Loading…
TC > Jurisprudência > Acórdãos > Acórdão Nº 859/2023

Jurisprudência

ACÓRDÃO N.º 859/2023

 

PROCESSO N.º 1082-B/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Rui Emídio Manuel, com os demais sinais de identificação nos autos, vem interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, contra o Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 6059/21, que negou provimento ao recurso interposto pelo aqui Recorrente e pelo Ministério Público, confirmando a decisão do Tribunal a quo.
O Recorrente, na qualidade de ofendido, foi constituído Assistente no processo que correu trâmites na 3.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Luanda, cuja decisão final, absolveu os co-arguidos, Kushmar Ahmad e Miguel Francisco Ribeiro Mateus, da prática em co-autoria dos crimes de falsificação de documentos e abuso de confiança.
Inconformado com a decisão do Tribunal a quo em absolver os referidos arguidos, recorreu ao Tribunal Supremo que, em Acórdão prolactado na 1.ª Secção da Câmara Criminal daquela instância, manteve a decisão recorrida por não se vislumbrar prova suficiente para a responsabilidade criminal dos arguidos.
Deste Acórdão recorreu para esta Corte Constitucional onde, após notificação nos termos do artigo 45.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), o Recorrente apresentou as suas alegações, conforme consta a fls. 3928 a 3933 dos autos, no qual se resume o seguinte:
1. Entende não ter havido um julgamento justo, pois em causa estão os interesses da sociedade denominada Riusol, S.A. em que o mesmo é sócio e Administrador, afectado por via da falsificação da sua assinatura, numa altura em que se encontrava no exterior do país.

2. Conforme consta dos autos, o alegante encontrava-se na República Federativa do Brasil, (cfr. fls. 2026), pelo que, numa análise de espaço e tempo, nunca poderia estar num e outro lugar no mesmo dia e hora, facto este suficiente para concluir pela falsidade da sua assinatura.

3. Por outro lado, apesar de haver provas de delapidação do património da sociedade Riusol, SA, por parte dos arguidos, o certo é que nenhuma das instâncias se pronunciou sobre o sucedido. Vide fls. 2832 a 2838 e 615 a 677 dos autos (extractos bancários).

4. Dos autos, constata-se o silêncio sepulcral das instâncias que antecederam, ao decidirem como decidiram, passando à margem dos prejuízos indirectamente sofridos pelo Recorrente, refletidos durante os anos de 2014 a 2018, conforme descreve nas suas alegações.

Termina, pedindo que deve ser julgado procedente o presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, por inferir que o mesmo ofende o princípio do julgamento justo e conforme.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto nos termos e com fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional de “sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Tendo havido esgotamento da cadeia recursória da jurisdição comum, imposto pelo parágrafo único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei do processo constitucional (LPC), o Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente é Assistente no Processo n.º 6059/21 que correu termos na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, que não viu a sua pretensão atendida, dispondo, por essa razão, de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar se o Acórdão prolactado a 1 de Dezembro de 2022 pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, à margem do Processo n.º 6059/21, ofendeu princípios ou violou direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na CRA.

V. APRECIANDO
Retira-se dos autos em presença que, os coarguidos, Kushmar Ahmad e Miguel Francisco Ribeiro Mateus, foram absolvidos na 3.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Luanda, da acusação da prática dos crimes de falsificação de documentos e abuso de confiança, previstos e punidos pelas disposições combinadas da alínea a) do n.º 1 e n.º 4 do artigo 251.º, artigos 25.º, 404.º e alínea c) do artigo 392.º, todos do Código Penal então vigente.
Todavia, por inconformação com o decidido no aludido aresto do Tribunal a quo, dele recorreram para o Tribunal Supremo, tanto o Ministério Público como o aqui Recorrente na qualidade de Assistente, invocando ambos que a conduta dos co-arguidos era de todo subsumível aos crimes de que vinham acusados e pronunciados, requerendo a sua condenação pela referida prática delituosa.
O Tribunal Supremo, ao contrário do entendimento reflectido por ambos os Recorrentes nas respectivas alegações, decidiu no Acórdão prolactado que inexistiam elementos constitutivos dos tipos legais dos crimes em referência, necessários para a responsabilização penal dos arguidos.
Porém, uma vez mais, insatisfeita com o decido, a parte ofendida constituída Assistente nos autos, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, alegando a ofensa ao princípio do julgamento justo e conforme a lei.
Em concreto, argumenta o Recorrente não ter havido um julgamento justo e conforme, porquanto, na sua perspectiva se lograr demonstrado nos autos a falsificação da sua assinatura, numa altura em que se encontrava no exterior do país, o que levou à alteração da posição contratual da sociedade Riusol, SA, no negócio celebrado com os co-arguidos, Kushmar Ahmad e Miguel Francisco Ribeiro Mateus. E que, apesar de haver provas da delapidação do património da dita sociedade comercial, por parte dos co-arguidos, nenhuma das instâncias se pronunciou a respeito.
Aqui chegados cumpre decidir:
O pedido de declaração de inconstitucionalidade do aresto recorrido assenta sobre as conclusões que, por força do disposto no artigo 690.º do Código do Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo constitucional ex vi do artigo 2.º da Lei do Processo Constitucional, delimitam as questões a conhecer no presente recurso.
Associado ao sobredito, resulta do postulado no artigo 181.º da CRA, bem como do artigo 49.º da LPC, que não compete de todo a esta Corte reapreciar a prova produzida nos autos, como se de uma terceira instância de recurso comum se tratasse.
Como de resto se frisou, o Recorrente invoca a inconstitucionalidade do aresto sub judice, por pretensa ofensa a garantia constitucional do julgamento justo e conforme a lei.
Numa perspectiva dinâmica da consideração dos princípios constitucionais, a garantia em alusão, conexa ao primado da dignidade da pessoa humana, subjacente ao princípio estruturante do Estado Democrático e de Direito, encontra-se plasmada no artigo 72.º da CRA, onde se enfatiza que, “A todo cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei.”
Reitera-se, aqui, a jurisprudência desta corte constitucional quando aduz que a garantia do processo equitativo, consagrada na norma sobredita e no n.º 4 do artigo 29.º da CRA, tal como estabelecido no artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, corresponde ao entendimento segundo o qual o referido princípio “(…) tem como postulado o direito a ser julgado por um tribunal imparcial, independente e competente, a exigência de um Juiz natural; que o julgamento seja baseado na equidade e igualdade de armas, o direito de indicar testemunhas; o direito a interrogar ou fazer interrogar a testemunha indicada pela acusação; o direito a não autoincriminação; o direito a não ser punido com medida mais gravosa do que a prevista por lei à data da infracção; o direito a que as garantias processuais das partes sejam asseguradas durante todo processo; que seja dado o direito a assistência e patrocínio judiciário às partes para que estas possam exercer na plenitude o direito a ampla defesa; o direito a recurso e que a demanda tramite e seja decidida dentro dos parâmetros constitucionais e legais.” Vide Acórdão n.º 787/2022.
No mesmo sentido aponta-se o artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, compreendendo esta garantia, entre outras menções, que toda a pessoa tem o direito a que a sua causa seja apreciada, por um tribunal competente e imparcial, direito a ser julgado num prazo razoável, direito a presunção de Inocência até que a culpabilidade seja reconhecida.
Tal como aborda Mamadú Embaló, “o conceito de processo justo ou equitativo é dinâmico, em constante aprofundamento, atendendo às circunstâncias de tempo e lugar, mas sempre dominado pela ideia de que o processo penal deve assegurar aos suspeitos/acusados as mais amplas garantias de defesa em ordem à realização da justiça em cada caso”. Comentário da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e do Protocolo Adicional, Universidade Católica Editora, 2020, p. 505.
Portanto, atento aos considerandos acima expostos, não se vislumbra em que medida o Acórdão em crise tenha afectado a garantia constitucional do julgamento justo e conforme. Dito de modo diverso, é entendimento deste Tribunal que os fundamentos com que se vale o ora Recorrente, para invocar a pretensa ofensa do princípio em causa, não colhem, na medida em que revelam apenas a sua insatisfação quanto ao julgamento que recaiu sobre a matéria da causa, razão pela qual improcede a inconstitucionalidade arguída.
O Recorrente não invoca, tal como não demonstra, a afectacção negativa de qualquer dos direitos que integram a ampla categoria concernente ao julgamento justo e conforme a lei. Limita-se a argumentar que existiam provas nos autos suficientes para condenar os co-arguidos no processo, enquanto que não foi precisamente essa a convicção formada pelo julgador, com base na prova carreada no processo.
O princípio do julgamento justo e conforme, como garantia atinente ao processo penal, inculca na sua dimensão axiológica, os princípios da presunção de inocência, correlativo ao princípio do in dúbio pro reo e da legalidade penal, não permitindo, por conseguinte, que o julgador condene sem antes formar convicção sobre a culpa do arguido.
A garantia do julgamento justo e conforme, coopera com o princípio da livre apreciação da prova e da imediação em processo penal, na dimensão segundo a qual a valoração daquela é da competência exclusiva do julgador da causa, balizados pela exigência de fundamentação das decisões judiciais.
A decisão sobre censura, encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito, evidenciando as razões, pelas quais, não considerou subsumíveis as condutas dos co-arguidos nos autos, aos tipos legais de crimes de que foram acusados.
Nesta ordem de raciocínio, da análise jurídico-constitucional imposta ao aresto recorrido, não se vislumbra a inobservância do princípio invocado pelo ora Recorrente. Pelo contrário, observa-se o respeito pelos princípios da defesa do arguido em processo penal, com igual dignidade constitucional, ao se ter negado provimento ao recurso interposto no Tribunal ad quem, absolvendo-se os arguidos da acusação.
Destarte, entende esta Corte que o Acórdão recorrido não ofendeu os princípios constitucionais invocados, nem violou direitos fundamentais.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE.

Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, 15 de Novembro de 2023.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva (Relatora)
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi