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Jurisprudência

ACÓRDÃO N.º 861/2023

 

PROCESSO N.º 1020-B/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Quintino Silveira Lisboa, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho de Indeferimento de recurso proferido pela 13.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Belas, no âmbito do Processo n.º 01/22-C. Dessa decisão, interpôs Reclamação para o Tribunal da Relação de Luanda tendo a Juíza Desembargadora Presidente, prolactado aos 25 de Abril de 2022, no âmbito do Processo n.º 27/2022-TRL, a Decisão que julgou improcedente o pedido do Recorrente, com fundamento na falta de requisitos formais e materiais previstos na lei.
O Recorrente, inconformado com o Despacho sindicado interpôs dele o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade e arguiu, essencialmente, nas suas alegações que:

1. Foi condenado pela autoria do crime de ofensas corporais voluntárias do qual resultou doença ou impossibilidade para o trabalho previsto e punível nos termos do n.º 2 do artigo 360.º do Código Penal de 1886, vigente à data dos factos.

2. O Tribunal recorrido entende que a tramitação do procedimento do recurso deve reger-se nos termos do Código do Processo Penal Angolano vigente, mormente à luz do artigo 477.º, quando, em boa verdade, assiste-lhe o direito da aplicação da lei mais favorável, tal como dispõe a segunda parte do n.º 4 do artigo 65.º da Constituição da República de Angola e do n.º 2 do artigo 4.º do supracitado Código.

3. Dito de outro modo, por tratar-se de um direito fundamental, o legislador ordinário do CPP vigente à data dos factos entendeu dever-se considerar deserto o recurso quando no prazo cominado por lei para apresentação das alegações, o Recorrente não o fizer (…).

4. Face à Decisão prolactada pelo Tribunal recorrido, entende que mal andou o Juiz a quo, ao interpretar de forma isolada a norma do artigo 477.º do Código do Processo Penal Angolano, pois, ao proceder assim, fez-se uma apreciação judicativa baseada exclusivamente neste artigo.

5. Ademais, por não apreciar, primeiramente, as disposições dos artigos 65.º e 67.º, ambos da Constituição da República de Angola, conjugado com o artigo 4.º do Código do Processo Penal Angolano a Decisão sindicada é inconstitucional.

6. Por isso, aduz, é oportuno fazer vincar que a fundamentação de qualquer decisão judicativa deve ser coerente, objectiva, legal e conforme as normas e aos princípios constitucionais sob pena de ser considerada inexistente, como é o caso. O Tribunal recorrido não observou os critérios e os limites impostos pela Constituição, em homenagem ao princípio da legalidade para a produção da sua decisão.

7. Com efeito, o indeferimento do recurso interposto pelo Recorrente no Tribunal a quo e do qual se recorre, não está conforme a Constituição, pois violou o princípio da legalidade.

O Recorrente concluiu requerendo que o presente recurso tenha provimento e, em consequência, seja revogado o Despacho recorrido por estar em desconformidade com a CRA e a Lei.
O Processo foi à vista do Ministério Público que, no essencial, pronunciou-se nos seguintes termos:
(…) Admitido o recurso, deveria o Recorrente apresentar as alegações que faltaram deste no prazo que lhe foi determinado. Porém, o Recorrente optou por reclamar do despacho de admissão de recurso e o Juiz, embora tenha proferido despacho de indeferimento, mas tratou-se de despacho de deserção do recurso por falta de alegações.
Portanto, o despacho da Juíza Desembargadora, embora não seja apreciado pelo Tribunal Constitucional por não ter sido recorrido, não violou qualquer princípio ou direito previsto na CRA.
Nestes termos, o Ministério Público pugna pelo não conhecimento do recurso por falta de objecto.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso foi interposto nos termos e fundamentos previstos na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é reclamante do Processo n.º 27/22-TRL, que correu trâmites no Tribunal da Relação de Luanda, e não viu atendido o seu pedido. Por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar se a Decisão proferida aos de 25 de Abril de 2022, pela Juíza Desembargadora Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 27/22-TRL violou princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais.

V. APRECIANDO

a) Questão prévia

Na situação em tela e tal como resulta dos termos como sufraga a sua impugnação nos autos, o Recorrente arguiu que o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem como objecto o despacho de indeferimento do recurso proferido junto da 13.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Belas, no âmbito do Processo n.º 0161/2021-C e confirmada em sede de reclamação pelo Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 27/2022-TRL, ofendendo grosseiramente o direito fundamental constitucionalmente consagrado de interposição de recurso, previsto no n.º 6 do artigo 67.º da Constituição da República de Angola, conjugado com os artigos 295.º e 468.º do Código de Processo Penal e 688.º do Código de Processo Civil, este aplicado subsidiariamente, por força do n.º 2 do artigo 2.º do Código de Processo Penal.

Entretanto, por via do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, o Recorrente pretende ver sindicado pelo Tribunal Constitucional, o Despacho exarado pela 13.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Belas, muito embora junte aos presentes autos a Decisão proferida pela Juíza Desembargadora Presidente do Tribunal da Relação de Luanda (fls. 32 a 34), que julgou improcedente a sua reclamação, por falta de requisitos formais e materiais, com fundamento na inexistência de rejeição ou de retenção do recurso. Em boa verdade, do que se depreende dos autos, é desta Decisão prolactada pelo Tribunal da Relação de Luanda que o Recorrente deveria ter recorrido e não, propriamente, do Despacho do Juiz do Tribunal a quo, como erroneamente o fez.

Ora, ao delimitar como objecto do presente recurso o Despacho do Juiz do Tribunal de primeira instância, decorrente do Processo crime n.º 161/20-C, o Recorrente esvazia o âmbito de apreciação deste recurso pelo Tribunal Constitucional, na medida em que, o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, típico e próprio do processo constitucional, tem por objecto apreciar “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”, desde que observado o princípio do prévio esgotamento da cadeia recursória conforme estabelece o parágrafo único do artigo 49.º da LPC.

A esse propósito, é assaz esclarecedora a jurisprudência firmada no Tribunal Constitucional, exprimida nos acórdãos n.ºs 385/2016, 331/2014, 150/2011 e 144/2011, cujo entendimento vai no sentido de que: “o recurso extraordinário de inconstitucionalidade só pode ser interposto após prévio esgotamento nos tribunais comuns e demais tribunais, dos recursos ordinários legalmente previstos”.

Acontece, porém, que em sede do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, não importa, apenas, que esteja cumprida a cadeia recursória (o que não foi observado), mas também que as alegações recaiam sobre o objecto do presente recurso, o que também não aconteceu. Ou seja, as alegações deduzidas pelo Recorrente incidem e atacam somente o Despacho exarado pelo juiz do Tribunal a quo requerendo a sua revogação.

Aqui chegados, este Tribunal considera que o objecto delimitado pelo Recorrente está excluído da previsão normativa do artigo 49.º da LPC. Entretanto, tendo em conta o Despacho da Juíza Desembargadora Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, de fls. 32 a 34 dos autos e, em obediência ao princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, o Tribunal Constitucional procede à apreciação do presente recurso.

b) Da Constitucionalidade da Decisão da Juíza Desembargadora Presidente do Tribunal da Relação de Luanda

No âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade dos actos e decisões judiciais, o Tribunal Constitucional, além de ajuizar da sua legalidade, tem ainda uma missão típica e qualificada que é sindicar a constitucionalidade, confrontando os seus fundamentos de razão e os conteúdos hermenêuticos com os princípios, os valores e as normas da Constituição.

No caso em apreço, revelam os autos que o Recorrente, irresignado com o Acórdão prolactado pela 13.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Belas (fls. 5 a 10), interpôs um requerimento de recurso sem aludir a sua fundamentação ou motivação. Em função disso, o juiz da causa exarou Despacho (fls. 12 e 13), notificando o Recorrente para apresentá-las no prazo de cinco dias, sob pena de ser liminarmente indeferido o seu requerimento caso o mesmo não procedesse ao seu aperfeiçoamento.

Entretanto, decorrido o prazo concedido no referido Despacho, o Recorrente não apresentou a fundamentação requerida mantendo a sua posição inicial, ou seja, optou por prescindir do seu cumprimento.

Sucede que a postura adoptada pelo Recorrente abalou o princípio da cooperação processual (artigos 265.º e 519.º do CPC), que deve imperar na relação entre magistrados, mandatários judiciais e as partes a quem incumbe o dever de cooperar entre si para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio e a materialização da justiça. Com efeito, ao mesmo tempo que é requerido ao julgador este dever, quer seja na clareza e rigor que deve observar-se na elaboração dos despachos judiciais, passando pela exigência de informação e esclarecimento devidos, impõe-se, igualmente, às partes no processo semelhante atitude.

