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Jurisprudência

ACÓRDÃO N.º 858/2023

 

PROCESSO N.º 1081-A/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Alexandre Paulino Bumba, com melhores sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade (REI), nos termos do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), do Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda, que negou provimento ao recurso relativo ao Despacho que rejeitou o seu pedido de abertura de instrução contraditória.
O aqui Recorrente foi acusado pela prática dos crimes de Peculato, Recebimento Indevido de Vantagens, Associação Criminosa, Participação Económica em negócios, Branqueamento de Capitais, e de violação de Normas de Execução e do Plano do Orçamento e de Abuso de Poder.
Inconformado, requereu a abertura da Instrução Contraditória, por entender que o acusador faz uma errônea qualificação jurídica dos factos.
O Tribunal da 1.ª Instância indeferiu o pedido de abertura da instrução contraditória e, inconformado com o Despacho de rejeição, o Recorrente interpôs recurso ordinário para o Tribunal da Relação de Luanda, que, por sua vez, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão do Tribunal a quo.
Insatisfeito com o Acórdão prolactado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 21/22-B, o Recorrente interpôs recurso para esta Corte Constitucional e, para fundamentar a sua pretensão, alega, em conclusões, que:
1. O modelo do processo penal angolano reconhecido como de matriz acusatória não autoriza o juiz a se pronunciar sobre o mérito da prova antes da realização da instrução contraditória, sob pena da violação do princípio da separação de poderes, do princípio do acusatório, da ampla defesa, da tutela jurisdicional efectiva e da presunção da inocência, do princípio do processo penal justo e equitativo, bem como garantias do processo criminal.
2. No direito vigente, o juiz só pode se pronunciar sobre as provas após o julgamento, em homenagem ao princípio da imediação, isto é, na tomada de decisão sobre o processo, pode sim controlar a legalidade da sua obtenção.
3. A instrução contraditória é facultativa até ser requerida a sua abertura, uma vez requerida, quando estão preenchidos os requisitos do n.º 5 do artigo 333.º do CPPA, torna-se obrigatória, pois é um direito potestativo.
4. O direito em vigor em Angola não autoriza a rejeição da abertura da Instrução Contraditória se não por extemporaneidade, por falta de legitimidade, falta de competência do tribunal ou quando a Instrução Contraditória seja inadmissível nos termos da lei, v. g., processos especiais ou arquivamento do processo (333.º n.º 5 e 332.º n.º 3 do CPPA).
5. Há uma separação clara entre Instrução Contraditória e diligência a realizar dentro dela e Instrução Contraditória para o debate oral e contraditório.
6. Sempre que requerida a Instrução Contraditória, quando não há lugar a realização de diligências instrutórias, há lugar a Instrução Contraditória para o debate oral e contraditório, se for pedida (artigo 341.º n.º 1 do CPPA), sendo pálidas as hipóteses de rejeição da abertura desta fase.
7. A rejeição da Instrução Contraditória com fundamentos na bondade das diligências pretendidas pelos arguidos ou na suficiência de elementos de prova no processo apresentados, ou dito de outro modo, com fundamento na bondade das diligências, o Tribunal coloca-se no lugar do Ministério Público, em absoluta inconstitucionalidade por violação dos princípios da imediação, do contraditório, do acusatório, da imparcialidade e do processo justo e equitativo.
8. Apenas os recorrentes sabem que tipo de diligência pedir ao tribunal, no exercício do contraditório e do princípio da igualdade de armas, para contrariar a acusação do Ministério Público que teve o seu momento de realizar as diligências probatórias que julgou necessárias, sendo por isso um direito potestativo. Negar a Instrução Contraditória tem o significado de limitar o direito à defesa ao arrepio da Constituição, por isso inconstitucionalidade que evoca.
9. A consequência pela preterição das formalidades relativas à acusação é nulidade da mesma.
10. Não tendo a acusação indicado os meios de prova que sustentam a acusação aquelas que demonstrem a culpa dos recorrentes [artigo 329.º n.º 1 al. a) do CPP], deve a acusação ser declarada nula na parte que se refere aos recorrentes nos termos do n.º 1 do mesmo artigo.
11. A rejeição da abertura da Instrução Contraditória que esteja em conformidade com os artigos 333.º n.º 5 e 334.º, ambos do CPPA, fulmina o processo com nulidade insanável nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 140.º.
12. A pronúncia sobre a suficiência da prova no processo viola o princípio da separação de poderes, o princípio do acusatório, da ampla defesa, da tutela jurisdicional efectiva, da presunção da inocência, do princípio processo penal justo e equitativo, bem como a garantia do processo criminal.
O Recorrente termina as suas alegações, referindo que: o Acórdão recorrido é inconstitucional por violação dos princípios supracitados e pelo facto de ter validado o Despacho que rejeita o pedido de instrução contraditória sem fundamento legal; e que, consequentemente, deve ser anulado o Despacho que rejeita a abertura de Instrução Contraditória, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 140.º do Código do Processo Penal Angolano (CPPA); e considerada nula a acusação pelas razões sufragadas.
O Processo foi a vista do Ministério Público.
Cumpridas as formalidades legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE
O Recorrente viu rejeitado o seu pedido de abertura de instrução contraditória no Processo n.º 21/22-B, que correu trâmites na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda, pelo que, tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “(…) podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem como objecto apreciar se o Acórdão prolactado pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 21/22-B, que negou provimento ao recurso, ofendeu ou não princípios, direitos e garantias, nomeadamente, os princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da presunção de inocência, do direito a julgamento justo e conforme e do acusatório, contraditório, da ampla defesa, consagrados nos artigos 29.º, 67.º, 72.º e n.º 2 do artigo 174.º, todos da Constituição da República de Angola.

V. APRECIANDO
No Tribunal Provincial do Moxico corre trâmites o Processo-crime n.º 138-E/2021, nos termos do qual o Recorrente, e demais arguidos, foram notificados da acusação do Ministério Público, pela prática de: um crime de peculato, p.p. pela alínea c) do artigo 362.º; um crime de recebimento indevido de vantagens, p.p. pelo n.º 2 do artigo 357.º; um crime de associação criminosa, p.p. pelo n.º 1 do artigo 296.º; um crime de participação económica em negócios, p.p. pelo artigo 364.º, e um crime de abuso de poder, p.p. pelo artigo 374.º, todos do Código Penal Angolano (CPA); um crime de branqueamento de capitais, p.p. pelo artigo 60.º da Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro - Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo; e um crime de violação de normas de execução do plano e do orçamento, p.p. pelo artigo 36.º da Lei n.º 3/10, de 29 de Março - Lei da Probidade Pública.
Inconformado com a acusação formulada pelo Ministério Público, o Recorrente requereu a abertura de instrução contraditória, ao abrigo do artigo 332.º e ss. do CPPA, com vista a obter uma decisão judicial que confirmasse ou infirmasse o mérito da acusação.
O Juiz da 5.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Moxico, por Despacho proferido a fls. 698 a 700, indeferiu o pedido por falta de fundamentação de facto e de direito, nos termos do n.º 2 do artigo 333.º do CPPA, aduzindo que: “Assim, quanto ao pedido de Instrução Contraditória formulado pelo Mandatário Judicial dos arguidos, indefiro tal requerimento por falta de fundamentação de facto e de direito, uma vez que há nos autos elementos bastantes, para levar a julgamento os arguidos (…).”
Deste Despacho, o Recorrente interpôs recurso (fls. 671-679 verso) para o Tribunal da Relação de Luanda, pedindo a nulidade do Despacho de rejeição da abertura da instrução contraditória e, consequentemente, a sua admissão, bem como a apreciação, a título incidental, da constitucionalidade do referido Despacho.
Apreciada a questão, a 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda negou provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão recorrida, por considerar que o Recorrente preteriu, de modo manifestamente relevante, formalidade essencial para fazer valer os seus direitos (fls. 744-753), com fundamento no n.º 1 do artigo 332.º e no n.º 5 do artigo 333.º, ambos do CPPA.
Inconformado, o Recorrente interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por entender que o Acórdão recorrido não atendeu os pedidos por si formulados, inerentes à nulidade do Despacho de rejeição da abertura da instrução contraditória proferido pelo Juiz de 1.ª Instância, e, consequentemente, a sua admissão, e que o mesmo ofendeu os princípios do contraditório, do acusatório, da ampla defesa, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, do direito a julgamento justo e conforme, da presunção de inocência, todos consagrados na CRA.
Compulsados os autos, constata-se que os princípios constitucionais alegados pelo Recorrente como ofendidos, encontram-se, todos eles, correlacionados com o princípio do contraditório, pois as alegações de recurso por si apresentadas assentam, essencialmente, no facto de o Acórdão em crise ao concordar com a decisão do Tribunal a quo, que se pronunciou preliminarmente sobre a suficiência da prova, e rejeitou a abertura da instrução contraditória, cerceando, assim, o direito de defesa do arguido sobre a acusação.
Para esta matéria, a título de exemplo, refere o Acórdão n.º 698/2021 deste Tribunal, que “o princípio do contraditório e o princípio da ampla defesa encontram-se ligados, na medida em que, a defesa garante o contraditório e por ele se manifesta.”
Neste sentido, in casu, o Tribunal Constitucional vai proceder à apreciação conjunta, da violação ou não dos princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como, consequentemente, dos princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, do direito a julgamento justo e conforme, do acusatório, e da presunção da inocência, todos em estreita conexão.
O princípio do contraditório, segundo Ana Prata, Catarina Veiga e José Manuel Vilalonga, “impõe que a imparcialidade, objectividade e a independência só serão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de investigação preliminar e de acusação das infracções, somente lhe competindo investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado, (Dicionário Jurídico, Direito Penal e Processual Penal, 2.ª edição, Vol. II, 2008, p. 383).
Este princípio é uma garantia do processo criminal que certifica que os Tribunais são obrigados, no exercício das suas funções jurisdicionais, a assegurar a correlação entre os princípios do acusatório e do contraditório e a reprimir as violações da legalidade democrática, conforme vem consagrado no n.º 1 do artigo 67.º e no n.º 2 do artigo 174.º da CRA.
O Acórdão recorrido violou ou não os princípios do contraditório e da ampla defesa e, consequentemente, os demais princípios e direitos constitucionais alegados pelo Recorrente?
Vejamos,
Constata-se dos autos que o Acórdão recorrido arrimou-se ao Despacho de indeferimento do requerimento da abertura de instrução contraditória exarado “(…) por falta de fundamentação de facto e de direito, uma vez que há nos autos elementos bastantes, para levar a julgamento os Arguidos (…).” Cfr. Fls. 700.
Por isso, sustenta o Acórdão do Tribunal a quo que “Analisada a finalidade da instrução contraditória, facilmente se pode verificar que o requerimento apresentado pelo arguido não agrega as condições de facto e de direito que, justifiquem a realização da diligência em questão. Pelo que, é efectivamente de se rejeitar, com os fundamentos supra invocados.
Isto para dizer que, em concreto, ao recorrente se impunha que, minimamente, algo levasse de relevante ao seu requerimento, para além da mera discordância, que ficou, e bem, sublinhada no despacho recorrido.
Deste modo, dúvida não existe de que o Recorrente preteriu, de modo manifestamente relevante, formalidade essencial para fazer valer os seus direitos e, só a si, o deve, sendo que a fundamentação do despacho é plenamente esclarecedora e consentânea com a previsão do n.º 5 do artigo 333.º do C.P.P.” Cf. fls. 752-753.
Porém, é de levar em conta que, actualmente, no âmbito das ideias básicas da reforma do Direito Processual Penal angolano, a instrução contraditória deixou de ser uma sub-fase da instrução preparatória, assumindo-se como uma fase autónoma que completa a estrutura contraditória do processo penal. Por esta razão, não deve o juiz pronunciar-se sobre o mérito da prova antes da realização da instrução contraditória.
É por esta razão que o n.º 2 do artigo 337.º do CPPA, enquadrado no âmbito dos actos de efectivação da instrução contraditória, ou seja, posterior à sua abertura e não antes dela, estabelece que “O juiz deve indeferir por despacho o requerimento relativo aos actos que considerar irrelevantes para a instrução do processo ou que apenas sirvam para protelar o seu andamento, praticando ou ordenando apenas os que considerar úteis ao apuramento da verdade”. (Sublinhado nosso).
O Acórdão ora recorrido refere, a fls. 683, que o requerimento carece de fundamentação de facto e de direito. O conteúdo do requerimento para a abertura da instrução contraditória está prescrito no n.º 2 do artigo 333.º do CPPA.
Ora, analisado o requerimento apresentado pelo Recorrente, fls. 690 a 696, pode-se constatar que existem condições de admissibilidade da instrução contraditória, dado que o Recorrente apresentou questões de facto e de direito aproximados ao que afirma o Acórdão recorrido (fls. 751), quando se refere aos elementos que o requerimento para a instrução contraditória deveria conter.
Diz, por exemplo, o requerimento do aqui Recorrente que:
“I. Da Nulidade
(…) 4.º
Da leitura crítica à acusação, formalmente, percebe-se facilmente que não obedeceu ao previsto no artigo 329.º n.º 1 al. e) do CPP, porquanto não indica de forma especificada ou individualizada as provas dos factos que imputa aos arguidos.
(…) 6.º
O conteúdo vertido na douta acusação, especificamente no articulado 9.º e 10.º, resulta claro que deve ser tratado no âmbito do Direito Administrativo e não do Direito Penal em decorrência do princípio da intervenção mínima do Direito Penal.
7.º
Não obstante isso, a acusação basta-se de contradição, é o que resulta do articulado 20.º e 50.º e muitas outras incoerências que não mostram com clareza qual é o objecto do processo, por isso serem necessárias diligências contraditórias.

II. Instrução Contraditória e Diligências Instrutórias
1. Precisar as circunstâncias de tempo e de lugar (como, onde e quando) na celebração do contrato entre a Empresa Ana Manifesta com a Administração Municipal do Alto Zambeze (ouvir em declarações os três primeiros arguidos na ordem da acusação e Testemunha Irene Caputo – Funcionário da Delegação das Finanças);

(…) 3. Saber e juntar prova do lugar onde se encontrava o arguido na data da celebração do contrato entre a Administração Municipal do Alto Zambeze e a empresa Ana Manifesta;

5. Como o M.º P.º acha que o arguido devia saber que a referida empresa não tinha licença para construção de obras públicas;

(…) 7. No articulado 17.º o arguido é acusado de receber vantagens pelo contrato com a Ana Manifesta – pede-se prova deste facto;

8. Sobre o articulado 40.º da acusação, perguntar à testemunha Oumar quem deu tratamento à referida reclamação;
9. Relativamente ao articulado 65º, pede-se prova de amizade entre o arguido e o co-arguido Pedro Assis;

10. Qual é a base de cálculo do prejuízo que o Estado teve? Será que pelo facto de uma obra não estar concluída ou a mesma faltar qualidade é fundamento de intervenção do direito penal?

11. Ao M.º P.º pede-se prova dos factos alegados no articulado 20.º da acusação.
(…) 13. O Estado teve prejuízo de Kz. 68 422 550,00 será que todo o trabalho feito é nulo e vale zero (ouvir a testemunha Oumar);

(…) 15. Se há prejuízo para o Estado, quem efectivamente provocou este prejuízo?

16. Ao M.º P.º pede-se prova do facto alegado no articulado 65.º da acusação.

III. Matéria de direito
1. Debate contraditório sobre a verificação de cada elemento constitutivo dos tipos legais imputados aos arguidos e sua prova e a sua subsunção aos factos.

2. Aplicabilidade do artigo 36.º da Lei n.º 3/10 de Março – Da Probidade Pública face ao artigo 6.º da Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro - Lei que aprova o Código Penal Angolano.
Com estes dados, o requerimento apresentado pelo Recorrente a solicitar a abertura de instrução contraditória contraria as razões invocadas para a sua rejeição.
O Manual do Processo Penal Angolano, elaborado por vários autores do INEJ, no âmbito do Projecto de Apoio à Consolidação do Estado de Direito, refere que o requerimento atinente ao pedido de abertura de instrução contraditória não obedece a requisitos especiais rigorosos e, sobre o seu conteúdo, diz que: “O requerimento embora não esteja sujeito a formalidades especiais, deve conter, em síntese, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou do despacho de arquivamento, bem como, os factos ou meios de prova que não foram levados em conta na fase de instrução preparatória, e os factos que o requerente pretende que sejam considerados e as provas que, para esse efeito, apresenta ou cuja produção requeira (n.º 2 alínea a), b) e c) do artigo 333.º do CPPA), (Adão Alberto Luciano et al., (2022), Manual do Processo Penal Angolano, Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., p. 57).
Indicados os fundamentos de facto, Afonso Comidando considera “(…) o fundamento de direito um requisito que não deve condicionar a apreciação do pedido do arguido, sob pena de se traduzir em denegação de justiça” (Direito Processual Penal – O novo Código, Editora Muenhu, 2021, p. 450).
Acrescenta-se, a isto, que está equivocado o Acórdão recorrido quando afirma, a fls. 750, que “Ora, o ponto de partida para se aferir da admissibilidade ou não, do pedido de abertura da instrução contraditória é, sem sombras de dúvidas, a finalidade da mesma. Neste sentido, o n.º 1 do artigo 332.º do CPPA prescreve o seguinte: «A instrução contraditória tem por fim obter uma decisão judicial que confirme ou infirme o mérito da acusação ou despacho de arquivamento, com vista a submeter o arguido a julgamento ou arquivar o processo».”
Trata-se, aqui, da visão teleológica da instrução contraditória, ou seja, o seu fim ou causa determinante, propósito, objectivo, enfim, a sua finalidade. Não pretende, de forma alguma, o aludido n.º 1 do artigo 332.º do CPPA. estabelecer um requisito essencial de admissibilidade ou não do pedido de abertura da instrução contraditória, como assertivamente pressagia o Acórdão recorrido. Os requisitos do requerimento constam do n.º 2 do artigo 333.º do CPPA.
É, ainda, de considerar, a este propósito, que o Acórdão recorrido deixou de levar em conta que, mesmo nos casos em que o arguido não tiver requerido actos de instrução contraditória, limitando-se à discordância de razões de facto ou de direito, dispõe o n.º 1 do artigo 341.º do CPPA que “Quando não forem requeridas ou, nos termos do n.º 2 do artigo 334,º, ordenados actos de instrução contraditória, limitando-se a discordância de quem requereu a sua abertura à apreciação dos factos ou a outras questões de direito, o magistrado judicial competente/juiz de garantias ordena, desde logo, uma audiência preliminar para debate oral e contraditório entre as partes”.
Nesta conformidade, considera esta Corte Constitucional que, no caso vertente, a solicitação do Recorrente para abertura de instrução contraditória não podia ser postergada.
Ademais, a lei confere aos arguidos, em processo penal, a faculdade de requerer a instrução contraditória (com a finalidade aflorada no n.º 1 do artigo 332.º do CPPA), que, segundo José A. Eduardo Sambo, é uma segunda fase de complemento da prova que à luz do artigo 327.º do CPP de 1929, poderia ser requerida pelo Ministério Público antes da dedução da Acusação, mas, “com a aprovação do CPPA, a instrução só pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente e apenas depois de deduzida a acusação ou sendo arquivado o processo”, (Manual de Direito Processual Penal Angolano, em harmonia com o novo Código de Processo Penal, Vol. I, 2022, p. 505).
E, sendo a instrução contraditória um direito do arguido, o n.º 5 do artigo 333.º do CPPA estabelece que “O requerimento só pode ser rejeitado se for extemporâneo, se o juiz for incompetente ou se a abertura da instrução contraditória for inadmissível”.
A inadmissibilidade que aqui se impõe decorre do n.º 3 do artigo 332.º do CPPA, ao dispor que “não há instrução contraditória nos processos especiais e no caso de arquivamento do processo pelos motivos indicados no artigo 326.º, se o arguido tiver cumprido as injunções”.
Rejeitar o requerimento, in casu, extrapolando a taxatividade normativa, prevista no n.º 5 in fine do artigo 333.º do CPPA (que prevê em que casos pode o requerimento de abertura de instrução contraditória ser rejeitado), implicaria a necessária ponderação, de forma a não impedir que o Recorrente pudesse fazer valer o seu direito à uma segunda fase de complemento da prova, enquanto mecanismo para a descoberta da verdade material.
Mas, mesmo que assim não fosse, o Tribunal ad quem, no Acórdão recorrido, deixou de levar em conta que a decisão do Tribunal a quo, que rejeitou a abertura da instrução contraditória, poderia encaminhar-se para um convite de aperfeiçoamento do requerimento, e não inviabilizar, logo à partida, a possibilidade de o aqui Recorrente fazer valer (adequadamente) o seu direito a uma nova fase processual.
A concordância prá¬tica entre o valor da celeridade, conatural ao processo penal, e a plenitude das garantias de defesa, é possível, com a formulação de convite para, em prazo curto, ser suprida a deficiência, sem necessidade de se chegar ao extremo de fulminar, desde logo, a garantia, constitucionalmente consagrada, de defesa do arguido.
Com isto, o Acórdão recorrido fez tábua rasa a uma garantia do processo criminal, decorrente do princípio do contraditório, fragilizando o direito do Recorrente e impondo uma consequência muito mais grave que a irregularidade que o Acórdão recorrido diz ter detectado.
Neste contexto, considera este Tribunal assistir razão ao Recorrente por a decisão recorrida violar os princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da presunção de inocência, do direito a julgamento justo e conforme e do acusatório, contraditório, da ampla defesa, consagrados nos artigos 29.º, 67.º, 72.º e n.º 2 do artigo 174.º, todos da CRA.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO, POR VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS E DIREITOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 15 de Novembro de 2023.


OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi