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ACÓRDÃO N.º 868/2023

 

PROCESSO N.º 1037-D/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO
Paulo Alexandre Saraiva dos Santos, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que confirmou parcialmente a decisão condenatória proferida no âmbito do Processo n.º 564/018, que correu trâmites na Sala dos Crimes do Tribunal Provincial de Benguela.
Em sede da primeira instância, o aqui Recorrente foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 (doze) anos e 3 (três) meses de prisão maior, pela prática do crime de homicídio voluntário simples, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 349.º, 11.º, 105.º e 104.º, n.º 1 e pelo do crime de ameaças, previsto e punível pelo artigo 379.º, todos do Código Penal, vigente à data dos factos.
No âmbito do recurso interposto para o Tribunal Supremo, cujo processo foi autuado com o n.º 2652/19, a 2.ª Secção da Câmara Criminal daquela Corte Superior decidiu alterar parcialmente a decisão recorrida, tendo absolvido o aqui Recorrente do crime de ameaças e condenando-o na pena 12 anos de prisão maior pelo crime de homicídio voluntário simples na forma tentada, bem como no pagamento de uma indemnização no valor de Kz 400 000.00 (quatrocentos mil Kwanzas), à vítima deste crime.
Nas suas alegações de recurso para este Tribunal Constitucional, o Recorrente, inconformado, diz, em resumo, o que a seguir se enuncia:
1. Foi julgado em sede do Tribunal a quo sem a representação do Ministério Publico (MP), na medida em que o Juiz do Tribunal da Comarca de Benguela nomeou um representante do MP ad hoc, sendo este uma pessoa estranha, que não era funcionário do Tribunal, nem da Procuradoria-Geral da República (PGR), conforme consta da acta de audiência de julgamento.

2. Nos termos do artigo 460.º e seguintes do Código do Processo Penal, em vigor à data dos factos, conjugado com o actual Código do Processo Penal (primeira parte do nº 1, do artigo 377.º), não é de admitir que o Ministério Público seja representado por pessoa que não é Magistrado do Ministério Público, o que constitui nulidade processual, ex vi do nº 8 do artigo 98º do antigo CPP, e violação ao princípio da legalidade processual, actos ignorados pelo Tribunal Supremo.

3. A audiência de julgamento foi realizada por um tribunal singular quando, à data dos factos e pela natureza do crime, era obrigatório que o julgamento fosse realizado por um tribunal colectivo, conforme acta constante nos autos.

4. A decisão condenatória foi, consequentemente, elaborada por um juiz singular, o que violava, à data dos factos, o estabelecido no artigo 45º, nº 2 da Lei nº 2/15, de 2 de Fevereiro, Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, que prevê o funcionamento do tribunal colectivo sempre que o crime seja punível, em abstracto, com a pena de prisão superior a cinco anos, facto que impediu a boa decisão da causa e que constitui violação ao princípio do julgamento justo.

5. O Tribunal a quo, ao não realizar a instrução contraditória, ordenada pelo Tribunal Supremo, por decisão proferida na sequência de recurso interposto neste sentido, ainda na fase judicial, violou o princípio do contraditório e o direito ao julgamento justo e conforme, previstos nos artigos 67º, 72º e no nº 2 do artigo 174.º.

6. A forma como o Tribunal a quo dirigiu o julgamento está em total desconformidade com a lei do processo, na medida em que a todos assiste o direito a um julgamento justo e conforme a lei, sendo que os juízes são obrigados a respeitar e assegurar o exercício dos direitos e garantias fundamentais, o que, in casu, a decisão recorrida procurou afundar e sistematicamente violar os direitos e garantias fundamentais do Recorrente.
Em face do exposto, o Recorrente termina pedindo que a sentença da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Benguela seja julgada inconstitucional por violação dos princípios da legalidade, do contraditório, do julgamento justo e conforme e da imparcialidade, todos previstos na Constituição da República de Angola (CRA), nomeadamente nos artigos 6.º, n.º 2, 67.º, n.º 2, 72.º, 174.º, n.º 2, 175.º e 177.º, n.º 1.
O processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos cumpre, agora, apreciar e decidir.

II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, LPC, competente para julgar os recursos interpostos das sentenças e decisões que violem princípios, direitos, garantias e liberdades, previstos na Constituição, após o esgotamento dos recursos ordinários legalmente cabíveis.

III. LEGITIMIDADE
O Recorrente, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, conjugado com a alínea b) do artigo 463.º do Código do Processo Penal Angolano, dispõe de legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, enquanto parte vencida no processo que tramitou na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, com o n.º 2652/19.

IV. OBJECTO
Constitui objecto deste recurso verificar a alegada inconstitucionalidade do Acórdão da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, por ofensa aos princípios da legalidade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e aos direitos a julgamento justo e conforme e ao contraditório.

V. APRECIANDO
Questão prévia
Corria a fase de apreciação do presente processo quando o Recorrente interpôs junto deste Tribunal Constitucional uma providência de habeas corpus, fundada no facto de ter decorrido o prazo legal para ser restituído à liberdade, por ausência de condenação com trânsito em julgado, ex vi das disposições combinadas da alínea d) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 283.º do Código do Processo Penal Angolano (CPPA).
No seu requerimento, o Recorrente traz à liça o facto de se encontrar em prisão preventiva há mais de 3 anos, sem ter sido proferida decisão final com trânsito em julgado, situação que, como acentua, conflitua com o seu direito à liberdade, cujas restrições devem obedecer ao previsto na Constituição e limitar-se ao necessário, proporcional e razoável (artigo 57.º, n.º 1 da CRA).
É sabido que a providência extraordinária de habeas corpus, consagrada no artigo 68.º da CRA, configura, em face de prisão ou detenção ilegal, um mecanismo excepcional e célere para protecção do direito à liberdade, do direito de “ir e vir”, um direito de primeira grandeza no contexto do Estado democrático de direito, intrinsecamente associado à dignidade de qualquer ser humano, enquanto valor fundamental.
O direito à liberdade é, como acentua o Recorrente, um direito que, a ser restringido, deve sê-lo em conformidade com o previsto na Constituição e na lei, devendo as eventuais restrições limitar-se ao necessário, proporcional e razoável (artigos 64.º e 57.º, n.º 1 da CRA). Deste direito decorre, concomitantemente, um dever de protecção por parte dos poderes públicos, que pode ser assegurado através do instituto do habeas corpus.
É de acentuar que no âmbito da disciplina processual desta providência extraordinária, o Tribunal Constitucional não é competente para decidir, em primeira instância, sobre o pedido de habeas corpus.
Nos termos do n.º 3 do artigo 290.º do CPPA, tal decisão cabe ao Juiz Presidente do Tribunal com competência para apreciar os factos criminais imputados ao detido ou preso, o que não afasta a pretendida defesa do direito à liberdade. E isto na medida em que todos os tribunais são chamados a defender os direitos, liberdades e garantias, como reflectido no n.º 2 do artigo 174.º e no n.º 1 do artigo 177.º, ambos da Constituição da República de Angola.
Adentrando na apreciação, importará agora ajuizar da procedência do presente recurso de inconstitucionalidade, ainda que seja de reconhecer que os autos subiram para esta Corte de Justiça Constitucional sem que o Tribunal Supremo se tivesse pronunciado sobre as reclamações apresentadas pelo Recorrente, conforme despacho a fls. 252 e 252v dos autos.
O recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto a decisão judicial que resulta do prévio esgotamento, nos tribunais comuns e nos demais tribunais, dos recursos ordinários legalmente cabíveis, que contenham fundamentos de direito que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, (artigo 49.º da LPC).
No caso vertente, a decisão a sindicar por este Tribunal é, assim, o aresto proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, enquanto última instância recursória em sede da jurisdição comum, o que, aliás, está claramente reflectido no requerimento de interposição deste recurso, inserto a fls. 240 dos autos.
Acontece, porém, que o Recorrente, nas suas alegações, não coloca em causa, em momento algum, a constitucionalidade deste Acórdão. Alega, ao invés, a inconstitucionalidade da sentença do Tribunal de primeira instância, ou seja, a sentença prolactada pela 2ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Benguela, arguindo a violação dos princípios da legalidade, do contraditório, do julgamento justo e conforme e da imparcialidade.
Deste modo, atendendo ao regime processual estabelecido no artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, a consequência jurídica a extrair da não conformação com o previsto nesta disposição legal seria a de negar provimento ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade por falta de objecto.
Acresce, ainda, que nenhuma das questões que fundamentam o presente recurso foram sindicadas pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que, tratou apenas de verificar, se os factos trazidos ao processo configuravam ou não um crime de homicídio na forma tentada, porque reunidos os elementos objectivos caracterizadores deste tipo de ilícito penal (ver fls. 218 a 225 e 233 a 235).
Nas suas alegações para o Tribunal Supremo e tendo em conta as questões suscitadas junto desta Corte de Justiça Constitucional, o Recorrente refere-se unicamente ao facto de não lhe ter sido dada a possibilidade de se defender por via da instrução contraditória (ver fls. 221 dos autos). Não menciona, a este respeito, o facto de ter reagido ao indeferimento do pedido de abertura da instrução contraditória com a interposição de um recurso para o Tribunal Supremo que até mereceu provimento, apesar de ter sido decidido já depois de realizado o julgamento da causa pela Sala Criminal do Tribunal Provincial de Benguela, fls. 173 e 191.
Ora, no âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, este Tribunal Constitucional é convocado para fiscalizar, sustentado em princípios, direitos, garantias e liberdades fundamentais, a constitucionalidade das decisões judiciais, competência também entendida como uma concretização plena do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA). E isto atendendo ao facto de constituir a última instância competente para, de modo sucessivo, assegurar a protecção dos referidos princípios, direitos, garantias e liberdades.
Neste sentido, pode ler-se, por exemplo, em Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional (2019) o seguinte: “A normatividade da Constituição só estará verdadeiramente assegurada quando para qualquer lesão de um direito fundamental a ordem jurídica preveja um meio jurisdicional capaz de proporcionar termo da lesão e a reparação do titular afectado. Daí que, expressa ou implicitamente consagrado na Constituição, a garantia de acesso aos tribunais para a tutela dos direitos fundamentais seja hoje percebida como imprescindível a qualquer Estado de Direito” (Novais, J.R, AAFDL; reimpressão, p. 180).
Por outro lado, é ainda de enfatizar que a presente garantia pressupõe também a necessidade de ser acautelada a celeridade na prolacção da decisão judicial, por via de uma solução jurisdicional adequada e em conformidade com as regras de um processo justo e conforme, o devido processo legal, o que, numa outra acepção, significa igualmente efectivar a normatividade da Constituição, por aplicação dos seus princípios e das suas normas, como acima se refere. De notar que o direito a um julgamento justo e conforme está expressamente consagrado no artigo 72.º da Constituição da República de Angola.
Não se afigura, assim, despiciendo trazer à liça o facto de a Constituição, enquanto lei superior, exercer, entre outras, a função garantística dos direitos fundamentais e de conformação material do ordenamento jurídico. Constitui, por isso, parâmetro de controlo da constitucionalidade das leis e dos actos do Estado, cuja validade depende da sua conformidade com a Lex Mater, como consagrado no artigo 226.º da CRA. Densifica-se, assim, o princípio da constitucionalidade, que emana do princípio da supremacia normativa da Constituição, positivado no artigo 6.º da CRA.
Destarte, e assente na premissa de que a “leitura das normas processuais deve ser feita à luz dos princípios e das regras constitucionais”, esta Corte Constitucional não pode deixar de sindicar as questões jurídico-constitucionais trazidas à sua apreciação nos presentes autos, por forma a aferir da relação de causa e efeito sobre o aresto objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
E isto ainda que o regime processual do recurso extraordinário de inconstitucionalidade aponte noutro sentido ou, inclusive, se entenda que o interesse processual de agir numa determinada direcção seja um ónus que impende sobre a parte que, para tanto, deve lançar mão dos mecanismos processuais adequados à obtenção da tutela pretendida.
Assim não se entendendo, estar-se-ia, obviamente, a colocar em causa a efectividade da própria Constituição, de que o Tribunal Constitucional é guardião e, consequentemente, o princípio do Estado de Direito, do qual resulta, inequivocamente, a obrigação de protecção judicial dos direitos fundamentais, como já acentuado.
Por tudo quanto foi aqui exposto, importará apreciar se, de facto, a decisão recorrida, violou ou não princípios constitucionais, o que esta Corte fará à luz do poder de cognição que lhe confere o artigo 11.º da LPC, nos termos do qual pode o Plenário declarar a violação de princípios constitucionais diversos daqueles invocados pelo Recorrente.

a) Sobre a alegada violação do princípio da legalidade
O Recorrente invoca a ofensa ao princípio da legalidade, por virtude da violação de comandos legais que regem o processo penal, o instrumento através do qual o direito penal se realiza, fazendo desencadear o poder punitivo do Estado, e que, hodiernamente, é percebido, na perspectiva da protecção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão, como “direito constitucional aplicado”.
O princípio da legalidade, plasmado no artigo 6.º, n.º 2 da CRA e igualmente reflectido nos artigos, 175.º, 177.º n.º 1 e 179.º da Constituição da República de Angola, materializa, como se conhece, a imperatividade de subordinação da acção dos poderes públicos à lei. É garante de protecção de direitos fundamentais e pressuposto de segurança jurídica e social, resultando ofendido nas situações em que tenha sido praticado acto à margem do fixado na lei, ofensa que configura, sucessivamente, violação à Constituição que o consagra.
Assim sendo, importará enfatizar, tendo em atenção o que releva da presente acção, que uma das garantias constitucionais atinentes ao processo penal tem, exactamente, que ver com a legalidade do próprio processo, como expressamente espelhado, entre outros artigos, no n.º 1 do artigo 67.º da CRA e no artigo 1.º do CPP vigente à data dos factos ou, ainda, nos artigos 1.º e 2.º do actual Código do Processo Penal Angolano (CPPA). Tal garantia decorre, implicitamente, de alguns dos instrumentos internacionais de direito internacional de que Angola faz parte, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos 8.º e 10.º), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 7.º) ou Pacto Internacional do Direitos Civis e Políticos (artigos 8.º e 14.º).
As formas de realização da garantia da legalidade do processo criminal podem, igualmente, ser intermediadas ou complementadas com o que dispõe a legislação processual penal infra constitucional, com destaque para o Código do Processo Penal Angolano, cujas disposições são de aplicação obrigatória para todos os operadores do direito, por forma a evitar o arbítrio do poder, as desigualdades de tratamento processual, as injustiças e legitimar a cominação de sanções penais.
A garantia da legalidade pode, assim, ser dimensionada quer a partir do que dispõe a Constituição, quer a partir do que estabelece a legislação infraconstitucional, sendo que, quando não garantida, coloca em causa o direito a julgamento justo e conforme.
É incontornável a ofensa ao princípio da legalidade, na medida em que não se atendeu, nos presentes autos ao disposto no § único do artigo 349.º do CPP, na medida em que o Recorrente foi julgado com base numa acusação provisória, ao que acresce o facto de a 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo não se ter pronunciado sobre a referida questão, considerando-se, assim, existir omissão de pronúncia nos termos da alínea d) do artigo 668.º do CPC, aplicado subsidiariamente ao processo penal ex vi do artigo 1.º do CPP, vigente à data dos factos.

b) Sobre a alegada violação do direito a julgamento justo e conforme e do contraditório

O direito a julgamento justo e conforme a lei configura uma garantia de controlo da própria legalidade e, igualmente, uma garantia de defesa e protecção jurídica, pois que o processo deve ser conduzido por forma a que sejam observados os procedimentos e o exercício dos inúmeros direitos que lhe estão subjacentes, entre os quais o direito ao contraditório.
Partindo da presente compreensão, releva atentar para o facto de, por um lado, não ter sido executada a decisão do Tribunal Supremo que conferiu provimento ao pedido de abertura de instrução contraditória, o que, numa análise linear, configura violação ao comando constitucional que estabelece sobre a obrigatoriedade de cumprimento das decisões judiciais (artigos 177.º, n.ºs 2 e 3 da CRA) e ao consignado no artigo 4.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, aplicável à data dos factos.
Releva, por outro lado, o facto de a questão da não realização da instrução contraditória não ter sido sindicada em sede do Aresto da 2ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, ora objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, apesar de o Recorrente se ter referido a este facto nas alegações que dirigiu a esse Tribunal Superior.
Ora, a instrução contraditória, prevista no artigo 327.º do CPP, em vigor à data dos factos, tem como fim, nos dizeres de Vasco Grandão Ramos, tanto completar e reforçar a prova indiciária da acusação, como realizar as diligências requeridas pelo arguido, destinadas a ilidir ou enfraquecer aquela prova e a preparar ou corroborar a defesa (Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, 2009, Faculdade de Direito-UAN, 5ª edição, p. 344).
Em termos gerais, com a abertura da instrução contraditória, a acusação inicialmente deduzida pelo Ministério Público no exercício da acção penal, transforma-se em acusação provisória, tendo em vista os objectivos da instrução contraditória requerida pelo arguido, tinham por finalidade enfraquecer ou mesmo anular os elementos constantes da acusação.
Por outro lado, a instrução contraditória poderia, eventualmente, em termos de resultado, ter levado o Ministério Público a alterar a sua acusação inicial ou, até mesmo, a não mantê-la, o que poderia determinar o arquivamento dos autos, com a consequência de o arguido não ser levado a julgamento.
No caso sub judice, o pedido de abertura de instrução contraditória foi indeferido em sede da 1.ª Instância, tendo deste indeferimento, o arguido interposto recurso junto do Tribunal Supremo, que foi deferido.
É de considerar, assim, que o facto de o Tribunal Supremo ter decidido condenar o aqui Recorrente, com base na acusação constante dos autos, que não foi objecto de instrução contraditória, configura violação ao princípio do contraditório, previsto no n.º 1 do artigo 67.º, no artigo 72.º e no n.º 2 do artigo 174.º, todos da CRA.
É facto que a condenação ou a absolvição de quem se encontra na posição de arguido é determinada pela prova que é produzida no decurso da audiência de discussão e julgamento, valorada ao abrigo da livre convicção do juiz. Todavia, a instrução contraditória sempre poderia dar lugar ao reforço dos elementos probatórios carreados ao processo e à uma alteração das circunstâncias de facto associadas ao cometimento da infracção, o que traduziria, no caso, um alargamento dos mecanismos de defesa de que o arguido se poderia socorrer e a concretização do exercício do contraditório.
E nesta linha de pensamento assentou o Acórdão do Tribunal Supremo, também da 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que conferiu provimento ao recurso interposto pelo Recorrente na sequência do despacho de rejeição que recaiu sobre o pedido de abertura de instrução contraditória.
Neste Aresto é expresso o que se segue: “Efectivamente a instrução contraditória é inerente ao direito de defesa e se encontra intimamente ligada ao princípio do contraditório, sendo este um dos princípios fundamentais do processo penal, com essência constitucional. De acordo com o corpo do artigo 327.º do CPP, a instrução contraditória destina-se a completar a prova indiciária da acusação e para realizar diligências requeridas pelo arguido destinadas a ilidir ou enfraquecer aquela prova. Ora, nas suas alegações de recurso, o arguido refere que pretende lançar mão de todos os mecanismos legais para provar a sua inocência ou enfraquecer a acusação, ou mesmo, ajudar na descoberta da verdade material. Em função dos argumentos apresentados pelo réu e com vista à realização plena do seu direito de defesa deve ser deferida a sua pretensão” (ver págs. 43 dos autos de recurso, apensos ao processo principal).
A par disso, é de referir que a garantia de acesso à justiça constitucional (e também aos demais tribunais) para a defesa jurisdicional de direitos fundamentais objecto de lesão significa, essencialmente, no plano prático, a efectivação da normatividade da Constituição, pois que as normas constitucionais, enquanto normas jurídicas, são e devem ser aplicadas pelos tribunais, o que vale, igualmente e em termos gerais, para os princípios, garantias e liberdades fundamentais. Os Tribunais apresentam-se, assim, como instrumentos de efectivação de todas as garantias que a Constituição estabelece.
Ora, efectuado o julgamento com base numa acusação provisória, pelo facto de não ter sido realizada a instrução contraditória, é de reconhecer que nesta dimensão, o exercício pleno do direito ao contraditório e a garantia de defesa do Recorrente, elementos conformadores do direito ao julgamento justo e conforme, foram indubitavelmente afectados.
No processo penal o exercício pleno do direito ao contraditório pressupõe, pois, a faculdade de qualquer das partes contrariar, nas diferentes fases do processo em que tal é permitido, todos os elementos de facto e de direito que sustentam a sua condenação, o que não se materializou nos presentes autos.
Igualmente se considera ter resultado afectado o princípio da segurança jurídica, inerente ao Estado de direito, que incorpora a ideia de previsibilidade, certeza e confiabilidade em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos, constituindo, em resumo, garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito. Aplicado ao processo e, in casu, ao processo penal, deste princípio emanará a ideia de confiabilidade, certeza, efectividade e estabilidade das situações jurídicas processuais, posto que o próprio processo deve concretizar o pressuposto da segurança jurídica e da protecção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, em face dos efeitos concretos e restrições resultantes das decisões judiciais.
Deste modo e em face do expendido, considera este Tribunal Constitucional ter resultado comprometida a validade jurídico legal do julgamento que levou à condenação do Recorrente pelo crime de homicídio voluntário simples, na forma tentada.
Chegados até aqui, importará realçar que é a Constituição que confere sentido ao ordenamento jurídico, enquanto sistema ordenado e hierarquizado de normas, princípios e valores orientadores da conduta jurídica, servindo de garantia e de limite ao exercício da acção penal.
A justiça penal deve representar, assim, a efectivação das normas, princípios e garantias em que se sustenta, ancorada no que estabelece a Constituição e a lei, por forma a que as decisões judiciais incorporem um pleno sentido de justiça.
Nesta dimensão, a omissão verificada em sede do Tribunal recorrido no que concerne à releitura do processo que lhe foi submetido, afecta a garantia de justiça que é exigida ao abrigo do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 29.º da CRA, e indissociável do direito a julgamento justo e conforme, estabelecido no artigo 72.º da CRA e do princípio da legalidade, vertido no artigo 6.º da Constituição da República de Angola.
Com efeito, esta Corte Constitucional considera que o Acórdão proferido pela 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, ao não sindicar o facto de o referido julgamento ter sido realizado com base numa acusação provisória, coloca em causa o princípio da legalidade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e, por inerência, o direito ao julgamento justo e conforme, neste se incluindo o direito ao contraditório.
Destarte, procede o presente recurso, devendo os autos baixar à instância devida, para abertura da instrução contraditória, à qual se seguirão os trâmites subsequentes que se mostrarem cabíveis, nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da LPC.

Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO RECURSO, DEVENDO OS AUTOS BAIXAR, PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO CONTRADITÓRIA, SEGUINDO-SE OS TRÂMITES SUBSEQUENTES, NOS TERMOS DO N.º 2 DO ARTIGO 47.º DA LPC.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 06 de Dezembro de 2023.
OS JUIZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Relatora)
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi