconstitucionalidade do Acórdão do Tribunal ad quem por violação do princípio da legalidade criminal, posto que, não foi na qualidade de autor que foi condenado o Recorrente mas antes, como cúmplice de peculato, o que torna despicienda a qualidade de empregado público.

b) Sobre a violação do direito a julgamento justo e conforme

Sustenta ainda o Recorrente que não foram apreciadas todas as suas alegações, pelo Tribunal ad quem, em sede de recurso ordinário (…) o que “configura uma clara limitação do direito de defesa, denegação de justiça, violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, violação do direito ao julgamento justo e conforme a lei, que dá lugar a nulidade da decisão (…) nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 668.º, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente”.
Decorre do n.º 2 do artigo 660.º do CPC que os Tribunais, quer da primeira, quer da segunda instância, devem apreciar todas as questões invocadas pelas partes nos seus expedientes processuais, sob pena de inquinar a sua decisão. Todavia, estão exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada as outras.
O Tribunal Constitucional analisou a decisão recorrida e pôde constatar que todas as questões centrais, suscitadas pelo Recorrente nas suas alegações, foram apreciadas, conforme se pode aferir a fls. 362 a 369 dos autos.
Apesar de o Recorrente entender que o Tribunal Supremo deveria debruçar-se sobre todas as questões invocadas por si nas suas alegações, este Tribunal entende que algumas questões ficaram prejudicadas pelas respostas dadas às outras. Assim sendo, nos termos da norma supramencionada, o Tribunal não tem o dever de apreciar religiosamente todas as questões, senão apenas aquelas que são essenciais para a decisão.
Quanto à alegação, por parte do Recorrente, de que o Acórdão recorrido violou a alínea a) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, a mesma não colhe.
Pois que, a norma mencionada estabelece ser nula a sentença quando não contenha a assinatura do Juiz. Ora, compulsados os autos, constata-se que o Acórdão recorrido contém a assinatura dos juízes, conforme se pode aferir a fls. 369 dos mesmos, pelo que não se verifica a nulidade invocada.
Destarte, o Tribunal Constitucional julga improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, por não se ter verificado a violação do direito de defesa, do princípio da tutela jurisdicional efectiva e do direito ao julgamento justo e conforme.

Nestes termos,

Decidindo

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 03/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique.


Tribunal Constitucional, em Luanda, 25 de Janeiro de 2023.


OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Víctor
Dr. Victorino Domingos Hossi