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ACÓRDÃO N.º 879/2024

 

PROCESSO N.º 1086-B/2023

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

António João Soares Pinto, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 4217/20 da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, datado de 01 de Setembro.
O Recorrente foi julgado e condenado em sede de primeira instância, na pena de 3 (três) anos de prisão maior pelo crime de violação p.p. pelo artigo 394.º, do Código Penal; no pagamento de Kz. 50 000,00 (cinquenta mil kwanzas) de taxa de justiça; no pagamento de Kz. 250 000,00 (duzentos e cinquenta mil kwanzas) a título de dote e no pagamento de Kz. 250 000,00 (duzentos e cinquenta mil kwanzas) a título de indemnização à ofendida Margareth Bebiana Prazeres, menor, de 13 anos de idade, à data dos factos, por danos não patrimoniais, cujo processo correu trâmites junto da 2.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial do Kwanza Sul, sob o n.º 52/16-B.
Não se conformando com a decisão, o Requerente interpôs recurso para o Tribunal Supremo, tendo o mesmo sido admitido, porque tempestivo.
Submetido o processo a julgamento, em sede do Tribunal ad quem, foi confirmada a pena aplicada pelo Tribunal a quo ao arguido, ora Recorrente.
Entretanto, não se conformando com aquela decisão, o Recorrente interpôs recurso a esta Corte, tendo apresentado as suas alegações onde, em síntese, invoca o seguinte:
1. O direito penal é considerado um direito de última ratio, logo, não pode ser aplicado com base em conjecturas, probabilidades ou presunções, mas sim com base num juízo de certeza, em homenagem aos princípios da legalidade, igualdade, da presunção de inocência, da verdade material e outros com dignidade constitucional.

2. Não constam dos autos provas produzidas contra o arguido, nem tão pouco prova material que foi produzida nos autos que indiciam o Recorrente como autor do crime de que vem acusado.

3. O Tribunal a quo não sustentou a sua decisão nas provas produzidas quer em instrução preparatória, quer em julgamento e, uma vez interposto o recurso para o Tribunal Supremo, este não só não corrigiu os erros e irregularidades praticadas pelo Tribunal a quo, como retomou os mesmos erros, mesmo sabendo que as alegações foram contraditórias.

4. Os tribunais não podem concluir que o Recorrente cometeu o crime de violação, se da prova produzida não ficou determinada a data da ocorrência dos factos.

5. O Tribunal a quo nunca teve interesse na descoberta da verdade material.

6. O que se assistiu foi uma manipulação dos factos, por parte da ofendida, bem como da declarante, que distorceram os factos com suporte do Ministério Público, numa tentativa de imputar toda a responsabilidade ao Recorrente.

7. O Meritíssimo Juiz a quo apenas considerou as declarações apresentadas pela ofendida e as declarantes, apesar das contrariedades, em detrimento das do Recorrente.

8. As provas carreadas nos autos não são bastantes para incriminar o Recorrente que, inclusive, sempre tratou a vítima como se de sua filha se tratasse.

9. O Tribunal Supremo não observou e nem considerou as declarações apresentadas pelo arguido no seu interrogatório em sede de audiência de julgamento.

O Recorrente termina requerendo o provimento do recurso e a revogação do Acórdão recorrido porque inconstitucional, por violação dos princípios da verdade material, da presunção de inocência, bem como do in dubio pro reo, devendo, por isso, o Recorrente ser colocado em liberdade.
O processo foi à vista do Digníssimo Magistrado do Ministério Público que se pronunciou no sentido de ser negado provimento ao recurso, porquanto, o Acórdão recorrido não violou os princípios e preceitos constitucionais invocados pelo Recorrente.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), tendo sido esgotada a cadeia de recursos ordinários.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, (LPC), têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional "as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário".
O Recorrente é arguido no Processo n.º 4217/20 da 3.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, tendo sido proferida decisão contra si, pelo que tem direito de interpor recurso, segundo dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 463.º do CPPA.

IV. OBJECTO

O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem por objecto o Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 4217/20 da 3ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não as normas ou princípios constitucionalmente consagrados, alegados pelo Recorrente.

V. APRECIANDO

O presente recurso resulta do facto de o Tribunal Supremo ter mantido a decisão condenatória prolactada pelo Tribunal a quo, já devidamente recortada no Relatório deste Acórdão, estribando a sua intenção na pretensa violação dos princípios da verdade material, da presunção de inocência, bem como do in dubio pro reo, previstos nas disposições combinadas pelo n.º 4 do artigo 65.º e n.º 2 do artigo 67.º, todos da CRA.
Grosso modo todos os argumentos carreados pelo Recorrente, para sustentar a violação de preceitos e princípios constitucionalmente consagrados, estão ancorados na ausência de prova bastante relativa à prática do crime em tela, derivando de tal facto a violação dos princípios constitucionais elencados.
Assistir-lhe-á razão?
Ao nos debruçarmos sobre o processo penal, são incontornáveis, por constituírem os princípios basilares deste ramo do direito, nomeadamente, o princípio da verdade material, o princípio da livre apreciação da prova e o princípio do in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência.
Neste sentido, quanto ao primeiro princípio, ensina João António Raposo que “o princípio da verdade material decorre dos fins e das funções constitucionais do direito penal, na medida em que é condição indispensável de realização da finalidade de protecção de bens jurídicos fundamentais, que o Estado se compromete a assegurar, em última medida através do direito penal, que a decisão final se funde numa culpa efectivamente demonstrada, ou seja, a culpa tem que ser demonstrada no processo penal. A pena só é legítima se for indispensável para assegurar a protecção de bens jurídicos fundamentais; mas, por outro lado, só terá essa potencialidade se apenas se punirem aqueles em relação aos quais se tenha efectivamente demonstrado terem realizado os pressupostos da sanção” (O Princípio da Verdade Material, Um Contributo para a sua Fundamentação Constitucional, In Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, em comemoração do 70.º Aniversário, org. Augusto Silva Dias [et. al.], Coimbra: Almedina, 2009, p. 837).
Ora, a demonstração inequívoca de tal culpabilidade deverá ser sustentada, por meios de prova idóneos, sendo que, constituem meios de prova o conjunto de elementos mediante os quais o Juiz toma conhecimento da veracidade ou não dos factos trazidos a sua apreciação, sendo estes indispensáveis para a formação da convicção do Juiz e a consequente condenação ou não do arguido.
No processo de formação da convicção do julgador, a audiência de discussão e julgamento assinala um momento de particular relevância, pois que, permite ao Juiz, por conta do princípio da imediação, um contacto directo e pessoal com as pessoas que perante ele depõem, cujos depoimentos o mesmo irá valorar e servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Essa relação de proximidade entre o Tribunal de 1.ª instância e os meios de prova confere ao julgador os meios próprios e adequados para valorar a credibilidade dos depoentes e oferecem as condições necessárias para que este forme a sua convicção sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevem para a sentença, no âmbito do princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
De realçar que “o princípio da livre apreciação da prova não pode de modo algum querer apontar para a uma apreciação motivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo (Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, Coimbra, 1984, pp. 202-203).
Com isto, pretende-se dizer que sobre o Tribunal impende o dever de esclarecer, mesmo fora dos parâmetros da acusação e da defesa, os factos que lhe são trazidos a julgamento, com alicerces necessários para a sua decisão, baseando nas provas ao seu dispor e, no caso concreto, constam dos autos prova bastante e inequívoca, aliadas às circunstâncias em que os factos ocorreram, que permitiram sustentar um juízo de certeza pelo Tribunal a quo, confirmado em recurso pelo Tribunal Supremo, com a prolacção do Acórdão recorrido.
Quanto ao princípio do in dubio pro reo, com consagração constitucional no n.º 4 do artigo 65.º da CRA, trata-se de um corolário lógico do princípio da presunção de inocência, estatuído no n.º 2 do artigo 67.º da CRA. Neles se encerra o desígnio de que, a condenação deve basear-se num acervo de factos provados, de modos a não subsistirem dúvidas sobre a prática do crime e sobre a identidade do seu perpetrador.
Sobre o referido princípio, jurisprudência desta Corte, refere que, “a doutrina dominante tem entendido que do princípio da presunção de inocência, decorre um outro, conhecido pelo brocardo latino in dubio pro reo. Grandão Ramos alude que o referido princípio traduz uma regra processual imposta pelo sentimento de justiça, a consciência jurídica dos povos e a moral social. É uma regra de civilização e vem significar que a infracção só pode dar-se como provada com «prova bastante», prova que não deixe dúvidas, doutro modo, o acusado deve ser absolvido. É a convicção do juiz, formada a partir da prova produzida no processo, que o leva a determinar se o réu é inocente ou culpado” (Acórdão n.º 775/22, in www.tribunalconstitucional.ao).
Salienta-se ainda, que os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, devem ser sempre coadunados com o princípio da livre apreciação da prova, significando isso que o julgador, de acordo com as regras da experiência comum, pode valorar toda a prova que lhe seja apresentada, extraindo dela, o devido valor jurídico.

Destarte, o acervo probatório coligido nos autos, tornou indemne de dúvidas a convicção de que, a decisão recorrida, teve em atenção os princípios da presunção de inocência, do in dubio pro reo e da livre apreciação da prova, à guisa de exemplo, a fls. 108-110 dos autos, o Tribunal Supremo na decisão recorrida fez uma apreciação dos factos e subsumiu-os às normas vigentes sobre a matéria, pelo que, foi o Recorrente condenado pela prática do crime de violação, cujo mérito ou demérito não cabe na apreciação desta Corte Constitucional.
Assim sendo, face ao exposto, esta Corte constata que, contrariamente ao que o Recorrente alega, a decisão do Tribunal recorrido, não ofendeu preceitos constitucionais, nem violou os princípios da verdade material, da presunção de inocência, bem como do in dubio pro reo.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE, POR SE ENTENDER QUE O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO OFENDE PRINCÍPIOS NEM VIOLA DIREITOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 06 de Março de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) (Declarou-se impedida)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi (Relator)