Ainda nesta senda, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego refere que: “a cooperação do tribunal com as partes, tal como aparece especialmente regulado no Código, vai traduzir-se essencialmente no convite ao aperfeiçoamento dos articulados que comportem alegações de facto ambígua, incompleta ou insuficientemente concretizada ou densificada, bem como na ultrapassagem – se necessário por iniciativa do juiz – de obstáculo de natureza formal ou procedimental à realização da verdadeira função substancial do processo” (Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., 2004, pág. 265).

Em virtude do comportamento assumido pelo Recorrente, em não cooperar com o tribunal, o Juiz da causa exarou o Despacho que abaixo se transcreve:

O CPP é de aplicação imediata, mantendo os actos praticados no domínio da lei anterior a sua inteira validade nos termos do artigo 4.º n.º 1 do CPP.

O prazo de interposição de recurso é de 20 dias, ao contrário dos 5 dias estabelecidos no regime do revogado código de 1929. O requerimento apresentado seria extemporâneo pelo facto dos cinco (5) dias para interposição terem-se esgotado, visto que a decisão (acórdão) foi proferida no dia 27 de Outubro de 2020, vide fls. 168 e o requerimento apresentado no dia 03 de Novembro de 2020, vide fls. 182, sete (7) dias depois.

Decorrido o referido prazo não apresentou qualquer aperfeiçoamento, mantendo a sua posição inicial, vide fls. 186 a 188.

Nestes termos e acolhendo a douta promoção do MP, indefiro o recurso apresentado por falta de fundamentação, nos termos da combinação dos arts. 475.º n.º 5, 477.º e 479.º n.º 5, todos do CPPA.

Por seu turno, na sequência da reclamação apresentada pelo Recorrente, a Decisão do Tribunal da Relação de Luanda foi julgar improcedente o pedido por falta dos requisitos formais e materiais previstos na lei, na medida em que não houve rejeição nem retenção do recurso. Em consequência disso, manteve procedente o Despacho reclamado prolactado pelo Tribunal a quo.

Ademais, terá o Tribunal da Relação de Luanda agido em conformidade com a CRA?

Desde logo, o Código de Processo Civil estabelece no seu artigo 688.º que o fundamento da reclamação para o Presidente do Tribunal ad quem é a não admissão do recurso ou a sua retenção. Entretanto, vistos os autos constata-se que o recurso interposto pelo Recorrente no Tribunal a quo foi admitido, porém indeferido por falta de apresentação das respectivas alegações. Assim, com vista à satisfação da sua pretensão, do Despacho do juiz a quo cabia ao Recorrente interpor recurso ordinário para o Tribunal recorrido, sendo, por isso, incongruente o viés processual que adoptou ao enveredar pela reclamação.

Vale destacar que o recurso é definido como um instrumento processual para requerer, na mesma instância ou em instância superior, o reexame ou a reapreciação de uma decisão, visando a obtenção da sua reforma ou modificação.

Nesta senda, o Recorrente, por via da efectivação do direito ao recurso, poderia abalar o Despacho exarado pelo juiz da causa e continuar a exercer a sua intervenção processual na lide.

Acresce que, na seara penal, o direito de defesa do arguido pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição. Mas, para esse efeito, é necessário que se exerça o direito ao recurso que no presente caso o Recorrente não observou, apresentando um mecanismo (reclamação) que a lei não contempla em tais situações, mormente devido a inexistência dos requisitos plasmados no artigo 688.º do CPC. Com efeito, mesmo depois do Juiz da causa lhe conceder a oportunidade de efectivação do exercício pleno dos seus direitos, incompreensivelmente, preferiu esgotar o prazo estipulado para, a posteriori, interpor reclamação no Tribunal da Relação de Luanda.

Pelas razões supra expendidas, é perceptível de que, quer o Despacho do Juiz a quo quer a Decisão da Juíza Desembargadora Presidente do Tribunal da Relação de Luanda não ofenderam princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na CRA.

Face ao exposto, o Tribunal Constitucional conclui não existir violação à Constituição ou à lei, mormente o direito ao duplo grau de jurisdição e o direito ao recurso, previstos no n.º 1 do artigo 67.º da CRA.

DECIDINDO

Nestes termos,

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR NÃO TER SIDO VIOLADO OS DIREITOS AO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E O DIREITO AO RECURSO.

Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Tribunal Constitucional, em Luanda, 16 de Novembro de 2023.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi