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ACÓRDÃO N.º 877/2024

 

PROCESSO N.º 1075-C/2023

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Esteves Domingos Zunguila, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 05/22 da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda, datado de 31 de Outubro.
O Recorrente foi julgado e condenado em primeira instância, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão maior pelo crime de violação na forma frustrada p.p. pelos artigos 393.º, 398.º e 104.º, todos do Código Penal; no pagamento de Kz. 70 000,00 (setenta mil kwanzas) de imposto de justiça e no pagamento de Kz. 300 000,00 (trezentos mil kwanzas) a título de indemnização à ofendida, Jacira Rodrigues da Silva, por danos não patrimoniais, cujo processo correu trâmites junto da 13.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Belas, sob o n.º 166/21-C;
Não se conformando com a decisão, o Recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Luanda, que alterou a condenação para o crime de agressão sexual, reduzindo a pena aplicada para 2 anos de prisão.
Ainda assim, insatisfeito com a decisão, o Recorrente interpôs recurso para esta Corte, tendo apresentado as suas alegações onde, em síntese, invoca o seguinte:
1. Em sede do Tribunal a quo, foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de violação na forma frustrada p. e p. pelos artigos 393.º, 398.º e 104.º, todos do Código Penal, em vigor a data dos factos; no pagamento de Kz. 70 000,00 (setenta mil kwanzas) de imposto de justiça e no pagamento de Kz. 300 000,00 (trezentos mil kwanzas), a título de indemnização à ofendida.

2. Da decisão, apresentou recurso para o Tribunal da Relação, com fundamento no facto de que o crime de que vem acusado, julgado e condenado ter sido descriminalizado ou despenalizado, isto é, não vir tipificado no novo Código Penal, sendo certo que se socorrendo ao princípio da lei mais favorável, dever-se-ia ter aplicado a Lei n.º 38/20 que aprova o Código Penal em vigor e, não o Código Penal de 1886, por aquele se mostrar desfavorável.

3. Com efeito, o Tribunal da Relação atendeu o vertido na promoção do Digno Magistrado do Ministério Público junto daquela Corte, em que, no caso concreto, se deve aplicar a lei mais favorável para o arguido.

4. Tendo-o feito, o Tribunal da Relação aplicou uma pena de 2 anos de prisão, qualificando de forma diversa o comportamento do arguido, ora Recorrente, para o crime de agressão sexual p.p. pelo artigo 182.º do Código Penal em vigor.

5. É convicção da defesa que a qualificação feita pelo Tribunal da Relação, ao comportamento do Recorrente, não está conforme aos factos narrados nos autos nem a prova produzida.

6. Com base na qualificação feita pelo Tribunal ad quem, o Recorrente apresentou a sua reclamação junto daquela Corte, arguindo irregularidades nos termos do artigo 144.º do Código de Processo Penal, pelo facto de não ter sido notificado da nova qualificação feita pelo Tribunal da Relação, o que configura ilegalidade.

7. Com a qualificação diversa dos factos feita pelo Tribunal ad quem, alterou-se, também, a culpabilidade e grau de ilicitude do Recorrente, julgando-o mais culpado, pois que o crime de violação na sua forma frustrada, de que o Recorrente foi julgado e condenado pelo Tribunal a quo, é punido com uma penalidade de 2 a 8 anos de prisão, e lhe foi aplicada a pena concreta de 2 anos e 6 meses; em sede do Tribunal ad quem, o comportamento do aqui Recorrente foi qualificado como crime de agressão sexual, que é punido com uma penalidade abstrata de 6 meses a 4 anos de prisão e, lhe sido aplicada uma pena concreta de 2 anos, elevando-se, assim, o grau de culpabilidade e de ilicitude do Recorrente para a metade da pena máxima, o que não aconteceu no Tribunal a quo, sendo certo que, em sede do Tribunal ad quem, teria sido aplicada a lei mais favorável ao arguido.

8. A qualificação diversa feita pelo Tribunal ad quem, e a não aplicação do princípio da lei mais favorável ao arguido, no Acórdão recorrido, violou ostensiva e sistematicamente os seguintes princípios: a) do contraditório, b) da legalidade, c) da justiça, d) de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, e) da igualdade, f) da independência dos tribunais g) da imparcialidade, h) do acusatório, i) da livre apreciação das provas, j) do julgamento justo e conforme, k) do in dubio pro reo e l) da defesa dos direitos humanos, previstos nos artigos 2, n.º 2, 6.º, 23.º, 26, 27.º, 28.º, 29.º, 56.º, 57.º, 58.º, 63.º, alínea d) do 67.º, n.º 3 do 72.º, 174.º, n.º 2 do 175.º 177.º n.º 1, 185.º, n.º 2, e as alíneas a) e c) do 186.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA), bem como a alínea d) do artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Destarte, o Recorrente pugna pelo provimento do recurso e revogação do Acórdão recorrido, porque inconstitucional.
O processo foi à vista do Digníssimo Magistrado do Ministério Público que se pronunciou no sentido de ser negado provimento ao recurso porquanto, o Acórdão recorrido ao alterar o tipo legal de crime, previu um regime mais brando, tendo com isto, aplicado uma pena inferior àquela em que o Recorrente, então arguido, foi condenado em sede do Tribunal a quo, levando em conta as circunstâncias relativas ao facto e ao agente, respeitando, todavia, os limites do princípio da livre apreciação da prova, não violando, assim os princípios invocados pelo Recorrente.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar, para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), tendo sido esgotada a cadeia de recursos ordinários.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, (LPC), têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional "as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário".
O Recorrente é arguido no Processo n.º 05/22, que correu trêmites na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda, tendo sido proferida decisão contra si, pelo que tem direito de interpor recurso, segundo dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 463.º do CPPA.

IV. OBJECTO

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto o Acórdão prolactado no âmbito do Processo n.º 05/22 da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal da Relação de Luanda, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não os princípios ou direitos constitucionalmente consagrados, alegados pelo Recorrente.

 

V. APRECIANDO

Não obstante a indicação de toda a panóplia de princípios e direitos consagrados na Constituição da República de Angola suprareferenciados, o Recorrente não fundamentou, para a maioria dos princípios e direitos alegadamente violados, em que medida o Acórdão recorrido violou os referidos normativos. Assim, e porque não cabe a esta Corte conjecturar sobre o alcance da violação dos referidos normativos no Acórdão Recorrido, a apreciação cingir-se-á àqueles, efectivamente, concretizados, mormente, os princípios do contraditório, da legalidade e do in dubio pro reo, tendo em conta a limitação do Tribunal ao pedido e a causa de pedir, previsto no n.º 1 do artigo 3.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.
Ora, as alegações do Recorrente fundam-se, na tese de que tais princípios foram violados pelo facto de ter sido condenado, em sede do Tribunal a quo, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão maior pelo crime de violação na forma frustrada p.p. pelos artigos 393.º, 398.º e 104.º, todos do Código Penal, vigente à data dos factos; no pagamento de Kz. 70 000,00 (setenta mil kwanzas) de imposto de justiça e no pagamento de Kz. 300 000,00 (trezentos mil kwanzas) a título de indemnização à ofendida.
Inconformado com a decisão, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Luanda, com fundamento no facto de que o crime de que vem acusado, julgado e condenado ter sido descriminalizado ou despenalizado, isto é, não estar tipificado no Código Penal em vigor, sendo certo que, se socorrendo do princípio da lei mais favorável, dever-se-ia ter aplicado a Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, que aprova o Código Penal em vigor e não o Código Penal de 1886, por se mostrar desfavorável.
Tendo o processo sido submetido à vista do Digno Magistrado do Ministério Público junto daquela Corte, o mesmo alegou que o Tribunal a quo, não observou o princípio da aplicação da lei penal mais favorável, expressamente previsto no n.º 2 do artigo 2.º do Código Penal em vigor e, promoveu que a condenação do arguido fosse feita à luz da lei nova, isto é, a luz do n.º 1 artigo 182.º do Código Penal, e que o arguido, ora Recorrente fosse condenado numa pena inferior a 2 (dois) anos.
Neste sentido, o Tribunal da Relação de Luanda julgou procedente o recurso e condenou o Recorrente a uma pena concreta de 2 (dois) anos de prisão, qualificando o seu comportamento como crime de agressão sexual p.p. pelo artigo 182.º do Código Penal em vigor.
O Recorrente, como se referiu anteriormente, não se conformando com a decisão, interpôs o presente recurso à esta Corte.
Hic et nunc, resta saber in casu se as normas e os princípios alegados pelo Recorrente foram, efectivamente, violados no Acórdão recorrido, sendo que a sua fundamentação é a violação de um preceito que afecta, grandemente, normas constitucionais, sabendo que actus curiae neminem gravabit.
Assim sendo, cumpre analisar:

a) Sobre a alegada violação ao Princípio do Contraditório

O princípio do contraditório, previsto no n.º 1 do artigo 67.º e no n.º 2 do artigo 174.º, ambos da CRA, encontra raízes em princípios constitucionais como o direito de acesso ao direito e à justiça, o direito a um processo equitativo e justo e a tutela jurisdicional efectiva, que proíbem as situações de indefesa ou violações de princípios de igualdade ou proporcionalidade, ínsitos no direito fundamental de acesso aos tribunais, que proíbe a prolacção de decisões surpresa e garante a participação efectiva dos litigantes no desenvolvimento de toda a lide, de forma a poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
Sobre a matéria em causa, a doutrina pronuncia-se, de modo explícito, como sustenta Adlezio Agostinho “o princípio do contraditório garante que o tribunal deve assegurar, durante todo o processo, um estatuto substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso dos meios de defesa e na aplicação de comunicações ou sanções processuais. As partes devem, pois, possuir os mesmos poderes, direitos, ónus e deveres perante o Tribunal. O direito do contraditório estipula a regra que nenhum conflito é decidido sem que a outra parte seja dada a possibilidade de deduzir oposição” (Manual de Direito Processual Constitucional “Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre Garantias Constitucionais”, AAFDL, 2023, p. 403).
No mesmo sentido concebe Albertino Morais A. António que “o princípio do contraditório impõe, em geral, que seja dada oportunidade de intervenção efectiva a todos os participantes no processo, com finalidade de permitir ao juiz uma decisão imparcial e fundada, atendendo às razões de ambas as partes litigantes” (Manual de Direito do Contencioso Administrativo Angolano, Vol. I, Opus Academius, 2023, p. 154).
No casu sub judice, sustenta o Recorrente que tal princípio foi violado pelo facto de não ter sido notificado da nova qualificação jurídica feita pelo Tribunal ad quem. Tal sustentação carece de fundamento na medida em que, como refere Vasco Grandão Ramos, que a imposição ou obrigatoriedade de notificação impende ao Ministério Público junto do tribunal superior, referente ao instituto da proibição da reformatio in pejus que ao ser-lhe dada vista do processo, se pronunciar pela agravação da pena, depois de aduzidos fundamentos será, necessariamente, notificado o réu para responder no prazo de 8 (oito) dias, de modos que se realize a justiça material, no caso de aplicação de uma pena mais grave.
O princípio do contraditório assume-se, nesta dimensão, como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de toda a lide e, ao Recorrente, nunca lhe foi coarctado o exercício de tal princípio, não sendo, por isso, acolhida por esta Corte, a alegada violação no Aresto recorrido.

 

b) Sobre a violação ao Princípio da Legalidade

As alegações do Recorrente fundam-se no facto de ter sido violado o princípio da lei mais favorável, visto que em sede do tribunal a quo, foi punido com a pena prisão de 2 anos e 6 meses pelo crime de violação na forma frustrada p. e p. pelos artigos 393.º, 398.º e 104.º, todos do Código Penal; no pagamento de Kz. 70 000,00 (setenta mil kwanzas) de imposto de justiça e no pagamento de Kz. 300 000,00 (trezentos mil kwanza) a título de indemnização à ofendida, tendo tal tipo legal de crime uma moldura penal abstrata de 2 a 8 anos de prisão, em sede do Tribunal ad quem, foi qualificado o comportamento do aqui Recorrente, no tipo legal do crime de agressão sexual, por força da revogação do Código Penal de 1886, em vigor à data dos factos, o qual é previsto no CPA e punido com uma penalidade abstrata de 6 meses a 4 anos de prisão e, neste âmbito, ao Recorrente ter sido aplicada uma pena concreta de 2 anos, elevou o seu grau de culpabilidade e de ilicitude para a metade da pena máxima.
Neste sentido, o fundamento doutrinário assenta no princípio jurídico-constitucional da legalidade (nullum crimen, nulla poena sine lege), imposta pela necessidade de garantir aos indivíduos contra possíveis arbitrariedades do poder do Estado (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, p. 96).
Ou seja, “O princípio da legalidade revela, a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador (Paulo Mascarenhas, Manual de Direito Constitucional, Salvador, 2008, p. 53)”.
“A sua violação pode dar origem a desvalores diversos consoante o que esteja determinado por lei; embora se trate de um princípio constitucional, o seu objecto leva a que se lhe reconheça uma configuração particular. Com efeito a violação de qualquer norma conduz ao desrespeito pelo princípio constitucional” (Dinamene de Freitas, O Acto Admistrativo Inconstitucional, Delimitação do conceito e subsídios para um contencioso constitucional dos actos administrativos, Coimbra, 2010, p. 220).
Nota-se que o que estará em causa, supostamente, é a não aplicação de uma norma penal sobre a aplicação da lei mais favorável ao arguido, restringindo, deste modo, o seu direito e diminuição do alcance e do seu conteúdo essencial.
No domínio da lei antiga, o comportamento do arguido, ora Recorrente, é tipificado como crime de violação na forma frustrada p.p. pelos artigos 393.º, 398.º e 104.º, todos do Código Penal 1886, já no domínio da lei nova, o seu comportamento é tipificado como um crime de agressão sexual p.p. pelo artigo 182.º do Código Penal em vigor, sendo esta mais favorável ao Recorrente.
Importa realçar que o princípio que rege a aplicação da lei penal no tempo é o da retroactividade da lei penal mais favorável, consagrado, ipsis verbis, no n.º 4 do artigo 65.º da CRA que estabelece o seguinte: “ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais grave do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”.
Como sustentam Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes “A Constituição consagrou o princípio da aplicação da lei penal mais favorável. Este princípio compreende duas vertentes: a) que deixe de ser considerado crime o facto que a lei posterior venha a despenalizar; e b) que um crime passe a ser menos severamente punido do que era no momento da sua prática, se lei posterior sancionar com pena mais leve” (Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, Maia, 2014, p. 382).
A retroactividade da lei penal mais favorável faz-se, em regra, derivar da necessidade de assegurar a justificação da pena no momento da sua aplicação e execução, mormente considerados os seus fins sendo a sua aplicação mais favorável ao arguido.
No caso concreto, o Aresto sob sindicância alterou o tipo legal de crime para outro que prevê um regime mais brando e aplicou uma pena inferior àquela em que o Recorrente foi condenado em sede o Tribunal ad quem.
Com efeito, não se verifica no Acórdão recorrido a violação dos princípios alegados pelo Recorrente, tendo o julgamento sido realizado nos marcos da equidade e da justiça.

c) Da alegada violação do princípio in dubio pro reo

Na óptica do Recorrente, da convicção feita pelo Tribunal ad quem, supostamente elevou o seu grau de culpabilidade e de ilicitude ao qualificar diversamente a sua conduta e não ter conhecido o vício que manteve a sua condenação, apesar da insuficiente ou deficiente subsunção jurídico-penal dos factos aos elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime.
Deste modo, deve-se partir da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, ou seja, não pode abster-se pela condenação ou pela absolvição, existindo uma obrigatoriedade da decisão, e determina que, na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova produzida, o arguido seja absolvido.
O princípio in dubio pro reo, consagrado na parte final do n.º 1 do artigo 65.º da CRA, tem como substrato a tese de que, sempre que a prova produzida seja insuficiente e não conduza à formulação de um juízo de certeza sobre a existência da infracção ou de que foi o arguido que cometeu, deve ser absolvido (Vasco Grandão Ramos, Direito Processual Penal, Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, p.79).
Dito doutro modo, se a prova produzida não é suficiente para formar a convicção do julgador no sentido da culpa ou da inocência do arguido, então este deve ser absolvido, não tendo a presunção da sua inocência sido ilidida, sendo certo que não lhe cabia a ele, arguido, provar a sua inocência.
Assim, muitas das questões suscitadas pelo Recorrente, especificadamente, afirmar que o Tribunal a quo qualificou a sua conduta com um grau baixíssimo de ilicitude bem como de culpabilidade e, em sede do Tribunal ad quem, considerou-se a sua culpabilidade e ilicitude elevadas, não cabem no escopo de apreciação desta Corte.
Aliás, não se destacando razões que obstem o conhecimento do objecto do recurso, importará circunscrever que não é apanágio deste Magno Tribunal entrar no mérito da causa e, como bem assevera Carlos Blanco de Morais “O Tribunal Constitucional deve abster-se de julgar, ou mesmo de se pronunciar sobre o mérito da questão de fundo que está a ser julgada no processo principal, já que lhe cumpre, apenas, administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional. Não opera, deste modo, como uma instância suprema de mérito, ou tribunal de super-revisão (Justiça Constitucional, Tomo II, O Direito do Contenciosa Constitucional, Coimbra, 2ª Ed, 2002, p. 619).
Nestes termos, não se verifica no Acórdão recorrido a violação do princípio supra invocado pelo Recorrente.
Assim sendo, face ao exposto, esta Corte constata que, contrariamente ao que o Recorrente alega, a decisão do Tribunal recorrido, não ofende os princípios da legalidade, do contraditório, bem como do in dubio pro reo, previstos no artigo 6.º, no n.º 1 do artigo 67.º e na parte final do n.º 1 do artigo 65.º, todos da CRA.
Nestes termos,

DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE, POR ENTENDER QUE O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO OFENDE PRINCÍPIOS NEM VIOLA DIREITOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 05 de Março de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi (Relator)