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ACÓRDÃO N.º 872/2024

PROCESSO N.º 1057-A/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Adalberto da Silva Milagre, Recorrente, com os demais sinais de identificação nos autos, foi, na sequência de um acidente de viação, em processo de polícia correccional, que correu os seus termos na 2.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, julgado e condenado na pena de multa e na reparação dos danos causados ao veículo do lesado, no limite da sua responsabilidade, calculada à ordem de 40%, pela prática do crime de dano com culpa grave, previsto e punível pelo artigo 482.º do Código Penal de 1886, em vigor à data dos factos.

Irresignado, interpôs recurso da decisão no Tribunal Supremo que, considerando os elementos de prova constantes dos autos, concluiu ser o ora Recorrente o único responsável pelo sucedido e condenou-o, alternativamente, à reparação total dos danos causados ao veículo do lesado ou à indemnização por reposição in natura.

Uma vez mais, inconformado, vem, ao Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade da decisão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactada no âmbito do Processo n.º 5697/21.

Neste Tribunal, notificado para apresentar alegações, o Recorrente pronunciou-se, em síntese, do seguinte modo:

1. A motivação do presente recurso tem por objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo que, de forma infundada, decidiu alterar e agravar a decisão recorrida do Tribunal de primeira instância.

2. Salvo o devido respeito, tal decisão violou, indubitavelmente, o princípio da proibição da reformatio in pejus, a garantia de um processo penal justo, o princípio da igualdade e outros conexos aos mencionados.

3. Os acontecimentos que despoletaram o processo no Tribunal de primeira instância datam do dia 31 de Outubro de 2017. Nesse dia, o Recorrente circulava ao volante da viatura de marca Toyota (Modelo Land-Cruiser, com a matrícula LD-37-76-BA, cor Branca, Ligeiro, de 13 Lugares, Tipo Caixa Fechada), no sentido Ilha de Luanda à Fortaleza de São Miguel, embateu o pára-choque de frente contra o guarda-lamas esquerdo do veículo conduzido pelo lesado nos presentes autos.

4. A marcha da viatura do Recorrente era inferior a 60 Km/hora, tendo visto a viatura do lesado introduzir-se numa via principal, saindo da via secundária, denominada Rua Cirilo da Conceição, desrespeitando os sinais verticais do Código de Estrada aí instalados, constituindo, por si só, uma manobra perigosa, sem ter tomado as medidas de precaução e segurança exigidas para circular nos cruzamentos, o que desencadeou o embate.

5. Perante a manobra perigosa em questão, convindo evitar a colisão com o referido veículo, o Recorrente efectuou uma travagem imediata, mas não logrou o sucesso desejado. No local onde ocorreu o acidente havia semáforos que não funcionavam e, por isso, devia o aqui lesado ter maior precaução, observando as regras para efectuar manobras.

6. O sucedido ocorreu, provavelmente, porque o indivíduo estava com pressa e, por isso, efectuou tal manobra perigosa que culminou com o embate, resultando em danos para ambas viaturas, sendo que, na viatura do Recorrente, após avaliação, o dano ficou avaliado em AKZ 80 000,00 (oitenta mil kwanzas), ao passo que o lesado teve, alegadamente, perda total da viatura.

7. O Recorrente, perante o lesado, nunca assumiu qualquer culpa pelo acidente, tendo o primeiro agente de Regulação de Viação e Trânsito, que esteve no local do acidente, revelado ser o lesado o contraventor.

8. O lesado declarou não ter seguro automóvel e a viatura não estava devidamente legalizada, contendo apenas uma declaração da União de Automóveis cedendo o uso ao Tribunal Supremo.

9. Apesar de serem os danos alegadamente irreversíveis, o lesado reparou a viatura e procedeu à sua venda.


10. O Tribunal de primeira instância apurou a responsabilidade do Recorrente pelo acidente em 40%, mas o Tribunal Supremo agravou a sua responsabilidade, piorando o estágio de injustiça a que o processo esteve mergulhado desde a sua instrução.

11. O Tribunal Supremo, ao ter decidido conforme decidiu, foi além do Acórdão da primeira instância, tendo, por este motivo, violado o princípio da proibição da reformatio in pejus.

12. Houve também violação do princípio da igualdade pelas entidades policiais e judiciais na condução do processo.

13. A garantia de um processo penal justo foi igualmente violada, na medida em que existem no processo irregularidades acarretadas desde a instrução, tendo Réu prestado depoimento na presença, apenas, do Digno Procurador, acrescido do facto de não ter sido notificado do despacho de pronúncia.

14. Violou-se ainda o princípio do in dubio pro reo na medida em que o Recorrente foi sentenciado desde a instrução do processo em razão da qualidade do ofendido.

 

Termina pedindo que seja julgado procedente o presente recurso e inconstitucional o Acórdão recorrido.

O Processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da LPC, bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

Nos termos do disposto na alínea a) do artigo 50.º da LPC, conjugado com a alínea b) do n.º 1 do artigo 463.º do Código de Processo Penal Angolano, tem o Recorrente legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por ter ficado vencido no âmbito do Processo n.º 5697/21, que correu os seus termos na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.

 


IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, prolactado no âmbito do Processo n.º 5697/21, que correu os seus termos naquela instância, cabendo por ora verificar se tal decisão ofende os princípios da proibição da reformatio in pejus, do julgamento justo e conforme, da igualdade, bem como o princípio do in dubio pro reo.


V. APRECIANDO

É submetido à apreciação deste Tribunal, o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, sob o Processo n.º 5697/21, que manteve a pena de multa e alterou a reparação arbitrada em 1.ª instância, condenando o Recorrente em prestações alternativas, devendo proceder à reparação total dos danos causados ao veículo do ofendido ou à indemnização por reposição in natura.

Para efeitos da referida alteração, entendeu o Tribunal ad quem que, atento à prova produzida nos autos e o grau de culpa do arguido, este não deveria ter sido condenado apenas na reparação parcial dos danos causados ao lesado, calculados à ordem de 40%, tal como tinha sido determinado pelo Tribunal de 1.ª instância, o que, na perspectiva do Recorrente, posterga o princípio da proibição da reformatio in pejus.

Afirma ainda, o Recorrente, terem sido violados os princípios da igualdade e do in dubio pro reo, por entender ter sido prejudicado em função da qualidade do ofendido/lesado. Além disso, o Recorrente aponta também a ofensa ao princípio do julgamento justo por ter prestado o seu primeiro interrogatório apenas na presença do Magistrado do Ministério Público e não ter sido notificado do despacho de pronúncia.

Assistirá razão ao Recorrente?

Veja-se.

a) Sobre a violação aos princípios da igualdade e do in dubio pro reo

O princípio da igualdade tem assento na Constituição da República de Angola, que no seu artigo 23.º prescreve o seguinte: “1. Todos são iguais perante a Constituição e a lei; 2. Ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão”.

O referido princípio integra o núcleo essencial do direito a julgamento justo e conforme, previsto no artigo 72.º da CRA, e significa, em processo penal, que deve existir, em todas as circunstâncias, um justo equilíbrio entre a acusação e a defesa. Nenhuma das partes deverá ser colocada, em qualquer momento do processo, numa situação de desvantagem face ao seu oponente.

Este, como se sabe, proíbe, na sua faceta negativa, comportamentos discriminatórios e, em termos positivos, obriga a que se trate de modo igual situações idênticas.

Nos presentes autos, afirma o Recorrente ter sido a qualidade do lesado, então Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, factor preponderante para o seu tratamento desigual, sem, no entanto, indicar quais actos praticados no processo ou qual excerto do aresto revidendo considera estar em desconformidade com tal preceito.

Ora, diante desta alegação do Recorrente e sem mais elementos concretos, não se pôde aferir em que medida este direito tenha sido violado no caso vertente. Pese embora a qualidade do lesado determine, em certa medida, uma diferenciação de tratamento, tal como a que ocorre, por exemplo, para prestação de declarações (artigo 219.º do CPP de 1929, em vigor à data dos factos), esta não determina de per si uma diferenciação de tratamento arbitrária, sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes.

O que estas regras processuais específicas visam é, apenas, traçar o perfil formal do Magistrado enquanto sujeito processual, na medida em que se projectam tão-só para o seu modo de intervenção no processo e nunca quanto à valoração dos factos por eles praticados ou quanto ao direito e à possibilidade do arguido defender as suas posições em pé de igualdade.
Neste caso, tal distinção de tratamento não implica necessariamente a criação de uma desvantagem à outra parte, uma vez que surge particularmente justificada por imposição do próprio princípio que proíbe a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais. Como se sabe, os Magistrados Judiciais e do Ministério Público integram uma classe que, pela natureza da sua actividade profissional, deve reger-se por normas específicas, conforme resulta do preâmbulo da Lei n.º 7/94, de 29 de Abril, que aprova o Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público.
Assim, tal como sedimentou a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, o direito à igualdade de tratamento por uma instância jurisdicional, especialmente em questões penais, significa, em primeiro lugar, que tanto a defesa como o Ministério Público terão as mesmas oportunidades para preparar e apresentar as suas alegações durante o julgamento, isto é, defender as suas posições em pé de igualdade. Mas isto não significa que todos os sujeitos processuais devam ter, necessariamente, idêntico tratamento. A resposta do sistema judicial deve ser análoga quando os factos e a situação objectiva sejam similares (ACHPR, Avocats Sans Frontières (on behalf of Gaëtan Bwampamye v. Burundi, Communications nr. 231/99, decisão adoptada durante a 28.ª Sessão Ordinária, de 23 de Outubro a 6 de Novembro de 2000, §26-27, publicada em: http://www1.umn.edu/humanrts/africa/comcases/231-99.html).

Nada consta nos presentes autos que revele que o Recorrente tenha sido ostensivamente prejudicado no seu direito de defesa, em razão da qualidade do ofendido, pelo que improcede, deste modo, este fundamento do recurso.

No que ao princípio do in dubio pro reo diz respeito, assevera o Recorrente, ter sido violado este princípio, na medida em que “foi sentenciado desde a instrução do processo, em razão da qualidade do ofendido”.

O princípio do in dubio pro reo, no campo processual penal, significa que num non liquet este seja valorado pro reo, ou seja, o princípio demanda que o tribunal, caso não logre a prova dos factos que constituem o objecto do processo, dê a acusação como não provada e, consequentemente, decida a favor do arguido.

Este é um princípio intrínseco à prova e a apreciação desta pelo juiz da causa (princípio da imediação), que não tem aplicação prática nas fases preliminares do processo, que se caracterizam, essencialmente, pela sua natureza indiciária, verosímil e preliminar, como o é a Instrução Preparatória.

Segundo tal preceito, quando existam dúvidas sobre as circunstâncias de facto relevantes para a condenação ou absolvição do acusado, o juiz da causa há-de presumir a situação de facto que conduza a uma decisão mais favorável. Portanto, se existem dúvidas sobre a autoria, deve presumir-se que o acusado não foi autor do facto delituoso (v.g. Karl Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, trad. de João Baptista Machado, 10.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2008, p. 103).

Dos autos não se depreende que o Juiz da causa tenha ficado com dúvidas, além do razoável, que justificassem a inserção, no caso vertente, do aludido princípio. Aliás, a matéria de facto dada como assente resultou da prova produzida nos autos, sendo a que o tribunal considerou suficiente para que formasse o seu juízo de convicção quanto à responsabilidade criminal do Recorrente, atento ao princípio da livre apreciação da prova.

Não é propriamente por discordar da decisão que ela esteja necessariamente inquinada por violação do princípio do in dubio pro reo. Portanto, neste quesito, improcede, de igual modo, o alegado pelo Recorrente.
b) Sobre a violação do princípio do julgamento justo e conforme

Para sindicar a decisão revidenda, o Recorrente aponta também a ofensa ao princípio do julgamento justo e conforme, por ter prestado o seu primeiro interrogatório apenas na presença do Magistrado do Ministério Público e pelo facto de não ter sido notificado do despacho de pronúncia.

Quanto a esta questão, importa referir que atendendo à natureza do processo, que é de polícia correcional, não havia lugar ao proferimento do despacho de pronúncia, conforme os artigos 391.º e seguintes do Código de Processo Penal vigente à data dos factos, porquanto, deduzida a acusação pelo Ministério Público, o processo era de imediato submetido a julgamento.
A propósito do julgamento justo e conforme, a jurisprudência desta Corte, firmada no Acórdão n.º 780/2022, página 10, estabelece que Este direito é amplamente garantido pelos artigos 72.º e 174.º, n.º 2, ambos da CRA. O artigo 72.º da CRA dispõe que “A todo o cidadão é reconhecido o direito a julgamento justo, célere e conforme a lei”.
O direito a julgamento justo e conforme está, também, amplamente consagrado em inúmeros instrumentos jurídicos do direito internacional e incorporado no ordenamento constitucional e infraconstitucional da maioria dos países contemporâneos.
Neste sentido, podemos eleger o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) que estabelece que Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei e o artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (1981) que dispõe que 1. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada. Esse direito compreende: a) O direito de recorrer aos tribunais nacionais competentes de qualquer acto que viole os direitos fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas convenções, as leis, os regulamentos e os costumes em vigor; b) O direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente; c) O direito de defesa, incluindo o de ser assistido por um defensor de sua escolha; d) O direito de ser julgado num prazo razoável por um tribunal imparcial. 2. Ninguém pode ser condenado por uma acção ou omissão que não constituía, no momento em que foi cometida, uma infracção legalmente punível. Nenhuma pena pode ser prescrita se não estiver prevista no momento em que a infracção foi cometida. A pena é pessoal e apenas pode atingir o delinquente.
Um julgamento é considerado justo quando são acautelados e respeitados, pelos tribunais, os princípios da imparcialidade, independência e de equidade no tratamento das partes e seus representantes.

Assim sendo, a alegada falta de notificação do despacho de pronúncia, como fundamento da violação do princípio do julgamento justo e conforme à lei, não é de acolher.

c) Sobre a violação do princípio da proibição da reformatio in pejus.

A nossa legislação processual penal, com o propósito de evitar que os arguidos pudessem ser vítimas de uma modificação do objecto da condenação, em sede de recurso, e na esteira de uma longa evolução jurídico-doutrinária, adoptou o princípio da submissão da lei de processo penal à regra da proibição da reformatio in pejus.

O princípio da proibição da reformatio in pejus (do latim “reformatio”, isto é, “mudar'”, “aprimorar”, e “peius”, ou seja, “pior”) “consiste no impedimento imposto ao tribunal ad quem de agravar a pena, quando o recurso é impetrado pelo réu ou pelo Ministério Público, ou por ambos, no interesse exclusivo do arguido, e tem como escopo fundamental evitar que o arguido, perante a possibilidade de ver a sua pena agravada, tenha receio de recorrer da sentença condenatória que considere injusta ou infundada” (Acórdão n.º 593/2019, deste Tribunal, disponível in www.tribunalconstitucional.ao).

Sobre esta regra, dispunha o artigo 667.º do CPP de 1929, em vigor à data da condenação em primeira instância, que, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no interesse exclusivo do primeiro, o tribunal superior não podia modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.

Semelhantemente, o legislador ordinário consagrou tal princípio no artigo 473.º do Novo Código de Processo Penal, que entrou em vigor no decurso do processo no Tribunal Supremo (e foi imediatamente aplicado ao processo por força do disposto no n.º 1 do seu artigo 4.º), que estabelece o seguinte: “quando o recurso de uma decisão condenatória for interposto no exclusivo interesse da defesa, quer o seja pelo arguido, pelo Ministério Público ou por ambos, o Tribunal Superior não pode, em prejuízo de qualquer arguido, ainda que não recorrente: a) aplicar pena ou medida de segurança que possa considerar-se mais grave do que aquela que foi aplicada pela decisão recorrida; b) revogar o benefício da suspensão da execução da pena ou o da sua substituição por outra menos grave; c) aplicar qualquer pena acessória não aplicada na decisão recorrida; d) modificar, de qualquer outro modo, a pena ou a medida de segurança aplicadas em prejuízo do ou dos arguidos (…)”.

Ora, nos presentes autos, para que se afira a alegada ofensa ao referido princípio, importa debruçar-se sobre a natureza jurídica da decisão que se pronuncie sobre a reparação por perdas e danos em processo penal, visto que a proibição de reformatio in pejus foi desenhada, em regra, para sanções com natureza estritamente penal.
Isto é, cumpre apreciar se a reparação arbitrada no caso vertente tem natureza civil ou penal, visto que a alteração da decisão de 1.ª instância operada pelo Tribunal a quo incidiu sobre o segmento do dispositivo que se pronunciava sobre a reparação dos danos causados.
Como é sabido, a prática de uma infracção penal acarreta, em muitos casos, ao lado da lesão ou do perigo para bens jurídicos essenciais da comunidade, uma lesão de direitos civis, patrimoniais e/ou morais de certas pessoas.

Sobre a possibilidade de ressarcimento ou reparação desta lesão, o legislador, no Código de Processo Penal de 1929, consagrou duas modalidades distintas para satisfação da indemnização devida pela prática de um crime. Uma, caracterizada pela imposição da obrigatoriedade de adesão da acção cível ao processo penal, encontrava-se prevista no artigo 29.º que dispunha o seguinte: “o pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um crime, pelo qual sejam responsáveis os seus agentes, deve fazer-se no processo em que correr a acção penal e só poderá ser feito separadamente em acção intentada nos tribunais civis, nos casos previstos no Código”.

No que diz respeito ao disposto neste preceito, que consagrava um sistema de adesão atrelado à máxima da alternatividade ou da opção, a natureza da reparação arbitrada em processo penal não suscita dúvidas acentuadas. Neste âmbito, trata-se de uma verdadeira e própria indemnização por perdas e danos, com natureza exclusivamente cível, na medida em que, para o efeito, o lesado deveria efectuar o pedido, o tribunal estava adstrito à observância dos pressupostos e critérios substantivos e adjectivos da lei civil, no que respeita ao apuramento da responsabilidade civil, à determinação do quantum respondatur, e a decisão penal condenatória que conhecesse do pedido civil constituía caso julgado nos termos em que a lei atribuía essa eficácia às sentenças civis (v.g. Grandão Ramos, Direito Processual Penal: Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, pp. 138 e 139, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1974, p. 543 e ss, e Nunes de Almeida, Natureza da Reparação de Perdas e Danos Arbitrada em Processo Penal, ROAdv, 29, 1969, pp. 6 a 26).

E outra prevista no artigo 34.º do referido Código, que, apesar de não ter sido expressamente referenciada na decisão, foi a que o Tribunal de 1.ª Instância se serviu para condenar o arguido à reparação do dano causado, uma vez que surgiu como efeito automático da pena, sem que o lesado a tivesse peticionado e se tivesse apreciado à sua responsabilidade com base em critérios civis.

Nos termos do disposto neste preceito, o juiz da causa arbitra a reparação por perdas e danos, ainda que lhe não tenha sido requerida, derrogando a regra geral prevista no artigo 29.º, sobre os princípios da disponibilidade e da necessidade do pedido, não sendo, neste caso, a acção civil enxertada ao processo penal.

Com efeito, a reparação arbitrada, sob a égide desta norma, é determinada com recurso aos princípios próprios de direito e processo penal e os critérios para a sua avaliação são distintos dos estabelecidos pela lei civil, tais como o conceito de dano, culpa, ilicitude e imputabilidade, não havendo a possibilidade de transação, de renúncia ao direito ou desistência do pedido, sendo, por força disso, caracterizada como sanção de natureza penal (cf. Grandão Ramos, Código de Processo Penal e Legislação Complementar, Faculdade de Direito- UAN, anotação ao artigo 34.º, p. 25, Jorge de Figueiredo Dias, Ob. Cit., pp. 546 e 547).

Nos termos do §2.º do artigo 34.º do CPP (1929), para o decretamento da reparação ex officio o Tribunal deve ter presente o critério da culpa, no caso, a culpa em sentido penal, com toda a sua extensão, e não o do dano conforme ocorre na indemnização civil, porquanto atende em primeira linha à gravidade da infracção, antes que aos danos patrimoniais e não patrimoniais dela resultantes, e só há lugar à reparação por perdas e danos prevista neste preceito se o réu for condenado, isto é, responsável criminalmente pela infracção que deu causa ao dano.

Além do mais, resultava do próprio Código Penal de 1886, no seu artigo 75.º, n.ºs 2 e 3, que a indemnização ou a reparação por perdas ou danos constituíam um efeito não penal da condenação apenas quando fossem decretadas na sequência de requerimento do ofendido ou dos seus herdeiros.

Atento à fundamentação aposta nos Acórdãos revidendos (fls. 145 a 151 e 180 a 185), é patente que o critério que presidiu o apuramento da responsabilidade do Recorrente face aos danos causados, foi um critério estritamente penal, em que não foram sopesados os princípios próprios da indemnização civil, tampouco verificam-se nos autos resquícios do enxertamento da acção cível ao processo penal para que se apurasse a responsabilidade civil do réu, conforme demanda o artigo 29.º do CPP (1929).

Assim, tendo a reparação arbitrada pelo Tribunal de primeira instância natureza penal e constituir parte da pena pública, que não se identifica nos seus fins e nos seus fundamentos com a indemnização civil, esta integra o segmento da decisão jurisdicional a que o tribunal de recurso está interdito de alterar em prejuízo do arguido, conforme determina o princípio da proibição da reformatio in pejus.

Compulsados os autos, constata-se que o recurso no Tribunal recorrido foi interposto somente pela defesa, no interesse exclusivo do arguido (fls. 152 e 176), tendo o Ministério Público junto daquela instância se pronunciado no sentido da manutenção da decisão de primeira instância (fls. 176 e 177) e, por este motivo, não deveria o Tribunal a quo ter alterado a condenação, em prejuízo do arguido, conforme demandam os artigos 667.º do CPP (revogado) e 473.º do CPPA.
O princípio da proibição da reformatio in pejus tem acolhimento nos n.ºs 1 e 6 do artigo 67.º da CRA, na medida em que “assume uma função garantística do exercício do direito ao recurso, tido em si mesmo como uma garantia do ‘due process law’, e, consequentemente, está estritamente relacionado com o direito de defesa, em face da estrutura acusatória e quase acusatória do processo penal angolano” – v.g. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 516/2018, acessível in www.tribunalconstitucional.ao.

Assim sendo, face ao expendido, procede quanto a este ponto o recurso interposto pelo Recorrente, sendo a decisão revidenda, o Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, inconstitucional, ao agravar a responsabilidade do arguido, condenando-o à reparação total do dano causado ao veículo do lesado, por violação do princípio da proibição de reformatio in pejus.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS, DEVENDO OS AUTOS BAIXAR AO TRIBUNAL SUPREMO, PARA EFEITOS DO N.º 2 DO ARTIGO 47.º DA LPC.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se

Tribunal Constitucional, em Luanda, 16 de Janeiro de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dr. Simão de Sousa Victor