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Jurisprudência

ACÓRDÃO N.º 857/2023

 

PROCESSO N.º 1074-B/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Finibanco Angola, S.A., com os melhores sinais de identificação nos autos, veio interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 23/2022-A, pela 2.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, por inferir que o mesmo viola ou ofende princípios, direitos e garantias previstos na Constituição da República de Angola (CRA).
A Recorrente foi parte num processo que correu termos na 1.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal da Comarca de Luanda onde intentou e fez seguir uma acção de pagamento de quantia certa contra o Senhor Simão Lusakueno Nekaka Diabonde. Notificada sobre a falta de pagamento do preparo inicial e aplicada sobre esta a multa correspondente, a Recorrente apresentou uma reclamação sobre a supramencionada multa onde concludentemente, viu a sua pretensão ser indeferida.
Inconformado com a decisão do Tribunal a quo, interpôs recurso de agravo junto da Câmara do Cível, Administrativo, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, que em Acórdão prolactado pela 2.ª Secção daquela instância judicial não conheceu do objecto do recurso visto que, considerou extemporânea a apresentação das alegações e, por via disso, julgou deserto o recurso e, consequentemente, declarou extinta a instância (fls. 124-134 e verso dos autos).
Do Acórdão proferido por aquela instância jurisdicional, recorreu para esta Corte Constitucional, onde, após notificação, nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), a Recorrente apresentou as suas alegações, constantes de fls. 179-184 dos autos, tendo em síntese, aludido que:
1. Os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Luanda acordaram em não conhecer do objecto do recurso, julgando-o deserto e, como consequência, consideraram extinta a instância, baseando-se no facto das alegações de recurso terem sido apresentadas extemporaneamente, ou seja, após ser notificada para alegar a 15 de Julho de 2021, a então Agravante, ora Recorrente, devia fazê-lo até ao dia 23 de Julho daquele ano, tendo-o feito, apenas, 3 (três) dias após o referido prazo.

2. O Acórdão recorrido não se reveste de nenhuma base constitucional ou legal que impõe, in casu, ser determinada a deserção do recurso por extemporaneidade na apresentação das alegações, e por isso, impede a Recorrente de continuar a aceder aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, plasmados no n.º 6 do artigo 67.º - o direito ao recurso, o princípio do julgamento justo, devidamente acautelado pelo artigo 72.º e o princípio da tutela jurisdicional efectiva, prevista no n.º 1 do artigo 29.º, todos da Constituição da República de Angola.

3. É inegável que o processo judicial se deve desenvolver dentro de uma ordem lógica e cronológica razoável, com o intuito de atingir o seu maior objectivo, que é a resolução dos conflitos. Mas, tem de ser sempre em atenção que a primeira e principal fonte do direito é a Constituição, e que por isso, os alicerces do direito civil, são, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado.

4. A deserção do recurso por falta de apresentação tempestiva das alegações, caracteriza-se, em última análise, a negação do acesso ao direito e a justiça, sendo certo que, o objecto da lide não chegou a ser reapreciado pelo Tribunal de recurso, in casu, o Tribunal da Relação de Luanda, em virtude da ausência de um formalismo processual, que configura uma quebra da garantia constitucional do direito ao recurso.
5. A inconstitucionalidade ora arguida, consubstanciada no não conhecimento do recurso e consequentemente julgado deserto, com o fundamento no n.º 2 do artigo 690.º e artigo 291.º, ambos do CPC, nos quais o juízo supremo cavernosamente se refugiou na sua decisão, a luz do novo paradigma jurídico já não se justifica.

6. Fazendo uma interpretação infra sistemática do ordenamento jurídico angolano, sem descurar a Constituição no topo da hierarquia das normas, enquanto norma suprema, cfr. o artigo 6.º da CRA, depreende-se que o artigo 292.º do CPC, na parte que se refere à deserção por falta de alegações, não integra o espírito nem a letra da Constituição, e coarta o direito de recurso da Recorrente, pois a decisão recorrida mostra-se desnecessária, desproporcional e excessiva.

7. O que pressupõe dizer que o direito ao recurso é a manifestação jurídico-constitucionalmente vinculante de um direito e garantia da defesa, e não pode em hipótese alguma, ser posta em causa. Aliás, a jurisprudência em matéria de intempestividade das alegações, é de entendimento que o direito à acção não se limita apenas à propositura ou ao despoletar de uma acção, implicando, também um direito de ver reanalisada uma decisão com a qual não se concorde.

8. Razão pela qual, não se julga razoável que o direito a uma solução jurídico constitucional venha a ser sobreposta, e até mesmo preterida, pela intempestividade na apresentação das razões de facto e de direito da Recorrente.

9. Daí que, o Tribunal ao decidir como decidiu, não respeitou os princípios da legalidade, proporcionalidade, necessidade e adequação, porquanto, ponderado e analisado o seu juízo decisório, ele próprio violou estes preceitos, previstos nos artigos supracitados, requerendo-se a declaração de inconstitucionalidade do seu acto.

10. A inconstitucionalidade aqui arguida é por acção, pois trata-se de um acto positivo facere praticado pelo Tribunal a quo que contraria o disposto no n.º 2 do artigo 226.º da CRA.

11. Em boa verdade, o Tribunal ad quem, encontra nos autos elementos bastantes para conhecer do mérito do presente Recurso, sem prejudicar um direito constitucionalmente assegurado à Recorrente, independentemente da substância das alegações.

12. Na mesma conformidade, segundo nos narra a jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional, “a deserção de um recurso por falta ou mora na apresentação das alegações, mesmo que fundamentada em lei vigente, é inconstitucionalidade material”, vide Acórdão n.º 387/2016, do Tribunal Constitucional.
A Recorrente, termina pedindo que seja o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade julgado provado e procedente e, por via dele, ser total e incondicionalmente revogado o Acórdão da 2.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, por violação das normas constitucionais.


O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto, com base na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direitos e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstas na Constituição da República de Angola”.

Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos demais tribunais, conforme estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que dispõe o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE

A legitimidade para a interposição de um recurso extraordinário de inconstitucionalidade cabe, no caso de sentença, à pessoa que, em harmonia com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, possa dela interpor recurso, nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC.

A Recorrente foi parte no Processo n.º 23/2022-A, que correu termos na 2.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, que não viu a sua pretensão satisfeita, tendo, por conseguinte, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade circunscreve-se à apreciação da inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela 2.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, a 3 de Setembro de 2019, no âmbito do Processo n.º 23/2022-A, que não conheceu do objecto do recurso visto que considerou extemporânea a apresentação das alegações e por esta razão julgou deserto o recurso e em consequência declarou extinta a instância.

V. APRECIANDO

O pedido de declaração de inconstitucionalidade do aresto recorrido assenta sobre as conclusões que, por força do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente ao processo constitucional ex vi do artigo 2.º da LPC, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.

É submetido à apreciação do Tribunal Constitucional, o Acórdão da 2.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, prolactado no âmbito do Processo n.º 23/2022-A, que julgou deserto o recurso interposto e, em consequência, considerou extinta a instância, por apreender que a Recorrente apresentou as suas alegações de modo extemporâneo.

A Recorrente, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, requer a intervenção do Tribunal Constitucional, por entender que o Acórdão recorrido ofendeu o princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e violou o direito ao julgamento justo e conforme, consagrados nos artigos 29.º e 72.º, bem como ofendeu os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade e adequação, previstos nos artigos 6.º e 57.º, todos da Constituição da República de Angola.

Vejamos, pois, se assiste razão à ora Recorrente, face às questões levantadas.

A Recorrente assevera que o Acórdão recorrido é inconstitucional por violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efectiva e do direito ao julgamento justo e conforme, e ofensa aos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da necessidade e adequação, visto que julgou deserto e como consequência, considerou extinta a instância, pelo facto das alegações de recurso terem sido apresentadas extemporaneamente, ou seja, foi notificado para alegar a 15 de Julho de 2021 e apenas veio a fazê-lo 3 (três) dias após o término do prazo, tendo sido, no entender da Recorrente, impedida de continuar a aceder aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Importa ressaltar que o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito a julgamento justo e conforme, decorrem das disposições constantes nos artigos 29.º e 72.º, ambos da CRA.
Determina o n.º 1 do artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos - PIDCP, que “todas as pessoas têm direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido pela lei, que decidirá quer do bem fundado de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra elas (…)”.
Das disposições conjugadas do artigo 72.º da CRA e do artigo 14.º do PIDCP, resulta claro que o direito a um julgamento justo significa que deve existir, em todas as circunstâncias, um justo equilíbrio entre a acusação e a defesa. Nenhuma das partes deverá ser colocada, em qualquer momento do processo, numa posição de desvantagem face ao seu oponente.
O princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva constitui uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de Direito. É certo que carece de conformação através da lei, requerendo, por isso, da parte do Estado uma dimensão prestacional, no sentido de ser necessário colocar à disposição dos indivíduos uma organização judiciária e um leque de processos garantidores da consagrada tutela jurisdicional efectiva.
Essa sua natureza é incontornável, quer quanto ao direito de acesso ao direito, através das vias não-jurisdicionais, aos serviços de informação e consulta jurídica, e até mesmo de patrocínio judiciário e de acompanhamento por advogado perante qualquer autoridade não judiciária, quer quanto ao direito de acesso aos tribunais, quer ao patrocínio judiciário para pleitear judicialmente.
Em face ao princípio fundamental em causa, consagrado nos preceitos legais referidos, ninguém pode ser privado de aceder ao direito e aos tribunais para fazer valer os seus direitos, direitos esses que o Estado também está obrigado constitucionalmente a conceder-lhe.
Defendem Joaquim de Sousa Ribeiro, Maria João Antunes e Onofre dos Santos que “uma vez garantido o acesso a um tribunal, através do exercício do direito de acção, o processo deve obedecer a princípios e regras que garantam uma tutela efectiva. Para tal, o decurso da acção tem que observar o princípio do processo equitativo” (Direitos Humanos/Direitos Fundamentais – Os Sistemas Internacional e Angolano de Protecção, Editora Petrony, 2020, p. 152).
Jorge Miranda e Rui Medeiros defendem que “(…) no que se refere aos efeitos cominatórios e preclusivos, o Tribunal Constitucional não considera inconstitucionais – desde que, obviamente, as respectivas sanções não se revelem em concrecto arbitrárias ou desproporcionadas” (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., rev., actual e ampl., Coimbra Editora, 2010, p. 446).
Estes mesmos autores parafraseiam que “um processo equitativo, que assegure efectivamente um direito de defesa, não pode impor às partes prazos para a realização de actos processuais tão curtos que envolvam uma diminuição arbitrária – incluindo por referência a prazos análogos em processos essencialmente semelhantes – ou excessiva dos seus direitos de defesa” (Ibid., p. 449).
Por sua vez, segundo Pedro Manuel Luís: “O princípio [da tutela jurisdicional efectiva] pressupõe a possibilidade de que todos, indistintamente, possam pleitear as suas demandas junto dos órgãos do Poder Judiciário, desde que obedecidas as regras estabelecidas pela legislação processual para o exercício do direito” (Curso de Direito Constitucional Angolano, Qualifica Editora, 2014, p. 202).
Comentando sobre o artigo 29.º da CRA que consagra o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, aduzem Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes que “para a concretização deste preceito constitucional torna-se imperioso que os tribunais estejam próximos dos cidadãos e que a legislação processual possibilite a realização de decisões em tempo útil, a fim de as tornar exequíveis e justas” (Constituição da República de Angola Anotada – vol. I, Gráfica Maiadouro, 2014, p. 274).
O acesso aos tribunais para salvaguardar os direitos pressupõe que a tutela obtida através dos tribunais seja efectiva. Salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira que “[o] princípio da efectividade postula, desde logo, a existência de tipos de acções ou recursos adequados (…), tipos de sentenças apropriadas às pretensões de tutela deduzida em juízo e clareza quanto ao remédio ou acção à disposição do cidadão” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, Coimbra, vol. I Artigo 1.º a 107.º, p. 416).
Gomes Canotilho e Vital Moreira, na sua obra intitulada Constituição da República Portuguesa Anotada, publicada em 1993, pela Coimbra Editora, p. 163, defendem que “o direito de acesso aos tribunais compreende desde logo um direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso, proibindo prazos de caducidade exíguos do direito de acção ou de recurso”.
Bárbara Nazareth Oliveira, Carla de Marcelino Gomes e Rita Páscoa dos Santos discorrem que “numa tentativa de sistematizar as garantias incluídas no direito de acesso aos tribunais, poderá dizer-se que as mesmas incluem o direito de acção e de acesso a tribunais, (…) o direito a um processo, o direito a decisão que verse sobre o mérito da causa e o direito à execução da decisão (…) 'e a realização' em processo temporalmente justo e equitativo” (Os Direitos Fundamentais em Timor Leste: Teoria e Prática, Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Provedoria dos Direitos Humanos e Justiça de Timor Leste, 2015, p. 451).
Assim, o direito do acesso aos tribunais e a tutela jurisdicional efectiva consagrado na CRA deve obedecer a tramitação processual devida e ser articulado com outros direitos constitucionalmente consagrados, tal como o direito ao recurso. Neste contexto, in casu, a sanção da deserção não se afigura como inadequada, porquanto, foi dada à Recorrente oportunidade de recorrer e esta deixou que o seu direito precludisse.
Relativamente ao princípio da legalidade, plasmado no artigo 6.º da CRA, asseveram Jónatas Machado, Paulo Nogueira da Costa e Esteves Carlos Hilário, que “este princípio radica no facto de que as decisões judiciais devem procurar interpretar as leis de forma imparcial, correcta, justa, clara e previsível, despidas de qualquer subjectividade, intuicionismo ou impressionismo” (Direito Constitucional Angolano, 4.ª Edição, Petrony, 2017, p. 76).
Ora, a Recorrente teve a oportunidade de interpor a acção em juízo e o processo seguiu a sua tramitação processual normal, tendo cumprido todas as etapas previstas, não se afigurando em que sentido o princípio tenha sido ofendido pela decisão recorrida.
No que concerne ao respeito pelo princípio da proporcionalidade, consagrado no n.º 1 do artigo 57.º da CRA, Jorge Bacelar Gouveia sustenta que “um acto do poder público é proporcionado se a finalidade que a Ordem Constitucional lhe comete se afigura cabalmente medida no confronto com as opções de selecção e modelação de intervenção prática que esse meio oferece” (Direito Constitucional de Angola, IDILP-Instituto do Direito de Língua Portuguesa Campus de Campolide, 2014, p.238).
Nesse mesmo sentido argumenta Mariana Canotilho que “a proporcionalidade (entendida em sentido amplo) é, pois, considerada como princípio geral de limitação da actividade do poder público – quer no que respeita à concretização de princípios jurídicos (como a subsidiariedade), quer quanto a medidas restritivas de direitos fundamentais” (O Princípio da Proporcionalidade, In XIII Encontro de Professores de Direito Público, Org. Dulce Lopes, Francisco Pereira Coutinho e Catarina Santos Botelho, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2021, p. 12).
Prossegue referindo que “sabemos que a interpretação das normas de direitos fundamentais implica a definição de limites, ou fronteiras fundamentais, correspondentes a valores com eles conflituantes. Se é sempre assim, dir-se-á, então é lógico que se mobilize em (quase) todos os casos o princípio da proporcionalidade, desdobrando-se a análise de conformidade constitucional nos passos necessários à verificação dos subprincípios dogmaticamente estatuídos de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito” (Ibid., p. 17).
Logo, percebe-se que o princípio da proporcionalidade, deve ser entendido como uma garantia da defesa dos direitos individuais contra a arbitrariedade e os excessos ilegítimos de quem detém uma posição de poder, de superioridade ou de decisão sobre aspectos fundamentais da vida de outrem.
Do acima exposto resulta claro que o eixo da discussão centra-se, assim, no efeito preclusivo da pretensão da Recorrente associado ao momento da apresentação das alegações junto da 2.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, tratando-se, agora, de saber se estamos perante um ónus processual adequado e compatível com um processo justo, legal e proporcional, apto a assegurar a tutela efectiva dos direitos das partes que a ele recorrem.
Trata-se, em suma, de verificar se o ónus imposto à então parte, ora Recorrente – ou seja, apresentar as suas alegações de forma atempada, revela falta de adequação funcional e desrespeito pela regra da proporcionalidade, uma vez que são constitucionalmente censuráveis os obstáculos que dificultam ou prejudicam, arbitrariamente ou de modo desproporcional, o acesso ao direito e aos tribunais e a tutela jurisdicional efectiva.
É evidente o interesse na fixação de um momento preclusivo para o exercício do dever de apresentação das alegações que visa disciplinar a actuação dos Recorrentes. Sem tal fixação, esta fase do processo não assumiria carácter definitivo, ficando como que suspensa de um comportamento eventual do destinatário da obrigação de apresentação das alegações não referenciado no tempo. Assim, a previsão de um limite temporal para o exercício daquela obrigação não se mostra arbitrária, sendo útil para a realização dos fins de boa administração da justiça.
Deve, então, apreciar-se se é excessiva ou de algum modo desproporcional a fixação de tal efeito no momento da apresentação das alegações. Sabendo que o requisito da adequação funcional visa, precisamente, evitar a imposição de exigências puramente formais, impostas arbitrariamente e destituídas de qualquer sentido útil e razoável.
Ao contrário do que sustenta a Recorrente nas suas alegações, o Acórdão n.º 387/2016, disponível em https://tribunalconstitucional.ao/pt/jurisprudencia/ acordao, per se não firma o entendimento desta Corte, segundo o qual a cominação de deserção do recursos em sede da jurisdição comum pela apresentação extemporânea das alegações constituir uma inconstitucionalidade, até porque neste caso in concreto o Tribunal recorrido, no Acórdão prolactado, não levou em conta o facto de que as alegações entraram atempadamente mas foram registadas pelo cartório do Tribunal de forma tardia e, por outro lado, o Tribunal Constitucional considerou naquela decisão que a falta não essencial de apresentação das alegações no processo penal a sua cominação em deserção afigurava-se desproporcional.
Ademais, o Acórdão n.º 387/2016 refere: “Considera-se que, num recurso penal o Tribunal ad quem, na falta de alegações, tem nos autos elementos mínimos que lhe permitam conhecer o mérito do recurso sem sacrificar, em substância, o direito constitucional à apreciação do processo em segunda instância (dupla jurisdição)”.
Determina ainda este Acórdão que “Com esta compreensão é entendimento do Tribunal Constitucional que a deserção de um recurso penal, por falta ou mora na apresentação das alegações, mesmo que fundamentada em lei vigente, é inconstitucionalidade material”.
No Acórdão recorrido, socorrendo-se dos artigos 145.º e 146.º, ambos do Código de Processo Civil, entendeu o Tribunal da Relação de Luanda que o prazo era peremptório, ou seja, o decurso do prazo extinguiria o direito, salvo, duas excepções, o justo impedimento ou independentemente deste, a prática do acto no primeiro dia útil seguinte ao termo do prazo, devendo para tal a Recorrente proceder ao pagamento da multa correspondente.
Da apreciação dos autos, verifica-se que a ora Recorrente, efectivamente, foi notificada para apresentar as suas alegações dentro do prazo de 8 dias, a 15 de Julho de 2021, sendo que, devia fazê-lo até à sexta-feira 23 de Julho de 2021. No entanto, assim não procedeu, pois apenas apresentou as referidas alegações a 28 de Julho de 2021, quando a irregularidade do acto da Recorrente seria sanável se esta oferecesse prova sobre o seu justo impedimento, caso houvesse, ou então efectuaria a entrega das alegações no dia 26 de Julho de 2021 e, neste caso, aplicar-se-ia o prazo cominatório e a Recorrente pagaria uma multa pelo referido atraso.
Aliás, tem sido este o entendimento desta Corte Constitucional sobre esta possibilidade ao prolactar-se que “A rácio contida na norma sobredita [n.º 5 do artigo 145.º do Código de Processo Civil], resulta do entendimento com dignidade constitucional do artigo 29.º da CRA, no exercício efectivo da chamada tutela jurisdicional efectiva, pois, sonega o direito de a decisão ser apreciada com fundamentos processuais sanáveis mediante o pagamento de multa. Configurou violação da Constituição, nos termos do artigo já citado”. Vide Acórdão n.º 634/2020, disponível em https://tribunalconstitucional.ao/ptpt/jurisprudencia// acordao.
A jurisprudência deste Tribunal ressoa neste mesmo sentido, in verbis: “Neste contexto, o Tribunal Constitucional entende que a decisão do Tribunal recorrido é uma decisão que se assume como revisão prioris iudicium, ou seja, são reexaminadas as questões dúbias do primeiro grau de jurisdição, excluindo-se novas excepções e novas provas, e que, no decurso do processo foi dado a oportunidade ao Recorrente de deduzir as suas alegações de recurso. Além disso, apesar de o ter feito, a ora Recorrente fê-lo de forma extemporânea. Portanto, não lhe foi vedada a possibilidade de se defender, o aqui Recorrente é que, não o fez no momento devido” vide Acórdão n.º 800/2023, disponível em https://tribunalconstitucional.ao/pt/jurisprudencia/acordao.
O acima vertido, tanto é verdade que se constata, ainda, dos autos (a fls. 118), que a própria Recorrente admite que procedeu a apresentação intempestiva das alegações, haja vista que, enquanto Agravante devia dar impulso ao recurso de agravo apresentado por remeter atempadamente as suas alegações.
Assim sendo, neste caso in concreto e atendendo a natureza e os fins do processo civil, este Tribunal entende que, não tendo a Recorrente provado a existência de qualquer justo impedimento e nem apresentado as suas alegações no dia útil imediatamente a seguir com o respectivo pagamento da multa, a cominação em deserção por extemporaneidade na apresentação das alegações não se afigura excessiva e nem desproporcional.

Aqui chegados, verifica-se que não se descortinam na decisão recorrida quaisquer ofensas aos princípios da legalidade, da proporcionalidade, da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme.
Pelo exposto, fica distintamente patenteado que o Aresto recorrido e ora apreciado, não ofendeu quaisquer dos princípios constitucionalmente consagrados na Constituição da República de Angola e aqui alegados pela Recorrente.


Nestes termos,

DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO POR NÃO SE TEREM VERIFICADO NO ACÓRDÃO RECORRIDO QUAISQUER OFENSAS AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, PROPORCIONALIDADE, TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA E JULGAMENTO JUSTO E CONFORME.
Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 15 de Novembro de 2023.


OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente e Relatora)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi