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ACÓRDÃO N.º 873/2024


PROCESSO N.º 1127-C/2023
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)

Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional

I. RELATÓRIO

João dos Santos Agostinho José, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Despacho de 29 de Novembro de 2023, proferido pelo Venerando Juiz Conselheiro Presidente em exercício do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 39/2023, que julgou improcedente a Providência de Habeas Corpus por si requerida.
O Recorrente irresignado com o Despacho, ora, em sindicância, nas suas alegações arguiu, no essencial que:

1. Foi detido a 13 de Dezembro de 2018, por suspeita da autoria do crime de violação, previsto e punível no artigo 393.º do Código Penal (CP), e condenado, a 30 de Dezembro de 2020, pelo Tribunal da Comarca do Cazengo na pena de 8 anos de prisão maior.

2. Encontra-se privado da liberdade, sem decisão condenatória transitada em julgado. Em virtude disso, no dia 31 de Março de 2023, apresentou reclamação ao Conselho Superior da Magistratura Judicial, sem sucesso.

3. Não tendo logrado êxito com a reclamação apresentada, impetrou uma Providência Extraordinária de Habeas Corpus, pedindo a substituição da prisão preventiva pela aplicação da medida cautelar de Termo de Identidade e Residência (TIR).

4. A sua situação preenche os requisitos da prisão ilegal previstos na alínea c) do n.º 4 do artigo 290.º do Código do Processo Penal Angolano (CPPA); a Constituição da República de Angola (CRA) estabelece no n.º 1 do artigo 66.º que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.

5. O Venerando Juiz Conselheiro Presidente em exercício do Tribunal Supremo fundamentou a manutenção da prisão preventiva tendo em atenção, apenas, a gravidade do crime praticado, o que configura uma flagrante violação aos princípios com dignidade constitucional, mormente da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

6. Na Decisão recorrida alude-se que o processo penal e, em especial, o habeas corpus, são instrumentos da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo submetido ao poder estatal.

7. Por outra parte, mesmo reconhecendo que quando se ultrapassa o prazo de prisão preventiva a consequência é a restituição da liberdade de locomoção, o Juiz Conselheiro Presidente em exercício manteve a medida cautelar com base na presunção de culpa, princípio que não tem acolhimento no Estado Democrático de Direito.

8. Menciona-se, igualmente, no Despacho recorrido, que o Habeas Corpus é um expediente processual colocado à disposição dos particulares para reagirem contra o abuso de poder, em virtude de prisão ou detenção ilegal (artigo 68.º n.º 1 da CRA).

9. Todavia, mesmo tendo conhecimento que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, o Tribunal ad quem manteve a prisão preventiva, conforme o previsto no artigo 66.º da CRA.

10. Entretanto, não há como sustentar ou fundamentar a existência de um possível conflito ou colisão de interesses, pois não há um juízo de certeza formalizado em relação à culpa do arguido.

11. A Decisão revidada carece de objectividade e pragmatismo, no entanto ouvido o Ministério Público, este promoveu que fosse dado provimento ao Habeas Corpus tendo em conta que os prazos se achavam ostensivamente excedidos.

12. A jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional sustenta que, o provimento do pedido de Habeas Corpus, depende da verificação dos pressupostos do artigo 290.º do CPPA.

13. A prisão preventiva deixa de ser justificável, aliás, na República de Angola, como Estado Democrático de Direito, essa medida cautelar não é regra, constitui excepção, como, também, ensina Jorge de Figueiredo Dias.

14. Neste sentido, não há dúvida que a manutenção da prisão preventiva fere o direito fundamental à liberdade física e a segurança pessoal (artigo 36.º), bem como as disposições normativas previstas nos artigos 28.º e 68.º, todos da CRA e na alínea c) do n.º 4 do artigo 290.º do CPPA.
Termina pedindo que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ordenada a substituição da medida de prisão preventiva ficando o Recorrente a aguardar pelos ulteriores termos do processo em liberdade.
O processo foi ao Ministério Público que promoveu a seguinte vista, em resumo:
(…) compulsados os autos, constata-se que, na verdade o Recorrente foi detido no dia 13 de Dezembro de 2018, situação carcerária que perdura há mais de 5 anos sem trânsito em julgado da condenação.
Verificando-se o excesso de todos os prazos estabelecidos nos n.ºs 1, 2 e 4 do artigo 283.º do CPPA, há que concluir, sem dúvidas, que a manutenção da prisão do Recorrente é ilegal.
Qualquer fundamentação fora do estabelecido neste artigo não justifica a prisão preventiva do cidadão, por se tratar de um direito protegido por uma norma fundamental consagrada na CRA.
Nestes termos, o Ministério Público inclina-se pelo provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e fundamentos previstos na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola.
Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos, nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme o estatuído no § único do artigo 49.º da LPC conjugado com o n.º 1 do artigo 294.º do Código do Processo Penal Angolano (CPPA). Por isso, o Tribunal Constitucional tem competência para apreciar este recurso.

III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade (…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.
O Recorrente intentou uma Providência de Habeas Corpus, no Tribunal Supremo, requerendo a sua restituição à liberdade. Porém, não tendo sido atendido favoravelmente tal pedido, tem legitimidade para interpor o presente recurso.

IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso é a verificação da constitucionalidade do Despacho prolactado pelo Venerando Juiz Conselheiro Presidente em exercício do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 39/2023, que julgou improcedente a Providência de Habeas Corpus requerida pelo Recorrente, isto é, saber se a Decisão violou princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de Angola.

V. APRECIANDO
No caso em tela, o Recorrente coloca em crise o Despacho acoimado que julgou improcedente a Providência de Habeas Corpus que impetrou no Tribunal ad quem por alegada violação do direito fundamental à liberdade física e a segurança pessoal, consignado no artigo 36.º, bem como nos artigos 28.º e 68.º, todos da CRA e a alínea c) do n.º 4 do artigo 290.º do CPPA.

A questão de fundo objectada pelo Recorrente circunscreve-se à medida de coacção pessoal, de natureza cautelar-prisão preventiva- que lhe foi aplicada, regulada nos artigos 248.º e 260.º ambos do CPPA.

Hoje é cada vez mais actual a compreensão sobre a necessidade de se debelar situações que periguem a efectividade de direitos catalogados fundamentais. Ora, as prisões cautelares, também, conhecidas como prisões processuais, ocorrem antes de uma sentença penal transitar em julgado, são acessórias ao processo penal e o seu provimento deve guiar-se em obediência ao princípio da jurisdicionalidade. De modo a evitar-se perturbações processuais, pode o julgador determinar restrições à liberdade individual do arguido, antes do trânsito em julgado da Decisão, sem prejuízo do princípio da presunção da inocência e da plena conformação dos princípios da excepcionalidade, provisoriedade e da transitoriedade.

Na ordem jurídica angolana, o normativo do artigo 68.º da CRA prescreve que o interessado pode requerer, perante o Tribunal competente, a Providência de Habeas Corpus, em virtude de prisão ou detenção ilegal. Na mesma esteira, dispõe o artigo 290.º do CPPA que o habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, e que visa reagir de modo imediato e urgente contra o abuso de poder em virtude de detenção ou prisão, efectiva e actual, ferida de ilegalidade, por qualquer dos fundamentos mencionados no n.º 4.
Do cotejo de preceitos constitucionais e infraconstitucionais acima aludidos, ajuíza-se que o processamento do Habeas Corpus imbrica na prévia apreciação e observância dos requisitos legais estatuídos quer na CRA, quer na lei, designadamente no n.º 4 do artigo 290.º do CPPA, que estabelece os critérios e pressupostos da sua materialização.
Na mesma perspectiva, enfatiza-se Vasco A. Grandão Ramos que assinala: a prisão preventiva é uma medida de coacção processual que consiste na privação da liberdade de um arguido para o colocar à disposição da entidade encarregue da investigação criminal e da instrução processual ou de um juiz, na fase judicial, sob determinadas condições e requisitos, e obedecendo aos prazos estabelecidos (Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Colecção Faculdade de Direito, U.A.N., 3.ª Edição, p. 267).
Sucede, porém, que, estando em tramitação o recurso ordinário do processo principal na 2.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, constata-se, através do ofício datado de 16 de Fevereiro de 2024, que o Recorrente foi julgado e absolvido da autoria do crime de que vinha acusado, por Acórdão prolactado aos 30 de Novembro de 2023, tendo sido, consequentemente, ordenada a sua soltura aos 11 de Janeiro de 2024 (fls. 75 a 81).

Cabe frisar que, no caso sub judice, o Recorrente pretendia com a Providência Extraordinária de Habeas Corpus, ver a sua liberdade restituída, enquanto bem jurídico fundamental que, por inércia das instâncias de recurso, lhe foi coarctado em arrepio aos ditames legais que regulam o direito fundamental à liberdade catalogado na Constituição da República de Angola.

Neste contexto, o princípio da certeza e da segurança jurídicas postulado no artigo 177.º da CRA que deve nortear à actuação dos Tribunais no decurso da apreciação e composição de litígios, afigura-se mitigado face à tutela de valores jurídicos fundamentais amparados pela ordem constitucional. Como tal, é necessário que a administração da justiça em nome do Povo granjeie cada vez mais a confiança dos cidadãos em prol da concretização do Estado de Direito.
Destarte, o desiderato do Recorrente à restituição da liberdade foi logrado com a decisão da sua absolvição inserta no Acórdão do Tribunal Supremo que julgou o processo principal do recurso. Pelo que, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável subsidiariamente, ex vi, do artigo 2.º da LPC, verifica-se, a inutilidade superveniente da lide.

Sobre esta matéria, Lebre de Freitas assevera que a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide ocorre quando por um facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida (Código de Processo Civil, Anotado, Volume I, 3.ª Edição, p. 546).

Em face do exposto, o Tribunal Constitucional declara a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ex vi do artigo 2.º da LPC.

Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DECLARAR EXTINTA A INSTÂNCIA, POR INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE, NOS TERMOS DA ALÍNEA E) DO ARTIGO 287.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique-se.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 20 de Fevereiro de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Relatora)
Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva