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ACÓRDÃO N.º 869/2023

 

PROCESSO N.º 1058-B/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO
Nádia Agostinho dos Santos Pimentel, melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional - (LPC), interpor, por intermédio do seu mandatário judicial, o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho do Juiz Relator do Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, sob o Processo n.º 187/2022, por entender que o mesmo violou os princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme, ambos consagrados nas disposições combinadas dos artigos 29.º, 72.º e n.º 2 do 226.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA), alegando em síntese o seguinte:

1. A Recorrente impugnou judicialmente a medida disciplinar que lhe foi aplicada pelo Director Nacional das Alfândegas, tendo interposto o Recurso Contencioso de Impugnação do Acto Administrativo que correu trâmites na 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, sob o Processo n.º 596/2019.

2. Proferida a decisão, em sede do processo acima referenciado, o mesmo negou provimento ao recurso interposto e, em consequência, declarou válido o Despacho n.º 225/DRH/2010, exarado pelo Director Nacional do Serviço Nacional das Alfândegas que aplicou a medida disciplinar de demissão à Recorrente.

3. Notificada do Acórdão proferido a fls. 123 e ss dos autos, a Recorrente, não se conformando com o mesmo, interpôs recurso para o Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, o qual foi admitido, conforme fls. 129 dos autos.

4. No dia 19 de Setembro de 2022, por estar em tempo e possuir legitimidade, a Recorrente deu entrada das suas alegações junto da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo.

5. Surpreendentemente, no dia 01 de Novembro de 2022, a Recorrente foi notificada do Despacho do Venerando Juiz Conselheiro Relator do Tribunal Supremo, dando nota da deserção do recurso, por falta de alegações, o que a levou a reclamar, no dia 03 de Novembro de 2022, do teor do Despacho do Venerando Juiz Conselheiro Relator do Tribunal Supremo, sendo certo que apresentou as suas alegações tempestivamente, conforme consta dos autos.

6. Para seu espanto, no dia 23 de Novembro de 2022, foi notificada do despacho do Venerando Juiz Conselheiro Relator do Tribunal Supremo, sobre a manutenção da sua posição no Despacho por si proferido, com fundamento no facto de que, após julgar deserto o recurso, perdeu a jurisdição.

7. É por este motivo que interpôs o presente recurso pois, entende que o despacho posto em crise, viola os princípios da tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme.

8. Pugna pelo provimento do recurso e requer a revogação do Despacho recorrido porque inconstitucional.

O processo foi à vista do Digníssimo Magistrado do Ministério Público que se pronunciou no sentido de se dar provimento ao recurso, porquanto, a fls. 148 dos autos, há a informação do Secretário Judicial daquela instância, datada de 15 de Novembro de 2022 que, efectivamente, certifica que a Recorrente apresentou as suas alegações no dia 19 de Setembro de 2022 e que por lapso foram juntas a um outro processo, conforme fls. 149 margem superior e que a deserção do recurso viola, assim, os princípios da tutela jurisdicional efectiva e de um julgamento justo e conforme, consagrados no n.º 1 do artigo 29.º, no artigo 72.º e n.º 2 do artigo 226.º, todos da Constituição da República de Angola;
Colhidos os vistos legais cumpre agora apreciar, para decidir

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho - Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho (LPC), têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional "as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente é parte nos autos que correram os seus termos no Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 187/2022, tendo, por essa razão, legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto o Despacho do Venerando Juiz Conselheiro Relator do Tribunal Supremo, que confirma a manutenção do Despacho da deserção do recurso e, consequentemente, não poder apreciar a reclamação apresentada pela Recorrente, com fundamento de ter perdido jurisdição no Processo n.º 187/2022, que correu trâmites no Tribunal Pleno e de Recurso do Tribunal Supremo, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não os princípios ou direitos constitucionalmente consagrados.

V. APRECIANDO

A Recorrente invoca nas suas alegações que o Despacho impugnado violou os princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme, todos consagrados nas disposições combinadas do n.º 1 do artigo 29.º, do artigo 72.º e do n.º 2 do artigo 226.º da CRA, pelo facto de o Venerando Juiz Conselheiro Relator da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, ter mantido a sua posição sobre a deserção do recurso no Processo n.º 187/2022, com fundamento de ter perdido jurisdição e não poder apreciar a reclamação apresentada pela Recorrente.
A tutela jurisdicional efectiva é uma garantia constitucional, que, pela sua importância para defesa dos direitos fundamentais, vem consagrada, também, nos principais instrumentos internacionais, de que o Estado angolano faz parte, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH (artigo 10.º), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos - PIDCP (artigo 14.º) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 7.º), aplicáveis pelos tribunais angolanos, por força dos artigos 13.º e n.º 2 do 26.º, ambos da CRA.
O princípio da tutela jurisdicional efectiva enquadra-se no título dos direitos e deveres fundamentais. “Este princípio pressupõe ainda que as partes no processo possuam um arsenal de poderes processuais que lhes permita influir na decisão final da lide, poderes em relação aos quais o legislador ordinário possui uma razoável dose de discricionariedade de atribuição, tendo este, porém, em qualquer caso, de mover-se na órbita do direito a um processo equitativo” (MIRANDA, Jorge e MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Ed, Coimbra, 2010, p. 440).
No ensinamento de J. J. Canotilho e Vital Moreira “o princípio da tutela jurisdicional efectiva obriga que a protecção através dos tribunais seja real e exequível, pressupondo um quadro de direito material compatível com o estatuto do Estado de Direito e com os direitos fundamentais” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, p. 416).
Importa realçar, como descreve Jorge Miranda, que “o eficaz funcionamento e o constante aperfeiçoamento da tutela jurisdicional dos direitos das pessoas, são sinais de civilização jurídica” (Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, p. 320).
Ao princípio da tutela jurisdicional efectiva fazem cordão uma série de outros princípios e direitos, como o de acesso ao direito e aos tribunais, o princípio da celeridade na composição dos diferendos, o princípio do patrocínio judiciário, o princípio do contraditório e o direito ao recurso das decisões judiciais.
No caso jub judice, o Tribunal Supremo considerou deserto o recurso por falta de alegações escritas. Sucede, porém, que o Tribunal Constitucional tem jurisprudência firmada no sentido de que a falta de alegações não deve, necessariamente, ter como consequência a deserção do recurso (vide Acórdãos n.ºs 355/2015, 358/2015, 364/2015). A título de exemplo, afirmou o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 626/2020, que “…a decisão recorrida, ao determinar a deserção do recurso, fundamentada nos artigos 292.º, n.º 1 e 690.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, impede que o Recorrente possa continuar a aceder aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, com vista a obter tutela efectiva, tal como prescreve o artigo 29.º da CRA”.
Mas nem seria necessário recorrer a tal jurisprudência, uma vez que ficou claramente demonstrado que a Recorrente, em sede do Tribunal Supremo, até apresentou alegações escritas tempestivamente e só por lapso do próprio Cartório, é que as mesmas não foram juntas ao Processo. Com efeito, a fls. 152 dos autos, a escrivã admite que as alegações foram entregues em tempo, mas juntas a outro processo e o Secretário Judicial confirma a informação.
Com base nessa informação, o juiz, que tem como principal missão dirimir conflitos em tempo útil, percebendo que a sua decisão de julgar deserto o recurso foi baseada em um erro material cometido pelo seu Cartório, o mínimo que deveria fazer, era corrigir o erro, revogar o seu despacho e aceitar as alegações, ordenando a sua junção aos autos. Ao não fazê-lo, violou gravemente o direito do acesso aos tribunais, corolário do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.
Quanto ao princípio do julgamento justo e conforme, ele é entendido como uma garantia que pressupõe a existência de uma justiça funcional, imparcial e independente, e vem também regulado em vários instrumentos jurídicos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 10.º) e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 7.º).
O due process, como também é denominado, implica também a obrigação de o julgador, ao decidir sobre qualquer questão no processo, levar em consideração todos os factos carreados pelas partes ou por quaisquer outros intervenientes. Com efeito, no ensinamento de Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, “os juízes e outros operadores da justiça têm de ser tecnicamente capazes de responder às necessidades do processo…” (Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, p. 398).
No caso em concreto, o Juiz ignorou, in tottum, a informação prestada pela Escrivã e confirmada pelo Secretário Judicial, de que as alegações escritas foram apresentadas dentro do prazo. Ao desconsiderar esta falha material do seu Cartório e decidindo pela manutenção do despacho de deserção, a decisão recorrida violou, de modo flagrante, os princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do julgamento justo e conforme, de acordo com o disposto nos artigos 29.º e 72.º, ambos da CRA.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E DECLARAR INCONSTITUCIONAL A DECISÃO RECORRIDA, POR VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA E DO JULGAMENTO JUSTO E CONFORME, DEVENDO OS AUTOS BAIXAR AO TRIBUNAL SUPREMO PARA EFEITOS DO N.º 2 DO ARTIGO 47.º DA LPC.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 06 de Dezembro de 2023.
OS JUIZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi (Relator)