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ACÓRDÃO N.º 863/2023

 

PROCESSO N.º 1044-D/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I. RELATÓRIO

Adão Domingos Baptista, com os demais sinais de identificação nos autos, veio junto do Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 3219/19.

O Recorrente foi acusado, pronunciado e condenado em primeira instância na pena de 10 anos de prisão maior, pelo crime de violação, previsto e punível (p.p.) pelo artigo 393.º, agravado nos termos do n.º 3 do artigo 398.º do Código Penal (CP), em vigor à data.

Insatisfeito com a decisão, o Recorrente interpôs recurso, nos termos dos artigos 655.º e 659.º do Código de Processo Penal (CPP).

O Ministério Público, por imperativo legal, também interpôs recurso da decisão, nos termos do § único do artigo 473.º e do n.º 2 do parágrafo 1.º do artigo 647.º, ambos do CPP.

Em sede de apreciação do recurso, o Tribunal Supremo confirmou a pena de 10 anos de prisão maior, aplicada pelo Tribunal a quo, porém, alterou o tipo legal, e consequentemente, condenou o Recorrente pelo crime de abuso sexual de pessoa inconsciente, p. p. no n.º 2 do artigo 184.º do CPA.
Inconformado com a decisão do Tribunal ad quem, interpôs o presente recurso, fundamentando, em síntese, o seguinte:

1. O Tribunal ad quem violou ostensivamente o princípio da legalidade, por deixar de (…) apreciar e julgar correctamente o processo, dentro dos parâmetros constitucionalmente consagrados, nos termos do artigo 175.º da CRA.

2. O Tribunal ad quem, violou o princípio da verdade material que impunha ao tribunal, o dever de ordenar a realização das diligências ou exame pericial necessário para o apuramento da verdade material objectiva.

3. O Tribunal ad quem violou o princípio do dispositivo, por ter actuado e julgado os factos além dos limites fixados na acusação e pronúncia (…).

4. O Tribunal ad quem violou o princípio in dubio pro reu, que impunha ao tribunal absolver o réu em função da sua inocência, abundantemente provada nos autos.

5. O Acórdão recorrido violou o princípio do julgamento justo, equitativo e conforme, por ter proferido uma decisão condenatória por factos não praticados e muito menos provados, quer em instrução preparatória, quer em tribunal.

O Recorrente terminou as alegações requerendo que se declare inconstitucional o Acórdão recorrido.

O processo foi à vista do Ministério Publico.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos e fundamentos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é parte no processo que correu trâmites na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo e, assim sendo, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, que dispõe: “têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO

O objecto do presente recurso é aferir a constitucionalidade da decisão prolactada pela 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 3219/19, que confirmou a pena de 10 anos de prisão maior aplicada pelo Tribunal a quo, porém alterou o tipo legal, crime de violação, p.p. pelo artigo 393.º, agravado nos termos do n.º 3 do artigo 398.º do Código Penal (CP) vigente à data dos factos, para o crime de abuso sexual de pessoa inconsciente, p. p. no n.º 2 do artigo 184.º do Código Penal Angolano (CPA).

V. APRECIANDO

O Recorrente foi acusado, pronunciado e condenado, em primeira instância, a 10 anos de prisão maior, pelo crime de violação (fls.113).

Inconformado com a decisão, interpôs recurso para o Tribunal Supremo que, em sede de apreciação, confirmou a pena de 10 anos de prisão maior aplicada pelo Tribunal a quo, mas alterou o tipo legal para o crime de abuso sexual de pessoa inconsciente, p. p. no n.º 2 do artigo 184.º do CPA, em detrimento do crime de violação p.p. pelo artigo 393.º, agravado nos termos do n.º 3 do artigo 398.º do CP, em vigor à data.

Discordando da decisão, interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade sustentando que o Acórdão recorrido violou os princípios da legalidade, imparcialidade, verdade material, julgamento justo e conforme, na medida em que o Tribunal ad quem tinha o dever de ordenar a realização das diligências ou exame pericial necessário para o apuramento da verdade material objectiva e do in dubio pro reo , que impunha ao tribunal absolver o réu em função da sua inocência, abundantemente provada nos autos.

Sobre a violação dos princípios da legalidade, da imparcialidade, do in dubio pro reo, da verdade material, do dispositivo e do direito a julgamento justo e conforme

O princípio da legalidade, consagrado no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, dispõe que “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis”.

Este princípio limita e orienta a actuação de todos os órgãos do Estado e, de igual modo, serve de base de protecção dos cidadãos contra qualquer arbítrio dos órgãos públicos.

O princípio da legalidade, nas vestes de legalidade processual penal, impõe ao julgador uma actuação pautada no direito processual estabelecido nos termos da Constituição, sendo, por isso, vedada qualquer acção ou omissão não prevista na lei.
O Recorrente sustenta que o Acórdão recorrido violou os princípios e direitos em epígrafe por entender que “o tribunal ad quem ao valorar e dar primazia às declarações prestadas pela ofendida, demarcou-se do seu dever de apreciar, confrontar (…) as notáveis imprecisões e contradições (…) produzidas na instrução e no judicial (…)”.

Atentos às alegações, depreende-se que o Recorrente invoca a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, por discordar dos meios de prova admitidos pelos Tribunais a quo e ad quem, que deram lugar à sua condenação.

No entender do Recorrente, os Tribunais a quo e ad quem deveriam considerar o exame ginecológico como o principal meio de prova e não as declarações da ofendida e dos declarantes no processo, como sucedeu no caso sub judice.

Assiste razão ao Recorrente?

Vejamos;

O processo penal tem como princípio fundamental a livre apreciação da prova. O princípio em causa enuncia que o juiz é livre de apreciar a prova, dando ou não dando os factos como provados, de acordo com a sua livre convicção, havendo apenas o imperativo de que a formação da sua percepção, seja formada a partir da prova produzida no processo.

Importa, ainda, referir que o sistema processual penal angolano norteia-se pelos princípios da liberdade dos meios de prova. Assim sendo, os meios de provas não são taxativos, pelo que o Tribunal pode admitir quaisquer meios de prova permitidos por lei, nos termos dos artigos 145.º e 146.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA).

No caso em apreço, o Tribunal ad quem, considerou como elemento de prova bastante, as declarações prestadas pela ofendida e pelos declarantes e não o exame médico (fls. 34 e 34v), como o Recorrente pretendia.

Atentos ao princípio supra aludido, nada obstava a que os Tribunais a quo e ad quem formassem a sua convicção com base nas declarações prestadas, tanto pela ofendida como pelos declarantes, visto que é da competência do julgador valorar as provas produzidas no processo e decidir com base na livre apreciação e experiência de vida comum, conforme estabelece o 147.º do CPPA.

Como sustenta Grandão Ramos “(…) o juiz na apreciação (valoração) da prova produzida não está sujeito a regras predeterminadas. Aprecia a prova e forma a sua convicção livremente, de harmonia com as circunstâncias concretas do caso” (Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, p. 79).

De referir que o Tribunal Constitucional não é uma terceira instância da jurisdição comum, deste modo, não lhe compete emitir juízos de valor com relação às provas admitidas ou não pelos tribunais comuns ou, ainda, se debruçar sobre questões de mérito tratadas no processo principal.

Ao Tribunal Constitucional compete somente apreciar questões jurídico-constitucionais, conforme dispõe o artigo 181.º da Constituição da República de Angola (CRA).

Como refere Carlos Blanco de Morais “o Tribunal Constitucional (…) deve abster-se de julgar, ou mesmo de se pronunciar sobre o mérito da questão de fundo que está a ser julgada no processo principal, já que lhe cumpre, apenas, administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (…). Não opera deste modo, como uma instância suprema de mérito, ou um tribunal de super-revisão investido em poderes substitutivos, já que lhe não compete apreciar a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado no processo principal” (Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do Contencioso Constitucional, 2ª Edição, Coimbra Editora, p. 619).

Ainda em sede de alegações, o Recorrente sustenta que o Aresto recorrido violou o princípio do dispositivo, na medida em que teria o Tribunal ad quem actuado e julgado os factos além dos limites fixados na acusação e pronúncia.

Ora, o princípio do dispositivo, enquanto princípio de direito, previsto nos artigos 3.º e 264.º, ambos do CPC, alude que a iniciativa e o impulso processual incumbe às partes.

O mesmo princípio comporta, porém, uma excepção no n.º 3 do artigo 264.º ao dispor que “o Juiz tem o poder de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”

Compulsados os autos, verifica-se que o Tribunal ad quem, não actuou no âmbito do princípio do dispositivo ao enquadrar o crime como sendo de abuso sexual de pessoa inconsciente, mas sim no âmbito da aplicação da lei mais favorável ao arguido, nos termos do n.º 4 do artigo 65.º da CRA.

Face ao exposto, o Tribunal Constitucional não acolhe os fundamentos do Recorrente que sustentam que o Acórdão recorrido violou o princípio da legalidade, imparcialidade, verdade material, do in dubio pro reo, do dispositivo e o direito a julgamento justo e conforme, por ter determinado como prova bastante as declarações e não o exame pericial.


Nestes termos,


DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR NÃO TEREM SIDO VIOLADOS QUAISQUER PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 05 de Dezembro de 2023.

OS JUIZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi