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ACÓRDÃO N.º 870/2023

 

PROCESSO N.º 1047-C/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Flávio Evandir Campos Alves, com os demais sinais de identificação nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão prolactado aos 26 de Maio de 2022, no âmbito do Processo n.º 238/21, pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, que negou provimento ao recurso da Providência Cautelar Não Especificada que requereu para suspensão da medida disciplinar de despedimento que lhe foi aplicada e consequente reintegração.

O Recorrente, regularmente notificado, sustentou as suas alegações de recurso esgrimindo, resumidamente, que:  


1. A dignidade da pessoa humana é o valor-fonte de todos os direitos constitucionais que se apresenta como fundamento e fim último de toda a ordem pública não podendo ser sacrificada por outros interesses.  

2. Interpôs recurso do Acórdão prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo que julgou improcedente a Providência Cautelar Não Especificada requerida por si para a suspensão do despedimento disciplinar contra si aplicado pela Empresa UNITEL SA, com fundamento na falta de apresentação de provas dos prejuízos resultantes do despedimento e do periculum in mora.  

3. O Tribunal recorrido não considerou o facto da República de Angola ser membro da Organização Internacional de Trabalho (OIT) cujos princípios e normas ingressaram no ordenamento jurídico angolano, portanto, deixou de atender ao princípio do favor laboratoris que reconhece o trabalhador como a parte mais fraca na relação material controvertida, exigindo-lhe prova dos prejuízos que acarreta a cessação do vínculo jurídico-laboral. 

4. Entretanto, o desemprego afecta significativamente a sua dignidade, desde logo, porque deixou de ter uma fonte de renda e de sustento para suprir as necessidades ordinárias da lide familiar. 

5. O princípio do tratamento mais favorável do trabalhador, na abordagem de Maria José Rodrigues, dá nota que sempre houve, à semelhança do Código Penal, o princípio do tratamento mais favorável ao “mais fraco”, isto é, o trabalhador. 

6. Estaria o tribunal a socorrer-se do non liquet em respeito as providências cautelares laborais no ordenamento jurídico angolano? Se sim, é ao arrepio do princípio da tutela jurisdicional efectiva. 

Termina requerendo ao Tribunal Constitucional que declare inconstitucional e, consequentemente, a nulidade do Acórdão em crise, por violação dos princípios da supremacia da Constituição e legalidade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, do favor laboratoris, do âmbito internacional, e dos direitos ao trabalho e do julgamento justo e conforme, todos previstos na Constituição da República de Angola (CRA). 

O Processo foi à vista do Ministério Público que, em síntese, pronunciou-se nos seguintes termos:

Compulsados os autos, constata-se na verdade que o Recorrente não fez prova do alegado prejuízo resultante do despedimento, limitando-se a narrar factos não sustentados, o que foi considerado pelo Tribunal, e bem, como falta de necessidade de uma premente resposta imediata conforme estabelece o artigo 401.º n.º 1 do CPC.

Do mesmo modo, não fundamentou o alegado periculum in mora, sendo este elemento constitutivo para efeito de concessão da providência (…).

Destarte, não se vislumbram as violações de princípios e direitos alegados pelo Recorrente.

Termos em que, somos pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigos 49.º e do artigo 53.º, ambos plasmados na Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

Ademais, foi esgotado o preenchimento da cadeia recursória dos Tribunais comuns prevista no parágrafo único do artigo 49.º da LPC.  

III. LEGITIMIDADE

O Recorrente é requerente da Providência Cautelar Não Especificada que correu termos na Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo (Processo n. º 238/2021) e não viu a sua pretensão atendida. Por isso, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

IV. OBJECTO

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade visa apreciar e decidir sobre a invocada inconstitucionalidade do Acórdão acoimado, prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, isto é, saber se ofendeu princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.  

V. APRECIANDO

O Recorrente veio ao Tribunal Constitucional requerer a sindicância do Aresto prolactado pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo que julgou improcedente o recurso da providência cautelar não especificada  de suspensão do seu despedimento disciplinar, alegadamente, por violação dos   princípios da supremacia da Constituição e legalidade (artigo 6.º), do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º), do Direito Internacional ( artigo 13.º) e do direito ao trabalho (artigo 76.º n.º 1), todos previstos na Constituição da República de Angola (CRA).

In casu, o processo sub judice retrata a improcedência de uma providência cautelar de suspensão de um despedimento disciplinar, cujo pedido foi rejeitado por falta de reconhecimento de requisitos cruciais, inafastáveis, consignados na lei.

O Recorrente alude a violação de princípios, direitos e garantias fundamentais preceituados na CRA devido à improcedência do seu pedido. Cabe-lhe razão? Veja-se!

Percepciona-se dos autos da presente lide que, na sequência de um acidente de viação (atropelamento) causado pelo Recorrente enquanto conduzia a viatura da empresa, provocou a morte de uma criança. Em consequência disso, foi-lhe instaurado procedimento disciplinar que culminou com a aplicação da medida de despedimento. Irresignado, requereu judicialmente a suspensão cautelar do despedimento, cujo pedido lhe foi liminarmente rejeitado quer no Tribunal a quo quer no Tribunal ad quem.

Antes de mais, refira-se que a constitucionalização dos direitos fundamentais é, hodiernamente, a razão de ser fundante do Estado de Direito. Cabe frisar que a sua tutela visa atribuir aos jurisdicionados a efectiva protecção dos valores, princípios, direitos e garantias jurídico-fundamentais previstos na Lex Mater para a salvaguarda de uma justiça de igualdade e de equilíbrio que permita às partes esgotar todos os mecanismos protectivos dispostos pela Constituição a seu contento, dotando-os de meios e instrumentos indispensáveis ao seu direito de ampla defesa.

Da panóplia de princípios constitucionais jus-fundamentais, o princípio da legalidade é o prius reitor da actuação de todos os órgãos públicos, que determina a conformação de quaisquer actos do Estado à lei, constituindo, por si só, um pilar estruturante da actividade judicativa que norteia o julgador, vinculando-o ao dever de obediência à CRA e à lei, de modo a prevenir arbitrariedades abusivas contra os indivíduos.
  
Os princípios e valores éticos-jurídicos sedimentados pela supremacia da Carta Magna perpassam por todas as fases da dialéctica processual comum ou especial servindo de parâmetro concretizador das normas infraconstitucionais e, como tal, da tutela da legalidade.

No âmbito do ordenamento jurídico-laboral pátrio, as providências cautelares não se orientam por uma regulação legal, própria e autónoma do processo civil, estando, por isso, inseridas no regime das providências comuns. Porém, ainda que explicitamente pouco se fale a respeito desta lacuna patente no processualismo laboral, não é inconteste a sua importância e relevância neste domínio da ciência jurídica, maxime, na concretização das tutelas urgentes.  

Destaca-se, porque oportuno e conveniente, que a intervenção do julgador angolano neste campo tem a sua incidência normativa balizada pelas providências cautelares comuns, o que limita, desde já, a sustentação de uma lógica jurídica baseada no âmbito de uma providência laboral especificada. 

Com efeito, as providências cautelares laborais (especificadas), no domínio da disciplina jurídica processual do trabalho, não têm uma reconhecida tradição em Angola. Ora, nesta medida, esta realidade pode de alguma forma desatender o juízo valorativo do julgador face à delicadeza, especificidade e vulnerabilidade das matérias trabalhistas que exigem uma tecnicidade própria e uma valoração holística positivista, maxime, pela função social e humana que o trabalho traduz à luz da CRA e da Lei. 

A respeito do disposto na fundamentação do Acórdão recorrido (fls. 123), vislumbra-se que a razão subjacente da sua improcedência pelo Tribunal ad quem estriba-se, no essencial, na inexistência de requisitos ou pressupostos de admissibilidade da tutela cautelar previstos na lei, cita-se: Na apreciação da procedência ou não de uma providência cautelar deverá sempre o Tribunal apreciar a verificação ou não dos requisitos dos quais a mesma depende. Destarte, o periculum in mora é um elemento constitutivo da providência requerida, pelo que a sua inexistência obsta ao decretamento desta. 

Atento ao excurso supra transcrito e à ratio principiológica deste instituto, afere-se que a providência cautelar comporta especificidades decorrentes da sua natureza jurídica (urgência, transitoriedade, instrumentalidade e provisoriedade), cuja teleologia aponta, necessariamente, para o escrupuloso cumprimento dos seus requisitos basilares, o periculum in mora e o fumu boni juris. 

Neste contexto, também, Alcides Martins enfatiza que (…) é comum na doutrina e na jurisprudência, considerar que todo e qualquer procedimento cautelar se destina a evitar, um perigo grave que ameaça o direito de alguém (periculum in mora) perigo este que é tão eminente que não se compadece com a demora da decisão ou da execução em processo normal. Para tal acontecer terá de se proceder a uma breve apreciação dos factos (sumaria cognitio) para se obter uma simples probabilidade ou verosimilhança da existência do direito (fumu boni juris) e do perigo invocado (Direito Processual Laboral, 4.ª edição, Almedina, 2020, p. 106).

Dispõe o n.º 1 do artigo 400.º do CPC que o Requerente oferecerá prova sumária do direito ameaçado e justificará o receio da lesão. Acrescendo o n.º 1 do artigo 401.º, do mesmo diploma legal, que a providência é decretada, desde que as provas produzidas revelem uma probabilidade séria da existência do direito e mostrem ser fundado o receio da sua lesão. 

É certo que a providência cautelar constitui uma garantia nuclear que assegura às partes o direito a um julgamento justo e conforme, o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, o devido processo legal e demais garantias processuais reconhecidas aos litigantes. Porém, a sua procedência implica, imperiosamente, a verificação cumulativa dos seus requisitos fundamentais, o periculum in mora e o fumu boni juiris.

No caso em apreço, vistos os autos, constata-se que, no âmbito da sua livre apreciação e valoração, entenderam o Tribunal a quo e o Tribunal ad quem que o Requerente, ora Recorrente, não logrou convencer ou demonstrar justificadamente, de forma objectiva, a probabilidade de um perigo ou ameaça de um direito aptos a fundamentar a existência do periculum in mora. Quanto a este aspecto, não pode esta Corte Constitucional constituir-se como uma terceira instância de recurso, reapreciando o mérito da causa, atenta às suas competências legais na seara constitucional, preceituadas na Carta Magna (artigo 181.º da CRA) que excluem a possibilidade de prolacção de decisões da jurisdição comum.  

Desta sorte, bem firmou o Acórdão recorrido (fls. 126) ao sustentar: (…) Outrossim, a situação exposta pelo Agravante da forma como o fez, sem qualquer prova, inclusive sumária, afasta-se da necessidade de uma premente resposta imediata (isto é não é subsumível ao periculum in mora). 

De outra parte, tratando-se de um pedido de suspensão cautelar de despedimento disciplinar, não bastava ao Recorrente arguir a morosidade processual e o sério risco de ameaça de um direito. Mais do que isso, importava também justificar a necessidade de protecção e efectividade do direito invocado, face à verificação da inexistência de justa causa de despedimento, o que não foi alcançado pelo Recorrente. 

Nas providências cautelares apenas cabem decisões provisórias, não sendo, por isso, uma decisão definitiva dimensionada à questão do processo principal. Mas, reputa-se fundamental abalizar que nas providências cautelares de suspensão do despedimento disciplinar, essencialmente, a ameaça incide sobre bens e valores axiais catalogados na Constituição, o direito ao trabalho, o direito à segurança no emprego, o direito à remuneração que constituem a matriz nuclear dos direitos fundamentais laborais. Assim, o mérito cautelar, não entrando propriamente na apreciação da decisão final quanto ao juízo de certeza, deve aferir a mera probabilidade sobre a existência da justa causa de despedimento e a verificação dos requisitos elementares, o que não se vislumbra dos autos.

Nesta perspectiva, no contexto da suspensão cautelar do despedimento, a base de apreciação do periculum in mora assenta em critérios lógico-objectivos com uma funcionalidade própria, havendo que considerar sempre a probabilidade séria de verificação da justa causa de despedimento antevendo o desfecho da decisão da acção principal.

Nesta esteira, assinala-se a doutrina trabalhista postulada nas esclarecedoras palavras de Pedro Romano Martinez, citado por Osvaldo Luacuti Estevão: (...) por via da suspensão do despedimento individual pretende-se que o trabalhador, não obstante a decisão tomada pelo empregador, se mantenha em funções na empresa enquanto decorre o processo judicial de impugnação do despedimento, na medida em que se admita prima facie a inexistência de justa causa de despedimento (Direito Processual do Trabalho Angolano, WA Editora, 1ª Edição, Maio – 2021, p. 319).

No mais, torna-se importante acrescer que, vistos os autos, pode-se constatar que, diferentemente do que invoca o Recorrente a sua intervenção processual na lide tem sido pautada por um exercício pleno dos seus direitos fundamentais, não sendo razoável acolher que, pelo facto de não ter sido atendido o seu pedido, se devem considerar lesados ou ofendidos os princípios que arrimou nas suas alegações, sem contudo, mais uma vez, ter sustentado a sua convicção à luz do controlo difuso da constitucionalidade.

Na mesma linha retórica, cita-se o Acórdão n.º 800/2023, de 8 de Fevereiro prolactado pelo Tribunal Constitucional que pugna pelo seguinte entendimento: (..) O Acórdão recorrido não se pronunciou sobre o mérito da questão, pois limitou-se a aferir se estavam preenchidos os requisitos de admissibilidade para a propositura do procedimento cautelar, tendo concluído pela negativa (…). In https://tribunalconstitucional.ao/pt/jurisprudencia/acordao.

Ademais, no sistema jurídico angolano as normas constitucionais projectam-se horizontalmente levando, também, à conformação das normas ordinárias à protecção integral e garantística dos direitos fundamentais na sua máxima efectividade. Assim, é de convir que os argumentos arrazoados do ora Recorrente quanto ao cotejo de princípios e direitos alegadamente ofendidos pelo Acórdão sindicado, não merecem censura constitucional, pelo que não pode ser declarada a inconstitucionalidade formal ou material do aresto atacado. 

Ante todo o exposto, o Tribunal Constitucional conclui que o Acórdão revidado não violou princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais, previstos na Constituição da República de Angola.

Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, POR NÃO SE TER VERIFICADO A VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS, DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS, PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 07 de Dezembro de 2023.
OS JUIZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Simão de Sousa Victor
Dr. Vitorino Domingos Hossi