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ACÓRDÃO N.º 865/2023

 

PROCESSO N.º 995-A/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

AIA – ASSOCIAÇÃO INDUSTRIAL ANGOLANA e EXPO-ANGOLA – SOCIEDADE COMERCIAL DE EXPOSIÇÕES, S.A., melhor identificadas nos presentes autos, vieram interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, no âmbito do Recurso Jurisdicional n.º 158/16, que julgou improcedente o recurso e, em consequência, declarou válido o Acórdão recorrido.
As Recorrentes apresentam, em síntese, as seguintes alegações:
1. O douto Acórdão prolactado sobre o Recurso Contencioso de Impugnação (r.c.i.), pecou triplamente – (1) por tomar como acto discricionário um acto vinculado (sujeito a lei), (2) por tomar um convite à alteração da Petição Inicial como uma ordem peremptória e (3) por tomar como incorrecção de peça processual toda e qualquer inconformação da parte quanto ao entendimento do juiz.

2. O despacho do Juiz Conselheiro Relator, de 10 de Setembro de 2008, ordenou, sob a denominação de “correcção”, a “mutilação” da Petição Inicial do recurso contencioso, quanto ao pedido de declaração de inconstitucionalidade material, citando como cobertura, com total descabimento, a doutrina do Prof. Diogo Freitas do Amaral.

3. O entendimento “mutilador” do Venerando Juiz Relator do r.c.i. peca por defeito que totalmente o inutiliza. Este defeito está na “falta de fundamentação”, pois se agarra ao facto de a petição do r.c.i. conter um pedido de declaração de inconstitucionalidade.

4. O Juiz Conselheiro Relator do recurso jurisdicional, secundado pelos demais Juízes Conselheiros do Plenário, ao convidar a parte para corrigir a petição do recurso contencioso, está a exercer poder discricionário. Ora, o poder de decisão do juiz é, em princípio, vinculado – só excepcionalmente será discricionário (muito menos, arbitrário).

5. “A omissão da fundamentação acarreta a nulidade do despacho, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 158.º, 659.º, 668.º, n.º 1, al. b), e 660.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil” – (sic - transcrição da súmula do Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal, de 14.03.1974 aplicável directamente como jurisprudência a Angola por ser anterior à Independência desta (feita na nota 3. ao art. 158.º do CPC anotado de Abílio Neto, 11.ª edição, de Março de 1993, a pág. 159).

6. O princípio da fundamentação das decisões dúbias ou controversas é pacificamente visto como um corolário da tutela jurisdicional efectiva consagrada no n.º 1 do art.º 29.º da CRA.

7. As Recorrentes não negligenciaram a condução do processo – o que fizeram foi insurgir-se contra uma “ordem de mutilação” da petição do r.c.i., que atentava contra o princípio da necessidade de decisão pelos tribunais quanto às questões que envolvem direitos ou interesses legalmente protegidos, a começar pelo princípio do acesso ao Direito (vertente primeira da supradita tutela jurisdicional efectiva, da CRA).

8. Tratava-se duma inconstitucionalidade, multifacetada, que, entre o mais, envolve atentado contra o princípio da segurança jurídica dos utentes da Justiça – no caso, despacho dum Primeiro Ministro que desfez um Despacho de outro Primeiro Ministro, com atropelo de decisões definitivas (equivalentes a caso julgado) em relação à Associação angolana com maior massa associativa.

9. No caso dos autos, um Primeiro Ministro (o ora Recorrido) desfez o que um anterior Primeiro Ministro tinha feito ao aprovar os novos Estatutos da AIA em plena “Angolostroika”, período intercedente entre as Leis de Revisão Constitucional de 1991 e de 1992, que formalizaram a extinção do regime marxista-leninista e a criação do Estado de Direito Democrático.

10. O Acórdão recorrido violou a garantia da tutela jurisdicional efectiva (art.º 29.º da CRA) e o princípio-corolário de indisponibilidade do julgamento justo e conforme (art.º 72.º da CRA), o princípio da igualdade, no caso entre uma Associação de industriais e um órgão de cúpula do Estado (art.º 23.º da CRA) e o princípio da separação de poderes entre os órgãos de soberania (art.º 103.º, n.º 3, da CRA.).

11. O douto despacho do Juiz Conselheiro Relator que indeferiu a petição do r.c.i. supracotado sob invocação de irregularidades, secundado até ao Plenário do Tribunal Supremo, assentou no princípio de que só o Tribunal Constitucional pode julgar inconstitucionalidades.

12. Pelo contrário, qualquer tribunal angolano tem competência material para julgar inconstitucionalidades, tal como resulta, desde logo, da al. m) do art. 16.º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional – Lei n.º 2/08, de 17 de Junho (esgotamento dos meios ordinários), art.º 49.º, al. a), da Lei do Processo Constitucional (Lei n.º 3/08, de 17 de Junho) (sentença de tribunais estranhos ao Tribunal Constitucional que tenham julgado inconstitucionalidades).

13. Por não ter havido qualquer irregularidade na petição do r.c.i., deveria o Juiz Conselheiro Relator, ter-se abstido de convidar a Recorrente a “aperfeiçoar” a petição de recurso mediante a exclusão mutiladora da matéria de inconstitucionalidade material.

14. Ao fazê-lo, o Juiz Conselheiro Relator extralimitou o âmbito do art. 477.º, n.º 1, do CPC, uma vez que a petição de recurso não apresentava irregularidade alguma que comprometesse o êxito do recurso contencioso.

15. O douto Acórdão do Plenário do Tribunal Supremo, ora Recorrido, por não atender a Reclamação para a conferência, confirmando o Despacho de indeferimento liminar do Juiz Conselheiro Relator, situa-se, como se viu, na mesma linha de inconstitucionalidade.
As Recorrentes terminam pedindo ao Tribunal Constitucional para julgar procedente o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Acórdão do Plenário do Tribunal Supremo e que, por via disso, seja declarado nulo o confisco decretado pelo Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro de 2007, proferido pelo ex-Primeiro Ministro, Fernando da Piedade Dias dos Santos, que determina que a gerência das instalações da FILDA e todo o seu património sejam feitos pela FIL — Feira Internacional de Luanda, S.A., por força dos artigos 25.º e 26.º da sobrevinda Lei n.º 13/22, de 25 de Maio, Lei da Apropriação Pública, bem como seja, também, declarado nulo o aludido Despacho confiscatório, com base em inconstitucionalidades materiais e formais.
As Recorrentes pedem, consequentemente, que o Tribunal Constitucional considere terem sido violados os princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da igualdade, do direito a julgamento justo e conforme e da separação de poderes entre os órgãos de soberania, bem como os direitos à propriedade privada e à liberdade de associação empresarial, consagrados, respectivamente, nos artigos 29.º, 23.º, 72.º, 105.º, 14.º, 37.º, 89.º, n.º 1 da alínea d), 48.º nº 1 e 49.º n.º 1, todos da CRA, bem como no artigo 47.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC).
O processo foi à vista do Ministério Público, que promoveu, em síntese, o seguinte:
“(...) Ora, atento ao requerimento de recurso contencioso de impugnação, o autor pede ao Tribunal a quo declaração de nulidade ou de anulação do Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, mas sustenta o pedido ao abrigo do artigo 32.º n.º 1, da Lei Constitucional (Revista pela Lei de Revisão n.º 23/92, de 16 de Setembro), sem indicar as normas do direito ordinário que tutelam o pedido (Ler lei de).
A matéria relativa aos recursos contenciosos de impugnação de actos administrativos vem regulado em diplomas legais próprios e específicos, nomeadamente, a Lei n.º 2/94, de 14 de Janeiro – Lei de Impugnação dos Actos Administrativos e o Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril – aprova o Regulamento do Contencioso Administrativo e subsidiariamente são aplicáveis as disposições relativas ao funcionamento da administração pública e as normas do processo civil em tudo que não estiver previsto nestes diplomas.
O Juiz ordinário toma decisões com recurso as normas específicas que regulam o caso concreto submetido à sua apreciação.
A iniciativa processual, no caso, cabe ao autor titular do direito violado, que requer ao Tribunal a tutela jurisdicional adequada à reparação do seu direito. Ao Juiz não cabe escolher o direito ou a norma aplicável ao caso submetido à sua apreciação, sob pena de substituir-se ao autor da acção e comprometer a posição de imparcialidade que deve sempre caracterizar o julgador.
In casu, as Recorrentes, apesar de terem sido convidadas por mais de uma vez para clarificar o direito aplicável ao pedido, preferiram manter inalterável a petição inicial.
Face ao posicionamento irredutível das Recorrentes, o Tribunal de Recurso ordenou o arquivamento do processo, nos termos do artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril.
Nestes termos, o Ministério Público não vislumbra a alegada violação de princípios e direitos consagrados na CRA, pelo que, pugna pelo não provimento do recurso”.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho — Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49. º da LPC.

III. LEGITIMIDADE
As Recorrentes são parte no Processo n.º 199/2008¬¬¬, que correu os seus termos na 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que têm legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “(…) podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem como objecto apreciar se o Acórdão prolactado pelo Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 158/16, ao julgar improcedente o recurso e, em consequência, declarar válido o Acórdão recorrido, ofendeu ou não princípios e direitos constitucionalmente consagrados.

V. APRECIANDO
Questão Prévia
As Recorrentes interpuseram recurso contencioso de anulação do acto administrativo praticado pelo então Primeiro Ministro, Fernando da Piedade Dias dos Santos, através do qual, por via do Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, se determina que as instalações da Filda e todo o seu património, direitos, obrigações, activos e passivos passam a ser geridos pela empresa Fil - Feira Internacional de Luanda, S.A., mediante contrato de cessão de posições contratuais, a ser celebrado com o Ministério da Indústria, representante do Estado angolano.
O Juiz Conselheiro Relator do processo, na 3.ª Secção da Câmara do Cível e Administrativo, por despacho liminar, convidou as Recorrentes a procederem ao aperfeiçoamento do seu Requerimento Inicial, por entender que, tendo as mesmas requerido a anulação do acto administrativo com fundamento na sua inconstitucionalidade material, tal questão é da competência do Tribunal Constitucional (fls. 56 verso e 57).
Contrariamente ao que lhes foi convidado a fazer, as aqui Recorrentes reclamaram para a Conferência da 3.ª Secção da Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal do Supremo, alegando que, nenhuma questão pode ser submetida ao Tribunal Constitucional, se não tiver sido submetida, anteriormente, a outro Tribunal, salvo quando seja questão sobrevinda. A reclamação foi indeferida (fls. 67-79).
Por esta razão, e porque também as ora Recorrentes não apresentaram o requerimento aperfeiçoado, o Juiz Conselheiro Relator, a fls. 79 verso, decidiu indeferir liminarmente o Requerimento Inicial. Desta feita, as Recorrentes reclamaram, tendo os Juízes Conselheiros da 3.ª Secção da Câmara do Cível Administrativo, Fiscal e Aduaneiro indeferido tal reclamação (fls. 89-93).
Insatisfeitas, as Recorrentes interpuseram recurso para o Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo (fls. 105-179) que, por sua vez, veio a julgar improcedente o recurso e, em consequência, declarar válido o Acórdão recorrido (fls. 202-209).
Assim, as Recorrentes interpuseram o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade em que, com uma densa fundamentação de facto e de direito, inclusive com algumas matérias repetitivas e impróprias para apreciação no presente recurso, pedem que seja julgado procedente o recurso interposto sobre o Acórdão recorrido que julgou improcedente o recurso e, em consequência, declarou válido o Acórdão recorrido, que seja declarado nulo o confisco decretado pelo Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, do Primeiro Ministro, por força dos artigos 25.º e 26.º da sobrevinda Lei n.º 13/22, de 25 de Maio, Lei da Apropriação Pública, bem como pedem, também, a consideração de inconstitucionalidades materiais e formais.
Todavia, face à fundamentação supra referida, esgrimida pelas Recorrentes em sede das suas alegações, e porque as competências do Tribunal Constitucional se circunscrevem, ex vi dos n.ºs 1 e 2 do artigo 181.º da Constituição da República de Angola (CRA), em geral, em administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional, não compete a esta Corte apreciar matérias próprias e da competência de outros tribunais, como é o caso do recurso do acto administrativo praticado pelo então Primeiro Ministro, Fernando da Piedade Dias dos Santos, através do Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, que determina que a gerência das instalações da FILDA e todo o seu património sejam feitos pela FIL — Feira Internacional de Luanda, S.A..
Esta Corte não é uma instância suprema de mérito, ou um Tribunal de super-revisão, não lhe compete aferir a justeza da decisão jurídica segundo o direito ordinário aplicado ao processo.
Assim, o Tribunal Constitucional irá apenas apreciar e decidir se o Acórdão em crise ao julgar improcedente o recurso e, em consequência, declarar válido o Acórdão recorrido, enferma de inconstitucionalidade, nomeadamente, se ofende ou não o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, o direito a julgamento justo e conforme, bem como o dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrados, respectivamente, nos artigos 29.º, 72.º e 2.º, todos da CRA. O dever de fundamentação vem consagrado igualmente, em legislação infraconstitucional, no artigo 158.º do Código de Processo Civil (CPC) e nos artigos 11.º e 17.º da Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto – Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum.
Então vejamos:

a) Sobre o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva
As Recorrentes alegam que o Acórdão recorrido violou o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, por julgar improcedente o recurso, e em consequência declarar válido o Acórdão proferido pela 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que indeferiu a sua Reclamação sobre o indeferimento liminar do Requerimento Inicial.
Alegam, ainda, as Recorrentes que o acórdão ora impugnado pecou triplamente, por tomar como acto discricionário um acto vinculado do juiz (sujeito a lei); por tomar um convite à alteração da petição inicial como ordem peremptória e por tomar como incorrecção de peça processual toda e qualquer inconformação da parte quanto ao entendimento do juiz.
O princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, aqui alegado pelas Recorrentes como violado, consubstancia-se nos meios jurisdicionais de que os particulares dispõem de modo a garantir a efectividade do seu direito e reagir contra as suas violações, através da actividade realizada pelo poder judiciário. Para o efeito, pressupõe o cumprimento de requisitos processuais, materialmente adequados à Constituição, para a acção a que se pretende.
É de realçar que o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva vem consagrado no n.º 1 do artigo 29.º da CRA nos seguintes termos: “A todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”.
Este princípio constitucional tem, também, consagração em instrumentos jurídicos internacionais, conforme preceituado no artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como no artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Mas, para o poder judiciário dizer o direito é necessário um impulso processual, isto é, alguém, precisa de solicitar a tutela jurisdicional, mediante acções ou recurso adequado interposto para que o poder judicial tome providências para suprir, de forma eficaz, a violação ou a ameaça de violação do seu direito fundamental. Ou seja, a instância inicia com um requerimento inicial em que o requerente exporá os fundamentos e o objecto da sua pretensão.
É em função do princípio da inércia da jurisdição, que o n.º 1 do artigo 3.º do CPC, aplicável subsidiariamente ex vi do artigo 2.º da LPC, dispõe que: “O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”.
Porém, no recurso contencioso de impugnação de acto da administração do Estado, nos termos do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo, o pedido formulado no requerimento inicial pode abranger a invalidade do acto, podendo a sua anulação ser total ou parcial.
Concluso o processo ao Juiz para exame preliminar, este é obrigado, nos termos do n.º 1 do artigo 166.º do CPC, a pronunciar-se, mediante despacho, que pode constituir, nomeadamente, em: (i) indeferir liminarmente o requerimento inicial, em “definitivo”, (ii) convidar o autor a aperfeiçoar o requerimento inicial, ou seja, completá-lo ou corrigi-lo; (iii) mandar arquivar o processo; ou (iv) ordenar a citação do requerido, porque, isto equivale ao deferimento liminar.
Consta dos autos (fls. 56 verso), que o Juiz Conselheiro Relator optou pela segunda atitude, ou seja, convidou as aqui Recorrentes a aperfeiçoarem o seu Requerimento Inicial por entender que, para além de terem requerido a nulidade do confisco estabelecido pelo Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, invocaram, também, a inconstitucionalidade material do referido Despacho, questão esta que referiu ser da competência do Tribunal Constitucional.
Aliás, nos termos da conjugação dos artigos 474.º e 477.º, ambos do CPC, o juiz pode convidar o autor a completar ou corrigir o requerimento inicial quando não haja motivo para o indeferimento liminar “definitivo”. Portanto, este Despacho de aperfeiçoamento configura-se como proferido no exercício de um poder discricionário (artigos 17.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo, bem como o artigo 477.º e o n.º 3 do artigo 700.º, ambos do CPC).
De acordo com Antunes Varela, José Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, na interpretação do artigo 477.º do CPC, sobre o convite para aperfeiçoamento, “(…) Só em três tipos de situações a integração ou correcção da petição (irregular ou deficiente) é legalmente admitida: a) quando a petição não possa ser recebida por falta de requisitos legais (quer estes requisitos devessem, quer não, ter sido detectados pela secretaria); b) quando a acção não possa prosseguir pelo facto de a petição não vir acompanhada de certos documentos; c) quando a petição contenha irregularidades ou deficiências susceptíveis de comprometer o êxito da acção (artigo 477.º)” (Manual de Processo Civil, de Acordo com o Dec.-Lei 242/85, 2.ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, p. 262).
Logo, quando o juiz convida para o aperfeiçoamento do requerimento inicial a que se refere o n.º 1 do artigo 477.º do CPC, é porque, em princípio, não está diante de nenhuma das situações que possa dar lugar ao indeferimento liminar “definitivo” (cfr. artigo 474.º do CPC).
Assim, e foi o que aconteceu, o Juiz Conselheiro Relator convidou as ora Recorrentes a corrigirem o Requerimento Inicial, no âmbito do seu poder discricionário e na pressuposição da existência de irregularidade do Requerimento Inicial, pois, consta do seu Despacho a fls. 57 verso e 58 dos autos que “Da leitura dos presentes autos deduz-se muito facilmente que o objecto do presente recurso é a anulação do Despacho n.º 2/07, do Primeiro Ministro Dr. Fernando Dias dos Santos. Ao formular o pedido, a demandante também invoca a inconstitucionalidade material do referido despacho. Entendo que a inconstitucionalidade material deve ser invocada em sede própria, i. é, no Tribunal Constitucional e não neste. Assim, ordeno a notificação do demandante para dentro do prazo de 10 dias proceder à correcção da petição inicial, nos termos do artigo 11.º da Lei n.º 2/94, de 14 de Janeiro (…).”
Diante do Despacho que convida para o aperfeiçoamento do Requerimento Inicial, as aqui Recorrentes, inconformadas e sem a intenção de cumprir tal desiderato, optaram por:
i) reclamar para a conferência da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal do Supremo (fls. 60-62), que veio a indeferir tal reclamação (fls. 68 e 69);
ii) manter, por declaração expressa, a petição de recurso tal como apresentada inicialmente, sem correcção ou alteração (fls. 74-75), facto que levou o Juiz Relator a indeferir liminarmente o Requerimento Inicial (fls. 79 verso);
iii) reclamar sobre o referido despacho de indeferimento, nos termos do n.º 1 do artigo 79.º do Regulamento do Processo Contencioso Administrativo, tendo os Juízes Conselheiros da 3.ª Secção da Câmara do Cível Administrativo, Fiscal e Aduaneiro indeferido a referida reclamação (fls. 93);
iv) interpor recurso para o Plenário do Tribunal Supremo, que, por sua vez, veio a julgar improcedente o recurso e, em consequência, declarar válido o Acórdão recorrido (fls. 105, 202-209);
v) finalmente, interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Foi assim que as Recorrentes vieram a esta Corte Constitucional pedir, no presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, que seja julgado procedente este mesmo recurso e que seja declarado nulo o confisco estabelecido pelo Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, proferido pelo Primeiro Ministro, por força dos artigos 25.º e 26.º, ambos da Lei n.º 13/22, de 25 de Maio, Lei da Apropriação Pública, bem como, que seja declarado nulo o aludido Despacho, por verificação de inconstitucionalidades materiais e formais.
Cabe razão às Recorrentes?
Vejamos.
Foi, em razão da inconstitucionalidade material invocada que o Juiz Conselheiro Relator convidou as Recorrentes a aperfeiçoarem o Requerimento Inicial.
Porém, as Recorrentes não atenderam ao convite e desencadearam as devidas reclamações e recurso, alegando ser “difuso” o sistema de controlo da constitucionalidade em Angola.
Importa, pois, referir que a fiscalização concreta, como garantia da constitucionalidade, pressupõe três poderes: (i) o de determinar a norma aplicável ao caso, (ii) de apreciar a sua conformidade com a Constituição e, como consequência, (iii) o de não a aplicar quando desconforme. Assim, elencam-se dois momentos, em que, Jorge Bacelar Gouveia realça: “(…) num primeiro momento, a fiscalização concreta pode ser realizada pelos tribunais em geral, ex officio ou a pedido das partes, em qualquer momento do percurso processual, incluindo a última instância de decisão jurisdicional, podendo ainda, dentro da jurisdição geral, haver recursos de decisões de constitucionalidade concreta; - num momento ulterior, a fiscalização concreta é exclusivamente efetuada pelo Tribunal Constitucional, a título de recurso da decisão de outro tribunal, tomadas no primeiro momento processual (…)” (Manual de Direito Constitucional II- Direito Constitucional Português, 6.ª edição, Almedina, 2018, p. 1300).
No âmbito da fiscalização concreta, é o controlo difuso que facilita o exercício da defesa da supremacia constitucional, sem se exigir um peticionamento directo ao Tribunal Constitucional, porquanto o Magistrado Judicial em qualquer instância, não pode permitir a aplicação de uma norma jurídica, diante de um caso sub judice, quando verifica, de ofício ou por impugnação da parte, que esta se confronta directamente com os preceitos constitucionais, deve julgá-la inconstitucional para aquele caso concreto.
Atente-se que o controlo difuso pode ocorrer na forma de incidente de constitucionalidade, com apreciação por todos os Tribunais, embora a decisão, in casu, esteja sujeita a recurso para o Tribunal Constitucional que realiza, em última instância, a interpretação e fiscalização da Constituição da República de Angola.
Segundo Raul Araújo, Elisa Nunes e Marcy Lopes “O sistema de controlo da constitucionalidade em Angola é misto, cabendo aos tribunais de jurisdição comum o controlo difuso da constitucionalidade e ao Tribunal Constitucional a decisão final em sede de recurso jurídico-constitucional” (Constituição da República, Anotada, Tomo I, 2014, pp. 549-550).
No dizer de Adlézio Agostinho, “o controlo difuso possibilita a qualquer órgão judicial, com atribuição da aplicação da lei a um caso concreto, se considerar fora da ordem constitucional (…) permite a todo e qualquer juiz ou tribunal, o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma norma e, consequentemente, a sua não aplicação ao caso concreto levado ao conhecimento da corte (…)” (Curso de Direito Constitucional, (2019) AAFDL Editora, Lisboa, p. 419).
Destarte, para a declaração da inconstitucionalidade material torna-se necessário estar diante de um vício contido em lei ou acto normativo que viole substancialmente a Constituição da República de Angola, ou seja, cujo teor entra em choque com os ditames constitucionais. Portanto, a inconstitucionalidade material ou interna reporta-se ao conteúdo da lei ou acto normativo.
No caso vertente, as Recorrentes referem haver inconstitucionalidade material sem, contudo, apontarem as normas que lhe dão origem, não se configurando dos autos, quer antes quer depois do convite de aperfeiçoamento, quais as normas constitucionais consideradas violadas, que estejam na base do Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, proferido pelo Primeiro Ministro, que possam suscitar inconstitucionalidade material. Daí a razão do Despacho de aperfeiçoamento do Requerimento Inicial.
Neste sentido, tendo as aqui Recorrentes interposto o Recurso Contencioso de Impugnação e sido convidadas para aperfeiçoarem o Requerimento Inicial, deveria este convite ser acatado por se tratar de uma decisão judicial, não arbitrária e com respaldo legal.
A inconstitucionalidade material que as Recorrentes alegam afectar o Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, proferido pelo ex-Primeiro Ministro, por ser um acto administrativo (vide Acórdão n.º 843/2023 do Tribunal Constitucional), é aferível a partir do Recurso Contencioso de Impugnação Administrativa. Nos termos do artigo 177.º da CRA “Os Tribunais garantem e asseguram a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes, a protecção dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos e das instituições e decidem sobre a legalidade dos actos administrativos”. Devidamente fundamentado, legalmente, o Tribunal Supremo tem a competência para conhecer e decidir pedidos de inconstitucionalidades, seguindo a tramitação e legitimidade correspondentes.
Portanto, as Recorrentes alegaram a inconstitucionalidade, mas não indicaram que normas e princípios da Constituição foram violados pelo Despacho impugnado. A correcção impunha-se para indicar que normas e princípios constitucionais haviam sido violados pelo Despacho do Primeiro Ministro. Assim, só feita a correcção e completada a petição inicial ou o requerimento inicial, o indeferimento com o fundamento apresentado pelo Tribunal Supremo, poderia constituir a violação do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, por ser um órgão com competência para conhecer de inconstitucionalidades de qualquer acto administrativo.
Por esta razão e conforme os autos (fls. 209) o Acórdão recorrido refere que “A lei prevê expressamente o indeferimento liminar, como consequência do não aperfeiçoamento da P.I., ordenada pelo Juiz. Nestas circunstâncias, em se tratando de recurso contencioso administrativo, quando o Recorrente não sana a irregularidade do Requerimento Inicial, dispõe o artigo 44.º do Decreto-Lei nº 4-A/96, de 5 de Abril: Decorrido o prazo sem que tenha sido cumprido o ordenado no artigo anterior, o juiz singular ordena o arquivamento dos autos e o relator a remessa do processo à conferência para o mesmo efeito”.
Assim sendo, tratando-se de contencioso administrativo, são aplicáveis as disposições conjugadas dos artigos 43.º e 44.º, ambos do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo, actualmente, revogado pela Lei n.º 33/22, de 01 de Setembro, que aprova o Código do Processo do Contencioso Administrativo. O artigo 43.º estabelece que “Apresentado o requerimento inicial, se o juiz ou relator verificar a falta de qualquer dos elementos constantes do artigo 41.º deve conceder ao demandante o prazo de 10 dias para completar” e o artigo 44.º determina que, “Decorrido o prazo sem que tenha sido cumprido o ordenado no artigo anterior, o juiz singular ordena o arquivamento dos autos e o relator a remessa do processo à conferência para o mesmo efeito”.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional considera que não foi violado o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, pois foi assegurado às Recorrentes o exercício da defesa dos seus direitos e interesses, tendo as mesmas praticado os actos processuais, reputados necessários, em todas as instâncias cabíveis, através de advogados de sua escolha.

b) Sobre o direito a julgamento justo e conforme e o dever de fundamentação das decisões
As Recorrentes alegam ter havido a violação do direito a julgamento justo e conforme, pelo facto do Acórdão recorrido confirmar o indeferimento liminar proferido pelo Juiz Conselheiro Relator no Recurso Contencioso de Impugnação, por fazer constar, também, um pedido de declaração de inconstitucionalidade material, quando este devia fazer seguir o recurso porque quod abundat non nocet, ou seja, o que abunda não prejudica, e a formulação de tal pedido de modo algum, ou em situação alguma, comprometeria o êxito do recurso.
Outrossim, alegam as Recorrentes que o referido despacho carece de fundamentação, razão pela qual tinha de ser visto pelo Acórdão recorrido que houve inobservância do artigo 158.º do CPC, por parte do Juiz Conselheiro Relator.
O direito a julgamento justo e conforme, alegado pelas Recorrentes como tendo sido violado, é um direito fundamental que visa, essencialmente, concretizar o afastamento dos casos de injustiças, pois, ampara qualquer cidadão contra intervenções arbitrárias das autoridades, dando-lhe segurança para que não seja privado das suas liberdades, sem antes ser submetido a um julgamento, nos termos da lei vigente.
Segundo Raul Araújo e Elisa Nunes “O direito a julgamento justo é um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Ela tem de assegurar um julgamento público e num prazo razoável e garantias de defesa material” (Constituição da República, Anotada, Tomo I, 2014, p. 398).
O julgamento é considerado justo quando são acautelados e respeitados, determinados princípios, pelos Tribunais, conforme se extrai do disposto no artigo 72.º da CRA, ao estabelecer que: “a todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei”.
É jurisprudência desta Corte “(...) que o direito ao julgamento justo e conforme é, antes de mais, uma garantia constitucional implicando, para sua concretização, a observância de diversas outras garantias legais, ou seja, consiste numa ampla garantia que, em si mesma, engloba a observância de outras previstas na lei, tais como, o direito a igualdade das partes; direito de juízo justo; direito a um tribunal independente, imparcial e competente, enfim, a garantia do julgamento de uma causa sem arbitrariedades” (Acórdão n.º 618/2020, p. 9, acessível em https://tribunalconstitucional.ao/pt/jurisprudencia/acordao).

Expende, ainda, o Acórdão n.º 625/2020 do Tribunal Constitucional (pág. 8) que “O julgamento justo, inclui, essencialmente, o direito de estar presente em tribunal; de ter um julgamento público, célere, perante um tribunal independente e imparcial e de ter um advogado de escolha” (disponível em https://tribunalconstitucional.ao/pt/jurisprudencia/acordao).

Ora, as Recorrentes interpuseram Recurso Contencioso de Impugnação do Despacho n.º 2/07, de 28 de Dezembro, do Primeiro-Ministro, bem como requereram a declaração de nulidade do indeferimento tácito recaído sobre a reclamação de precedência obrigatória apresentada contra o referido Despacho.
Diante do Requerimento Inicial apresentado pelas ora Recorrentes, o Juiz Conselheiro Relator convidou-as para que o aperfeiçoassem, não o fizeram. Porém, inconformadas com a decisão reclamaram para a 3.ª Secção da Câmara do Cível e Administrativo do Tribunal do Supremo e, tendo esta sido indeferida, não apresentaram um novo Requerimento aperfeiçoado, razão pela qual o Juiz Conselheiro Relator considerou que assim comprometeria o êxito da acção e indeferiu liminarmente o referido Requerimento Inicial.
Esta decisão decorre do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 4-A/96, de 5 de Abril, que aprova o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo e do n.º 2 do artigo 11.º da Lei n.º 2/94, de 14 de Janeiro, Da impugnação dos actos administrativos, que permitem extrair deles a conclusão de que o recurso contencioso de impugnação de acto administrativo só pode abranger o pedido de nulidade ou a declaração de anulabilidade do acto. Isto é, a impugnação do acto administrativo faz-se mediante pedido de invalidade (nulidade e anulabilidade), não sendo admissível que se aproveite esta espécie de processo para o pedido de inconstitucionalidade material.
Insatisfeitas, as Recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Pleno de Recurso do Tribunal Supremo que, por sua vez, sob os actos que lhe foram submetidos para apreciar e decidir, veio a julgar improcedente o recurso e, em consequência, declarar válido o Acórdão recorrido. Esgotada a cadeia recursória, vieram ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Portanto, não cabe razão às Recorrentes ao alegarem que a Decisão recorrida tenha violado o direito a julgamento justo e conforme, pois transparece claramente dos autos que as mesmas exerceram os necessários direitos, liberdades e garantias legais junto do Tribunal Supremo, mediante intervenção de advogado de sua escolha, no âmbito do recurso por si interposto contra o acto do Primeiro Ministro.
Por outro lado, vieram as aqui Recorrentes alegar, também, que o Acórdão recorrido viola o dever de fundamentação das decisões, pois, o convite para o aperfeiçoamento do Requerimento Inicial, não fundamenta a sua decisão, nem sequer faz referência do artigo ou artigos da lei em que se baseou a decisão prolactada.
Vejamos:
O dever de fundamentação das decisões é de capital importância no mundo jurídico, pois, segundo Filipe Arady Miranda “Dentre algumas das finalidades da fundamentação de uma decisão podemos destacar a pacificação social; legitimidade da decisão, do juiz e do tribunal; autocontrole e controle social das decisões; garantia ao direito ao recurso; controle da correção material e formal pelos seus destinatários; compreensão da decisão; exercício da função do Estado de forma transparente e aberta; função pedagógica; evolução jurisprudencial; responsabilidade do Estado; e outras” (A Fundamentação das Decisões Judiciais como Pressuposto do Estado Constitucional, Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP, Brasília, 2014, p. 24).
O dever de fundamentação vem expressamente consagrado no n.º 1 do artigo 14.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aplicável em Angola, ex vi dos n.ºs 2 e 3 do artigo 26.º da CRA.
O dever de fundamentar os actos jurisdicionais é um pressuposto do princípio da motivação constitucional, isto é, para que uma decisão judicial seja válida, deve conter não só a decisão, mas também a exposição das razões de facto e de direito que levaram a tomar tal decisão.
Diz o Acórdão n.º 122/2010 (pág. 14), que “(…) a Constituição não prevê nenhuma disposição autónoma, à semelhança do que acontece com outras, que obriga à fundamentação das decisões dos Tribunais nos casos e nos termos previstos na lei mas a sua existência está implícita na conjugação de várias disposições combinadas da Constituição angolana, entre as quais o n.º 1 do artigo 67.º (...), n.º 6 do artigo 65.º, (...) formulações onde se extrai estar implícita a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais”. (Disponível em https://tribunalconstitucional.ao/pt/jurisprudencia/acordao).
Assim, é nula uma decisão não fundamentada, por aplicação supletiva da disposição da alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, à luz do estabelecido no artigo 2.º da LPC.
Atente-se que o dever de fundamentação reporta-se, naturalmente, àqueles actos que tenham natureza decisória e não aos actos dos magistrados judiciais que visam somente impulsionar o processo, que norteiam a marcha processual, porque estes não resolvem qualquer dúvida ou questão suscitada no processo.
O dever de fundamentação encontra respaldo no artigo 158.º do CPC que determina que “1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. (…)”.
No mesmo sentido, hoje, dispõe o artigo 17.º da Lei n.º 29/22, de 29 de Agosto, Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, que “As decisões dos Tribunais da Jurisdição Comum, que não sejam de mero expediente, são fundamentadas na forma prevista na lei”.
O Despacho de Aperfeiçoamento sub judice é considerado uma decisão de mero expediente, tal como defende Ana Prata, que “Este despacho liminar do juiz parece dever entender-se proferido no uso de um poder discricionário e, consequentemente, não ser passível de recurso (…), (Dicionário Jurídico, 3.ª edição, Almedina, 1997, p. 338).
No Acórdão em crise, esta Corte constata, fls. 208, ter sido observado o dever de fundamentação, ao realçar que: “No caso sub judice as Recorrentes decidiram não aperfeiçoar, mantendo o requerimento inicial, no seu formato original. Ora, o princípio da cooperação deve ser conjugado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento por iniciativa do Juiz, das omissões das Recorrentes.
O processo jurisdicional é constituído por um conjunto de actos jurídicos não arbitrários, ordenados em função de determinados fins. Pelo que as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inactividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões (…).
Não tendo anuído ao convite, as Recorrentes tinham plena consciência de que o Juiz a quo teria três opções: 1 – reiterar o convite de aperfeiçoamento, 2 – mandar notificar e 3 – indeferir liminarmente o requerimento.
De sublinhar que o indeferimento liminar (…) proferido pelo Juiz a quo, decorre do não aperfeiçoamento do requerimento inicial, nos termos do artigo 477.º do CPC e não do artigo 474.º do CPC”.
Ademais, conforme se constata dos autos, não se vislumbra falta de fundamentação, quer quando o Juiz Conselheiro Relator convida as ora Requerentes para corrigirem o Requerimento Inicial (fls. 56 verso e 57), quer quando, se apresenta a fls. 68 duas hipóteses, diante do indeferimento da reclamação: “(…) Ou se conforma com o despacho e procura seguir as orientações dadas pelo relator no sentido de aperfeiçoar o requerimento inicial; Ou não se conforma com o despacho e volta a reiterar a posição já vertida no seu requerimento inicial, esperando assim pela decisão definitiva do Tribunal na apreciação da questão para, de seguida, poder reagir, aí sim por via da reclamação (note-se aqui que o relator poderá, no entanto, convencer-se do modo como a questão está a ser colocada pelo reclamante no requerimento inicial e ordenar o prosseguimento dos autos)”.
Seguindo o entendimento sufragado por Abrantes Geraldes “não acatando o autor o convite, uma vez que a petição não estava em condições de ser recebida, o juiz deveria indeferi-la” (Temas de Reforma do Processo Civil, Vol. I, 2010, p. 272).
Nesta conformidade, o Tribunal Constitucional considera que não foi violado o dever de fundamentar a decisão pois, face à realidade dos autos, quer no Acórdão recorrido quer nas decisões anteriores que mereceram reclamação das Recorrentes, estão fundamentadas as razões do indeferimento do Requerimento Inicial, até porque, o convite de aperfeiçoamento decorre de um poder discricionário do Juiz.
Assim, conclui este Tribunal que o Acórdão recorrido não contraria os princípios e direitos fundamentais invocados pelas Recorrentes, nem quaisquer outros princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais que coubesse conhecimento desta instância.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, POR NÃO SE VERIFICAR QUAISQUER VIOLAÇÕES A PRINCÍPIOS, DIREITOS E GARANTIAS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLCA DE ANGOLA.

Custas pelas Recorrentes, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 05 de Dezembro de 2023.
OS JUIZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi