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ACÓRDÃO N.º 881/2024

 

 

PROCESSO N.º 1124-D/2023

Processo de Fiscalização Abstracta Sucessiva
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

 

I. RELATÓRIO

O Grupo Parlamentar da UNITA, com os demais sinais de identificação especificados nos autos, intentou no Tribunal Constitucional, a 20 de Dezembro de 2023, com fundamento nas disposições combinadas da alínea a) do n.º 2 do artigo 181.º; alínea a) do artigo 227.º e do artigo 230.º, todos da Constituição da República de Angola (CRA) e do artigo 26.º e seguintes, da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho - Lei do Processo Constitucional (LPC), a presente acção de Fiscalização Abstracta Sucessiva, para a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional (RAN), aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho - Lei Orgânica que aprova o Regimento da Assembleia Nacional, por considerar que confere ao Plenário da Assembleia Nacional, poderes conflituantes aos estabelecidos nos números 3, 4 e alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA.

Para a satisfação da sua pretensão, o Requerente invoca a inconstitucionalidade parcial, do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional, por haver inconformidade com os números 3, 4 e alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA e, para tanto, invocou, no essencial, o seguinte:

1. “A lei suprema confere a dois dos Tribunais superiores da República de Angola poderes para conhecer e decidir sobre os processos de destituição do Presidente da República, nos seguintes termos: «Compete ao Tribunal Supremo conhecer e decidir os processos criminais a que se referem as alíneas a), b) e e) do n.º 1 do presente artigo instaurados contra o Presidente da República» (n.º 3 do artigo 129.º). «Compete ao Tribunal Constitucional conhecer e decidir os processos de destituição do Presidente da República a que se referem as alíneas c) e d) do n.º 1, bem como do n.º 2 do presente artigo» (n.º 4 do artigo 129.º).

2. Os poderes que a Lex Mater confere àqueles Tribunais superiores não podem ser condicionados ou obstruídos pela Assembleia Nacional. A este órgão de soberania incumbe tomar a iniciativa e fundamentar os processos.

3. Tal incumbência é estabelecida no n.º 5 do artigo 129.º, nos termos seguintes: “Os processos de responsabilização criminal e os processos de destituição do Presidente da República a que se referem os números anteriores obedecem ao seguinte:

a) A iniciativa dos processos deve ser devidamente fundamentada e incumbe à Assembleia Nacional;

b) A proposta de iniciativa é apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções;

c) A deliberação é aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, devendo, após isso, ser enviada a respectiva comunicação ou petição de procedimento ao Tribunal Supremo ou ao Tribunal Constitucional, conforme o caso”.

4. Ora, verifica-se que ao legislar sobre a sua organização interna, a Assembleia Nacional aprovou a norma no n.º 3 do artigo 284.º da Lei n.º 13/17, que ofende os comandos constitucionais nas alíneas a), b) e c) do artigo 129.º, acima transcritos.

5. O teor da norma que entende ser inconstitucional é o seguinte:
«Recebida a proposta de iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República, o Plenário da Assembleia Nacional reúne-se de urgência e cria, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, uma Comissão Eventual, a fim de elaborar relatório parecer sobre a matéria, no prazo que lhe for fixado».

6. Ao estabelecer a necessidade – não imposta nem prevista pela Constituição – de uma maioria absoluta (não apenas de presentes, mas de Deputados em efectividade de funções) intervir no processo, a norma regimental ofende a Constituição, porquanto esta estabelece expressamente a intervenção de um terço dos Deputados em efectividade de funções para a apresentação da proposta de iniciativa e a intervenção de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções para a sua aprovação.

7. A Constituição estabelece apenas dois momentos ou eventos para a intervenção dos Deputados à Assembleia Nacional no processo de destituição do Presidente da República: o primeiro momento é o da apresentação da proposta de iniciativa por um terço dos Deputados em efectividade de funções e o segundo é o da aprovação da deliberação por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções.

8. Entre a apresentação da proposta de iniciativa por um terço dos Deputados e a sua aprovação por 2/3 dos Deputados, a Constituição não prevê qualquer outro espaço para a intervenção de uma maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, nem delega tal possibilidade à lei ordinária, no caso o Regimento da Assembleia Nacional.

9. Destarte, o legislador constituinte foi preciso e claro quando definiu as balizas para a organização e funcionamento da Assembleia Nacional nos seguintes termos:

«A organização e o funcionamento internos da Assembleia Nacional regem-se pelas disposições da presente Constituição e da lei» ... «As deliberações da Assembleia Nacional são tomadas por maioria absoluta dos Deputados presentes, desde que superior a mais de metade dos Deputados em efectividade de funções, salvo quando a Constituição e a lei estabeleçam outras regras de deliberação» (artigos 155.º e 159.º).

10. Ora, estabelecendo a Constituição regras específicas para a iniciativa, condução e deliberação do processo de destituição do Presidente da República, o princípio da supremacia da Constituição e legalidade exige que tais regras específicas, ou outras regras, sejam observadas, pois a Constituição é a Lei Suprema da República de Angola e é hierarquicamente superior às demais leis ordinárias (artigo 6.º, n.º 1).

11. Todavia, ao criar um terceiro espaço para a intervenção de uma maioria absoluta num processo em que a Constituição apenas prevê dois espaços de intervenção com regras de deliberação excepcionais que não contemplam a regra da maioria absoluta, a norma do n.º 3 do artigo 284.º da Lei n.º 6/17, ofende a Constituição da República, devendo, por isso, ser declarada parcialmente inconstitucional.

12. De igual modo, o legislador constituinte estabeleceu apenas dois requisitos para o órgão Assembleia Nacional aprovar a deliberação que recai sobre a proposta de iniciativa e enviar a respectiva comunicação ou petição de procedimento ao Tribunal competente, a saber:

1) estar a proposta de iniciativa subscrita por um terço dos Deputados em efectividade de funções; 2) estar a proposta de iniciativa devidamente fundamentada.

13. O mérito dos fundamentos deve ser conhecido e decidido pelos Tribunais, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 129.º, mas antes cabe à Assembleia Nacional a sua discussão, em reunião plenária, para que, em votação secreta, delibere por 2/3, sobre a iniciativa de destituição, nos termos do n.º 5 do artigo 129.º da CRA.

14. Ora, ao estabelecer um terceiro requisito técnico para o órgão Assembleia Nacional deliberar sobre a proposta de iniciativa e enviar a respectiva comunicação ou petição de procedimento ao Tribunal competente, a norma infraconstitucional inserta no n.º 3 do artigo 284.º da Lei n.º 6/17, obriga a criação de uma Comissão Eventual que não pode constituir uma condicionante ou factor de obstrução à deliberação da Assembleia Nacional ou ao conhecimento do mérito do processo pelo Tribunal competente, pelo que deve ser declarada parcialmente inconstitucional.

15. A história regista nos diversos países dezenas de processos de destituição, todos eles iniciados por um, dois, ou mais representantes do povo e aprovados ou rejeitados por uma maioria de dois terços, sem qualquer intervenção de uma maioria absoluta pelo meio. Todos eles envolvem acusações de má conduta incompatíveis com a posição oficial do titular do cargo, que se enquadram em três grandes categorias: (1) exceder os limites constitucionais do poder do cargo em derrogação dos poderes de outro ramo do governo; (2) comportar-se de maneira totalmente incompatível com a função e finalidade adequadas do cargo; e (3) empregar o poder do cargo para fins impróprios ou para ganho pessoal. Trata-se do mesmo tipo de conduta violadora da Constituição e de procedimentos similares aos estabelecidos pelo constituinte angolano em 2010.

16. Mesmo que assim não se entenda, a criação de uma comissão eventual da Assembleia Nacional é sempre feita mediante Resolução. Ora, nos termos do n.º 3 do artigo 169.º da CRA, os projectos de resolução da Assembleia Nacional são aprovados por maioria absoluta dos Deputados presentes, desde que superior a mais de metade dos deputados em efectividade de funções. Portanto, é a própria lei fundamental que vem impor apenas a maioria absoluta dos deputados presentes, ou seja, se estiverem presentes 111 Deputados em efectividade de funções (que é a maioria absoluta de 220 deputados que compõem actualmente o nosso Parlamento) e 58 deputados votarem a favor, 20 deputados votarem contra e 33 deputados se abstiverem a resolução será aprovada nos termos do n.º 3 do artigo 169.º da CRA. Logo, a norma do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional viola igualmente (por vício material) o conteúdo do n.º 3 do artigo 169.º da CRA”.

O Grupo Parlamentar da UNITA, termina requerendo que a presente Acção de Fiscalização Abstracta Sucessiva da Constitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de julho, seja julgada procedente e, em consequência, declarada a inconstitucionalidade parcial da referida norma violadora da Constituição, com efeito erga omnes, nos termos do artigo 231.º da CRA.

Em obediência ao disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 16.º e na alínea c) do n.º 2 do artigo 29.º da LPC, através do Ofício n.º 201/GAB.J.C.P.TC/2023 de 26 de Dezembro (fls. 14), a Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional notificou a Assembleia Nacional para, querendo, no prazo de 15 dias, se pronunciar sobre a presente acção e oferecer as correspondentes contra-alegações.
Porém, atendendo ao prescrito nas disposições conjugadas do artigo 157.º da CRA e do n.º 7 do artigo 102.º do Regimento da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho, que fixam uma pausa parlamentar de 20 de Dezembro a 4 de Janeiro, invocada pela Requerida a fls. 15, por ser legal, passou o prazo supra referido a ser contado a partir de 5 de Janeiro de 2024.
Consequentemente, a Assembleia Nacional veio, aos 22 de Janeiro de 2024, apresentar as suas contra-alegações (fls. 17 a 31), referindo, no essencial, que:

1. “A Constituição da República de Angola é a base da estruturação do Estado angolano, pois dispõe de normas fundamentais relativas à sua organização e actividade. É a essência do Estado enquanto instituição, esteio da legalidade, da relação entre as instituições do poder e, dessas com os cidadãos.

2. A Constituição, apesar de ser a ordem normativa superior que estabelece a ordem social, a organização do Estado, o poder e os direitos e liberdades fundamentais, bem como a relação poder e sociedade, não é uma descrição infinita e detalhista de tais aspectos. Enquanto Lex Mater, se apresenta como conjunto de normas jurídicas através da qual se produzem outras normas gerais, dentro de uma ordem estatal.

3. Corolário do referido no número anterior são as várias remissões que a Constituição da República de Angola faz à lei, onde, em relação ao Parlamento, podemos referir-nos ao artigo 155.º, sobre a sua organização interna, ao artigo 159.º, sobre deliberações e o artigo 160.º, sobre competência organizativa, só para citar esses.

4. Como referido no n.º 3, os artigos 155.º, 159.º e 160.º, todos da Constituição da República de Angola, conferem competências à Assembleia Nacional para legislar sobre a sua organização interna, o seu funcionamento, incluindo as matérias sobre as suas deliberações.

5. É, por conseguinte, neste espaço em que surgem as leis ordinárias, onde no caso sub judice, se enquadra o Regimento da Assembleia Nacional, enquanto conjunto de normas que regulam a sua organização e o seu funcionamento.

6. A Constituição da República de Angola, na alínea d) do artigo 160.º, confere poderes à Assembleia Nacional para, por via de lei orgânica e demais legislação parlamentar, criar outras competências para esse órgão, além das expressamente por ela previstas.

7. Por conseguinte, a Constituição da República de Angola não tem o monopólio do estabelecimento das competências da Assembleia Nacional, na medida em que ela partilha esse poder com o legislador ordinário.

8. O Regimento da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho, é o diploma privilegiado concretizador das competências conferidas pelos artigos 155.º, 159.º e 160.º da Constituição da República de Angola.

9. Não se descortina no Regimento da Assembleia Nacional, qualquer norma inconstitucional que obstrua ou condicione o exercício das competências do Tribunal Supremo e do Tribunal Constitucional, previstas no artigo 129.º da Constituição.

10. Aliás, as competências conferidas aos Tribunais superiores referidas no artigo 129.º da Constituição da República de Angola, encontram-se constitucionalmente condicionadas a uma iniciativa da Assembleia Nacional, cujo monopólio lhe cabe.

11. Os Tribunais Supremo e Constitucional não podem promover a destituição do Presidente da República sem o impulso acusatório da Assembleia Nacional.

12. Não é verdade que a norma do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho, e não a Lei n.º 6/17 como consta do requerimento, ofende os comandos constitucionais das alíneas a), b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º da Constituição da República de Angola.

13. Em primeiro lugar, a iniciativa do processo de destituição é da Assembleia Nacional e não de um Deputado ou de um conjunto de Deputados, conforme estabelece a alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da Constituição da República de Angola.
14. O que é de iniciativa de um terço dos Deputados em efectividade de funções, é a proposta de iniciativa, conforme a alínea b) do n.º 5 do artigo 129.º da Constituição da República de Angola.

15. Ora, sendo uma proposta, ela deve ser submetida a apreciação do órgão competente para tomar a iniciativa, no caso a Assembleia Nacional, por via do seu Plenário, que a aceita ou a rejeita.

16. A submissão da proposta de iniciativa ao Plenário para a sua aprovação ou rejeição obedece à procedimentos internos.

17. O diploma que estabelece os procedimentos para a apreciação e votação dos processos que tramitam na Assembleia Nacional, é o Regimento da Assembleia Nacional, aprovado pelo Lei Orgânica n.º 13/17, em concretização dos artigos 155.º e 160.º da Constituição da República de Angola.

18. A proposta de iniciativa de um terço dos Deputados em efectividade de funções não é, em nenhum caso, remetida ao Tribunal, conforme o Requerente pretende fazer crer a esse douto Tribunal.

19. O que é remetido ao Tribunal, após a aprovação por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, é a iniciativa da Assembleia Nacional, por si produzida.

20. Sendo a iniciava da Assembleia Nacional, compete a ela e só a ela, mediante mecanismos próprios e internos, definir o seu conteúdo, não se vinculando ao conteúdo na proposta que lhe é submetida.

21. Mesmo que aceite a proposta de iniciativa de um terço dos Deputados em efectividade de funções, no sentido de partir para acção, a iniciativa da Assembleia Nacional pode conter fundamentos diferentes, e até contrários, aos constantes da proposta de iniciativa apresentada pelos Deputados.

22. O n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional deve ser visto no âmbito dos mecanismos internos e próprios da Assembleia Nacional para a formação e expressão da sua vontade.

23. Necessitando a proposta de ser aceite ou não, o momento que a lei prevê para a aceitação ou rejeição, é o momento da aprovação ou não da constituição da Comissão Eventual, que dá conteúdo à iniciativa da Assembleia Nacional, antes de a submeter à apreciação e votação do Plenário.
24. A criação de Comissões Eventuais para tratar de assuntos diversos é um expediente previsto na Constituição, designadamente, na alínea c) do artigo 160.º.

25. Perante a necessidade da proposta ser submetida à aceitação do Plenário, a Assembleia Nacional, enquanto legislador ordinário, usando das competências que lhe são conferidas pelo artigo 155.º e pelas alíneas a) e d) do artigo 160.º da Constituição da República de Angola, criou a norma do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional, que lhe confere competência de aceitar ou não a criação da Comissão Eventual.

26. A aceitação da criação da Comissão Eventual significa concordância de iniciar o processo de destituição do Presidente da República, e, a não aceitação, significa a rejeição de iniciar o referido processo.

27. Quanto à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, exigido pelo n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade porque o artigo 159.º da Constituição da República de Angola, confere à lei, competências para estabelecer outras regras de deliberação fora da regra geral aí estabelecida, “que é a maioria absoluta dos Deputados presentes, desde que superior a mais de metade dos Deputados em efectividade de funções”. Aliás, o Requerente no seu articulado 9.º sublinha isso mesmo.

28. Ante esta realidade jurídico-constitucional, perante a seriedade do processo de destituição do Presidente da República, cuja proposta de iniciativa compete a um mínimo de um terço e a deliberação acusatória a uma maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, o legislador ordinário, ao estabelecer a maioria necessária para decidir sobre o início ou não do processo de destituição, colocou-se entre as duas maiorias, de um terço para propor e 2/3 para deliberar, e optou por uma maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções para decidir sobre o início ou não do processo de destituição.

29. De resto, todos os quóruns previstos no artigo 129.º da Constituição da República de Angola incidem sobre os Deputados em efectividade de funções e não dos presentes, razão pela qual, seguindo o mesmo espírito da Constituição, andou bem o legislador ordinário ao consagrar o quórum da maioria absoluta de Deputados em efectividade de funções e não dos presentes na sessão.

30. Não faria sentido que, nos termos da alínea b) do n.º 5 do artigo 129.º, que estabelece um terço dos Deputados em efectividade de funções para a apresentação da proposta de iniciativa, isto é, 73 Deputados, e nos termos da alínea c) do n.º 5 do artigo 129.º, fosse exigido a maioria de 2/3 de Deputados em efectividade de funções para a deliberação, isto é, 147 Deputados, viesse o n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional estabelecer a maioria absoluta de Deputados presentes, desde que superior a mais de metade de Deputados em efectividade de funções, o que bastaria um número de 58 Deputados para partir para a iniciativa de destituição do Presidente da República.

31. Se assim o fizesse, o legislador ordinário não estaria a zelar pela estabilidade das instituições de soberania, necessária à existência de um Estado Democrático de Direito.

32. Não é verdade que a Constituição da República de Angola estabelece apenas dois momentos para o processo de destituição do Presidente da República, o que seria: o momento da apresentação da proposta por um terço de Deputados e o momento da deliberação por 2/3 dos Deputados.

33. O Requerente omite no articulado 7.º, o momento fulcral deste processo, que é o da conformação do conteúdo da iniciativa da Assembleia Nacional, caso opte pelo processo de destituição, que é diferente ao da proposta de iniciativa.

34. O n.º 3 do artigo 169.º da Constituição, que o Requerente invoca no seu articulado 24.º tem a ver com o processo legislativo e não com o processo de destituição do Presidente da República, integra o conjunto de Outros Tipos de Processos conforme o Título VII do Regimento da Assembleia Nacional em que se insere a norma do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional.

35. Quando se inicia um processo de destituição do Presidente da República, não se está a legislar, razão pela qual, no Regimento da Assembleia Nacional, o artigo 284.º, sob a epígrafe “Processo de Acusação e destituição do Presidente da República”, não se encontra situado no Título VI, sob a epígrafe “Processo Legislativo”, e sim no Título VII, sob a epígrafe “Outros Tipos de Processo”.

36. A Resolução não serve exclusivamente o Processo legislativo, ela é também a forma por via da qual a Assembleia Nacional pratica actos definitivos fora do processo legislativo.

37. O processo de acusação e destituição do Presidente da República é um processo extraordinário, que é sempre especialmente regulado, como se encontra no Regimento da Assembleia Nacional.

38. No Brasil, país que teve casos bem-sucedidos de destituição do Presidente da República, há uma lei especial que regula especificamente a matéria, e nela prevê-se a criação de uma comissão especial, que analisa e desenvolve todas diligências necessárias ao apuramento da verdade material e emite parecer sobre a procedência ou não do pedido”.
As cópias do requerimento apresentado pelo Grupo Parlamentar da UNITA e da resposta da Assembleia Nacional, foram remetidas pela Secretaria Judicial à cada um dos restantes Juízes Conselheiros e ao representante do Ministério Público, nos termos do n.º 6 do artigo 29.º da LPC.
Cumpridas as formalidades legais, urge, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 181.º e do n.º 1 do artigo 230.º, ambos da CRA.

Por sua vez, a Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC) estatui na alínea a) do artigo 16.º, que compete ao Tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade das leis, dos decretos presidenciais, das resoluções, dos tratados, das convenções e dos acordos internacionais ratificados e de quaisquer normas, nos termos previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 181.º da Constituição.

Refere, ainda, a Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), no seu artigo 26.º que, nos termos previstos pelo artigo 230.º da Constituição, pode ser requerida a apreciação sucessiva da constitucionalidade de qualquer norma contida em diploma publicado em Diário da República, nomeadamente de lei, decreto-lei, decreto, resolução e tratado internacional.
Considerando que a norma do n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho (Lei Orgânica), cuja constitucionalidade se requer, foi publicada no Diário da República, I Série - N.º 111, de 6 de Julho de 2017, o Tribunal Constitucional tem competência para apreciar a sua conformidade com a Constituição.

III. LEGITIMIDADE

Estatui a alínea c) do n.º 2 do artigo 230.º da CRA que podem requerer a declaração de inconstitucionalidade em processo de fiscalização abstracta sucessiva, as seguintes entidades:
(…)
c) Os Grupos Parlamentares;
(…)
Por sua vez, o artigo 27.º da LPC dispõe que, nos termos do n.º 2 do artigo 230.º da Constituição, têm legitimidade para solicitar ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade de quaisquer normas (…) onde se incluem os Grupos Parlamentares.

Assim sendo, o Requerente, Grupo Parlamentar da UNITA, tem legitimidade para requerer a apreciação da constitucionalidade da norma em questão e, por conseguinte, formular o pedido que ora submete à apreciação do Tribunal Constitucional.

IV. OBJECTO

O objecto do presente processo de fiscalização abstracta sucessiva é apreciar a constitucionalidade da norma estabelecida no n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho (Lei Orgânica), referente aos processos de acusação e de destituição do Presidente da República, confrontando-a com as normas previstas nos números 3, 4 e 5 do artigo 129.º da Constituição da República de Angola.

V. APRECIANDO

O Requerente veio por intermédio da presente acção de fiscalização abstracta sucessiva, requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade parcial, da norma constante no n.º 3 do artigo 284.º do Regimento da Assembleia Nacional (doravante designada apenas por RAN), que, no seu entender, confere ao Plenário da Assembleia Nacional, poderes que colidem com os estabelecidos nos n.ºs 3 e 4 e nas alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º da Constituição da República de Angola (CRA).

Pretendendo referir-se, no seu requerimento, ao n.º 3 do artigo 284.º do RAN, o Requerente refere-se erroneamente, em partes da peça, à Lei n.º 6/17 ao invés de 13/17 (fls. 3, 5, 6 e 10 dos autos). Não estando em causa este diploma legal, esta Corte Constitucional procedeu oportunamente à rectitificação do que aquilata ter se tratado de mero erro de escrita ou lapsus calami.
A fiscalização abstracta sucessiva que o Grupo Parlamentar da UNITA requer, nos termos do n.º 1 e da alínea c) do n.º 2 do artigo 230.º da CRA, tem a finalidade de anular a parte do preceito questionado pelo Requerente no pedido e em vigor no ordenamento jurídico, por alegada desconformidade com a CRA.

Segundo Onofre dos Santos, “A fiscalização abstracta sucessiva tem por fim erradicar uma norma do ordenamento jurídico. Se há uma lei ilegítima, porque não cumpre os critérios do artigo 6.º da CRA, deve ser eliminada” (Lei do Processo Constitucional Anotada, Textos Editores, Lda., 2016, p. 31).

Carlos Blanco de Morais sustenta que “O processo de fiscalização sucessiva consiste num tipo de controlo abstracto de validade de normas exercido por via directa ou principal, e que tem por finalidade essencial, a eliminação das normas jurídicas já publicadas que sejam julgadas inconstitucionais ou ilegais, bem como de efeitos que as mesmas hajam produzido no passado. Este processo de fiscalização supõe que se aprecie a constitucionalidade ou a legalidade de um acto, na sua qualidade de norma jurídica já formada e potencialmente eficaz” (Justiça Constitucional, Tomo II, O direito do Contencioso Constitucional, 2.ª Edição, Coimbra Editora, p. 146).
A fiscalização abstracta sucessiva é consagrada pelos artigos 230.º e 231.º da CRA, e regulada pelos artigos 26.º a 30.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC). O seu objecto é sempre a apreciação da constitucionalidade de qualquer norma que se encontre desarticulada com a Constituição. Tal como defende Fernando Alves Correia, “Na problemática da definição do objeto de controlo, assume particular relevo o conceito de norma, para efeitos de fiscalização de constitucionalidade” (Justiça Constitucional, 2.ª Edição, Almedina, 2019, p. 191).

Assim, a norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN, pode ser objecto de um juízo de constitucionalidade, uma vez que o referido Regimento é um acto normativo vinculado à Constituição, estando, obviamente, sujeito à fiscalização abstracta sucessiva, nos termos do n.º 1 do artigo 230.º da CRA.

Porém, para que o pedido ora formulado pelo Requerente logre êxitos, mostra-se necessário que o Tribunal Constitucional proceda à verificação clara se a norma extraída do n.º 3 do artigo 284.º do RAN está em desconformidade com quaisquer disposições da CRA, mormente o texto dos n.ºs 3 e 4 e das alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º e do artigo 159.º, ambos da CRA, declarativamente interpretados, ou com o seu espírito.

Para, de forma assertiva, aferir a eventual inconstitucionalidade da invocada norma, torna-se necessário fixar o seu sentido e alcance, o seu conteúdo, e verificar a sua conformidade com a interpretação do artigo 129.º da CRA.
O n.º 3 do artigo 284.º do RAN, dispõe:

“Recebida a proposta de iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República, o Plenário da Assembleia Nacional reúne-se de urgência e cria, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, uma Comissão Eventual, a fim de elaborar relatório parecer sobre a matéria, no prazo que lhe for fixado”.

Desta feita, cabe apreciar e decidir se a referida norma sujeita a controlo (n.º 3 do artigo 284.º do RAN), é compatível ou não com a Constituição, uma vez que o Requerente aduz haver inconstitucionalidade, decorrente da violação do princípio da superioridade das normas constitucionais no ordenamento jurídico, conforme estabelece o artigo 6.º da CRA.
Nas palavras de Adlezio Agostinho “o princípio da supremacia da Constituição constitui a base reguladora de qualquer percurso processual. As partes, entende-se o julgador, autores e defensores, regular-se-ão dos princípios basilares do direito adjectivo” (Manual de Direito Processual Constitucional – Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre as Garantias Constitucionais, Edições Académicas, p. 379).

Segundo Raul Araújo e Elisa Rangel “O princípio da superioridade das normas constitucionais no ordenamento jurídico determina, igualmente, a existência de um princípio da hierarquia que significa que nem todos os actos normativos têm a mesma hierarquia. O vértice da pirâmide dos actos normativos é o seguinte: (i) Constituição; (ii) normas de direito internacional; (iii) lei de revisão constitucional; (iv) leis em sentido genérico: leis orgânicas; leis de bases; leis; leis de autorização legislativa e resoluções; decretos regulamentares e actos administrativos” (Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, 2014, p. 200).

Tratando-se de interpretar o preceito infraconstitucional (n.º 3 do artigo 284.º do RAN) conforme a Constituição, o Tribunal Constitucional apreciará, quer os argumentos apresentados pelo Grupo Parlamentar da UNITA, quer os argumentos apresentados pela Assembleia Nacional, por propiciarem duas interpretações controvertidas, sendo a primeira pelo reconhecimento da inconstitucionalidade e a segunda pela compatibilidade com a Constituição, e decidirá se há razões ou não para se declarar a inconstitucionalidade parcial da referida norma, aqui requerida, por violação do princípio da supremacia da Constituição e da legalidade, face a conjugação do artigo 6.º e dos n.ºs 3 e 4 e alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º, ambos da CRA.

A acção de acusação ou destituição do Presidente da República é uma alternativa à terminologia impeachment, um instituto que se enquadra naqueles processos denominados de justiça política, em que as Assembleias Parlamentares desempenham uma função jurisdicional e podem tornar efectivo o princípio da responsabilidade dos servidores públicos como: Chefes de Estado, Chefes de Governo, Ministros, Magistrados e Membros das forças armadas ou do exército. A condenação ou a declaração de culpabilidade do acusado pode levar à destituição e às vezes também à inabilidade para o exercício de funções similares (Cfr. Raoul BURGER, Impeachment: The Constitutional Problems, Cambridge, Harvard University Press, 1999, p. 132).

A CRA reconhece o processo de justiça política por via dos seus artigos 127.º e 129.º, enquanto figura constitucional que se baseia no esquema de contrapeso de poderes (checks and balances), constituindo assim um mecanismo de controlo que dá ao Parlamento a possibilidade de alterar o mandado do Presidente da República. No entanto, é explicitamente estabelecido como um recurso excepcional, pois que interrompe a rotina normal e da alternância política, uma vez que as regras de eleição, substituição e sucessão para o exercício da função presidencial estão organizadas em torno da votação. De acordo com Aníbal S. Pérez Liñán, “por justiça política se entende amplamente todo processo legal pelo qual o Congresso delibera destituir o Presidente do cargo” (, ¿Juicio político o golpe legislativo? Sobre las crisis constitucionales en los años noventa, En América Latina Hoy, n.º 026, Universidad Salamanca, 2000, p. 68).

O Requerente alega ter sido violado o princípio da supremacia da Constituição e legalidade, uma vez que “a Constituição estabelece apenas dois momentos ou eventos para a intervenção dos Deputados à Assembleia Nacional no processo de destituição do Presidente da República (…)” e que “entre a apresentação da proposta de iniciativa por um terço dos Deputados e a sua aprovação por dois terços dos Deputados, a Constituição não prevê qualquer outro espaço para a intervenção de uma maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, nem delega tal possibilidade à lei ordinária, no caso o Regimento da Assembleia Nacional”.

Assim, no âmbito da apreciação da constitucionalidade da norma estabelecida no n.º 3 do artigo 284.º do RAN, o Tribunal Constitucional vai apreciar se, efectivamente, são apenas dois os momentos ou eventos para a intervenção dos Deputados à Assembleia Nacional no processo de destituição do Presidente da República; a competência da Assembleia Nacional para criar, por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, uma comissão eventual a fim de elaborar relatório parecer sobre a matéria; bem como se a Assembleia Nacional, condiciona ou obstrui os poderes conferidos ao Tribunal Supremo e ao Tribunal Constitucional, pelo artigo 129.º da CRA, para conhecer e decidir sobre os processos de destituição do Presidente da República.

Vejamos então:

a) Sobre os Momentos de Intervenção dos Deputados no Processo de Destituição do Presidente da República

É firme convicção do Requerente que a norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN, ofende os comandos constitucionais das alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, pois o legislador constituinte estabeleceu apenas dois momentos ou eventos de intervenção dos Deputados no processo de destituição do Presidente da República: (i) o momento da apresentação da proposta de iniciativa, por um terço dos Deputados em efectividade de funções e (ii) o momento da aprovação da deliberação, por 2/3 dos Deputados em efectividade de funções.

Assistir-lhe-á razão?
No âmbito do processo de Destituição do Presidente da República, estabelece o n.º 5 do artigo 129.º da CRA, o seguinte:
“Os processos de responsabilização criminal e os processos de destituição do Presidente da República a que se referem os números anteriores obedecem ao seguinte:

a) A iniciativa dos processos deve ser devidamente fundamentada e incumbe à Assembleia Nacional;
b) A proposta de iniciativa é apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções;
c) A deliberação é aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, devendo, após isso, ser enviada a respectiva comunicação ou petição de procedimento ao Tribunal Supremo ou ao Tribunal Constitucional, conforme o caso.”
Nos termos desta disposição, a iniciativa para os processos de responsabilização criminal e os de destituição do Presidente da República incumbe à Assembleia Nacional; a proposta de iniciativa é apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções e, finalmente, a deliberação é aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções. Ou seja, o processo de Destituição do Presidente da República decorre da iniciativa da Assembleia Nacional (alínea a)), mediante proposta de iniciativa apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções (alínea b)), sendo a deliberação aprovada por 2/3 dos Deputados em efectividade de funções (c).

Esquematicamente verificam-se, assim, nos termos do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, três momentos, a considerar: (i) A proposta de iniciativa apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções, que propulsiona o processo; (ii) A iniciativa, devidamente fundamentada, de incumbência da Assembleia Nacional, que é impulsionada pelo primeiro momento; e (iii) A deliberação, aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções.

Estes três momentos integram-se, na verdade, em duas fases, sendo a primeira: a fase da iniciativa da Assembleia Nacional; e a segunda: a fase da deliberação aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções e, consequentemente, o envio, pela Assembleia Nacional, da comunicação ou petição de procedimento elaborada, ao Tribunal Supremo ou ao Tribunal Constitucional, conforme os casos. A primeira fase é desencadeada por uma proposta de iniciativa apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções.

Assim, conforme estabelece a alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, transparece claramente que, na primeira fase, a iniciativa do processo de destituição do Presidente da República é, inequivocamente, da Assembleia Nacional, e não é de um Deputado, de um conjunto de Deputados, de um Grupo Parlamentar, ou de um determinado número percentual de Deputados.
Nos termos do n.º 1 do artigo 141.º da CRA, a Assembleia Nacional é o Parlamento da República de Angola, órgão que é representado pelo seu Plenário, estabelecendo o artigo 35.º do RAN que “O Plenário é o Órgão Supremo e Soberano da Assembleia Nacional para o exercício das funções representativa, político-legislativa e de controlo e fiscalização, que integra a totalidade dos Deputados em efectividade de funções”.

O Requerente, ao afirmar que “entre a apresentação da proposta de iniciativa por um terço dos Deputados e a sua aprovação por 2/3 dos Deputados, a Constituição não prevê qualquer outro espaço para a intervenção de uma maioria absoluta de Deputados (…)”, esqueceu-se de referir que entre estes dois espaços existe o peremptório espaço da primeira fase, ou seja, deixou de referir o momento da iniciativa dos processos, que incumbe à Assembleia Nacional, conforme expressamente prescreve a alínea a) do n.º 5 do artigo 129,º da CRA.

O momento da iniciativa dos processos de responsabilização criminal e de destituição do Presidente da República pela Assembleia Nacional (alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA) não se confunde com o momento da proposta de iniciativa, que deve ser apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções (alínea b) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA), pois, aliás, cada um deles é assumido por entidades distintas.

A proposta de iniciativa é, assim, um procedimento anterior à iniciativa dos processos. Sem a proposta não pode haver iniciativa e sem a iniciativa a proposta ficará sem efeito. Isto é, da conjugação das alíneas a) e b) do artigo 129.º da CRA, resulta que a proposta de iniciativa, apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções, vincula-se à iniciativa dos processos, que incumbe à Assembleia Nacional, sendo este órgão, naturalmente, o único titular do poder de iniciativa.

Nota-se que, por serem momentos distintos, a alínea b) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA e o n.º 2 do artigo 284.º do RAN, não impõem expressamente que a proposta de iniciativa apresentada por um terço de Deputados em efectividade de funções seja devidamente fundamentada, como o faz a alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, em relação à iniciativa da Assembleia Nacional.

É isto que mais facilmente se depreende, por exemplo, e a título de Direito comparado, em sede de responsabilidade criminal do Presidente da República, do texto que vem consagrado no n.º 2 do artigo 130.º da Constituição da República Portuguesa, ao estabelecer que “A iniciativa do Processo cabe à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto e deliberação aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções”.

Nesta conformidade, esta Corte Constitucional conclui que não está em linha com o texto vertido no artigo 129.º da CRA a existência de apenas dois momentos de intervenção dos Deputados no âmbito do processo de destituição do Presidente da República, mormente, o momento da apresentação da proposta de iniciativa, por um terço dos Deputados em efectividade de funções (alínea b)) e o momento da aprovação da deliberação, por 2/3 dos Deputados em efectividade de funções (alínea c)). Para além destes dois momentos, o acima referido preceito da CRA estabelece, primacialmente, o momento da iniciativa do processo, que incumbe à Assembleia Nacional (alínea a)), que constitui a fase da conformação do conteúdo da iniciativa da Assembleia Nacional, e que é diferente do momento da proposta de iniciativa.

Assim, este particular momento da iniciativa dos processos de responsabilização criminal e de destituição do Presidente da República pela Assembleia Nacional deve ser caracterizado e devidamente estabelecidos os procedimentos para a sua implementação, ou seja, qual o modus operandi da Assembleia Nacional após a recepção da proposta de iniciativa apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções.

Isto porque as situações que podem conduzir à responsabilização criminal e à destituição do Presidente da República, por serem de relevante interesse geral, são demasiado graves para serem viabilizadas sem se avaliar o mérito inicial da proposta de iniciativa. A importância dos processos de acusação e de destituição do Presidente da República, revela-se no facto destes terem não apenas consequência interna mas, e sobretudo, consequências e relevância na estrutura e o funcionamento do Estado (externas).

É, aliás, com este sentido que, no que toca à responsabilização do Presidente da República, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira asseveram que “A iniciativa do processo cabe exclusivamente à Assembleia da República e está sujeita a severos requisitos (…). Com isto visa-se evitar a banalização ou a chicana das propostas de acusação do Presidente da República, bem como a flagelação gratuita deste (…)” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, Coimbra Editora, p. 171).

Por esta acepção, não é razoável e nem admissível considerar que a mera proposta de iniciativa de acusação e de destituição do Presidente da República pudesse seguir unicamente o previsto no quadro constitucional – isto é, bastando que a proposta de iniciativa do processo fosse apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções, a mesma pudesse ser imediatamente sujeita à votação do Plenário com vista a aferir se a deliberação mereceria ou não a aprovação da maioria qualificada de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções – sem que a mesma percorresse uma fase de instrução do processo, tendo em vista a sua aceitação pela Assembleia Nacional.

Admitir uma tal hipótese, seria o mesmo que, dependendo do ânimo ou do ressentimento de um terço dos Deputados em efectividade de funções, obrigar permanentemente a Assembleia Nacional a emitir deliberação, a ser aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções e colocar o órgão Presidente da República sob ininterrupta expectação.

Ou seja, se a própria Constituição e a Lei (cf. alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, e n.º 1 do artigo 284.º do RAN), informam que a iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República compete à Assembleia Nacional, com que base é que a proposta de iniciativa de um terço dos Deputados (em efectividade de funções) daria lugar à elaboração do relatório parecer – que, por sua vez, constituiria o mote para a resolução que seria submetida à votação do Plenário, com vista à sua aprovação por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções – sem que houvesse a assumpção do processo no âmbito da formação da vontade inicial do órgão Assembleia Nacional? Lógica e cronologicamente, antes desta submissão da Resolução ao crivo dos 2/3 dos Deputados em efectividade de funções, é incontornável que a Assembleia Nacional deva dar a sua concordância.

No âmbito dos processos de acusação e de destituição do Presidente da República, quer a alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, quer o n.º 1 do artigo 284.º do RAN, prima facie, determinam expressamente que a iniciativa do processo é da Assembleia Nacional.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional considera que a norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN não contraria o disposto no n.º 5 do artigo 129.º da CRA, pois, no que toca aos momentos ou eventos de intervenção dos Deputados nos processos de acusação e de destituição do Presidente da República, quer a aludida norma constitucional, quer a referida norma infraconstitucional do RAN, estabelecem três momentos (proposta de iniciativa por um terço dos Deputados; iniciativa da Assembleia Nacional; e deliberação da Assembleia Nacional por 2/3 dos Deputados), e não apenas dois momentos, como refere o Requerente.

b) Sobre a criação de uma Comissão Eventual por Maioria Absoluta

Alega ainda o Requerente que o n.º 3 do artigo 284.º do RAN, extravasa as competências da Assembleia Nacional e, consequentemente, impede a consumação do momento constitucional da deliberação da Assembleia Nacional, por ter estabelecido um outro momento técnico que consiste na criação de uma Comissão Eventual, por uma maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, não previsto, nem conforme com a letra e o espírito do n.º 5 do artigo 129.º da CRA.

Assiste-lhe razão?

Da leitura dos presentes autos pode-se deduzir que o que afirma o Requerente sobre a legitimidade constitucional do diploma legal, fundamenta-se, desde logo, na competência regulamentar da Assembleia Nacional, em criar regras sobre o procedimento, a deliberação e o funcionamento do processo de destituição do Presidente da República.

As regras da hermenêutica/interpretação constitucional ensinam que, neste caso em concreto, a determinação da legitimidade constitucional da norma vertida no referido Diploma passa, necessariamente, pela percepção da natureza jurídica e jurisprudencial do Regimento da Assembleia Nacional e, deste modo, o Tribunal Constitucional poderá aduzir se assiste ou não razão ao Requerente.
A base constitucional do Regimento da Assembleia Nacional reside na autonomia do Poder Legislativo estabelecida no artigo 155.º da CRA, segundo o qual “A organização e o funcionamento interno da Assembleia Nacional regem-se pelas disposições da presente Constituição e da lei”. A terminologia “lei”, entende-se aqui, o Regimento da Assembleia Nacional e demais legislação parlamentar. Os representantes do povo podem e devem determinar o curso da estrutura e do funcionamento, de forma autónoma, sem o envolvimento de outros órgãos do Estado. A autonomia do regimento interno é um aspecto fundamental da autonomia parlamentar que abrange o âmbito do processo (procedimento), bem como da auto-organização (estrutura organizacional) do Parlamento.

O Regimento da Assembleia Nacional, junto dos demais regulamentos internos, constitui um diploma jurídico que não deve ser entendido isoladamente do processo de tomada de decisão democrática, mas sim como um todo. Deve, portanto, estar relacionado, por exemplo, com a Lei dos Partidos Políticos e direito de voto. Assim como para estas leis, a Constituição descreve apenas as premissas e as bases para a sua organização e funcionamento, o Regimento da Assembleia Nacional está revestido de igual natureza. A Lei Partidária, a Lei Eleitoral e a Lei Parlamentar constituem os regimes jurídicos que proporcionam um quadro jurídico para o processo político. Normativamente, tal entendimento resulta do conteúdo vertido nos artigos 17.º, 143.º e 160.º, todos da CRA.

Sobre esta questão, referindo-se à Lei Parlamentar, Philipp Austermann e Christian Waldhoff, afirmam que, “estas disposições são complementadas e fundamentadas, entre outras coisas, pela Lei dos Partidos Políticos, pela Lei das Eleições Gerais, pela Lei do Regimento da Assembleia Nacional e demais regulamentos internos, que embora não formalmente, são, em substância, direito constitucional fora da Constituição” (Parlamentsrecht, C.F. Muller, Schwerpunktbereich, Heidelberg, 2020, p. 4). É com este entendimento que a doutrina alemã denomina de normas sub-constitucionais (Subverfassungen) e a doutrina italiana denomina de normas super-legais, por entenderem que estas não se encontram na mesma posição hierárquica das leis ordinárias, encontram-se numa posição intermédia, entre as leis constitucionais e as leis ordinárias.

Esclarecida limiarmente a posição hierárquica das normas constantes do Regimento da Assembleia Nacional, bem como a sua competência para se auto-regular, importa apreciar se tal poder colidiu de algum modo, com o texto constitucional em causa.
Ora vejamos:

A Assembleia Nacional é o Parlamento da República de Angola, órgão unicamaral, composta por Deputados eleitos nos termos da Constituição e da lei e está investida de diversas competências, tais como: competência organizativa, política e legislativa, competência de controlo e fiscalização, bem como competências em relação a outros órgãos, para além de outras atribuições para legislar com reserva absoluta ou relativa sobre matérias específicas (artigos 141.º, 142.º, 160.º, 161.º, 162.º, 163.º, 164.º e 165.º, todos da CRA).
No domínio da sua competência organizativa, a Assembleia Nacional, enquanto órgão de soberania, tem proficiência para legislar sobre a sua organização interna, ou seja, aprovar normas que regulam o seu próprio funcionamento, em forma de Lei Orgânica, por força do artigo 155.º, da alínea a) do artigo 160.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 166.º, todos da CRA.

Atente-se que, no âmbito da organização e funcionamento da Assembleia Nacional, os artigos 155.º, 159.º e 160.º, todos da CRA, conferem poderes a este órgão de soberania para constituir Comissões de Trabalho e exercer outras competências resultantes da referida Lei Orgânica e demais legislação parlamentar, incluindo as matérias inerentes às suas deliberações.
É assim que a Assembleia Nacional aprovou o seu regimento interno (RAN), através da Lei n.º 13/17, de 6 de Julho, em que estabelece como princípios básicos de funcionamento a representação proporcional e as deliberações por maioria absoluta (artigos 5.º, 37.º e 155.º do RAN).

No âmbito dos processos relativos ao Presidente da República, o n.º 3 do artigo 284.º do RAN, estabelece que “Recebida a proposta de iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República, o Plenário da Assembleia Nacional reúne-se de urgência e cria, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, uma Comissão Eventual, a fim de elaborar relatório parecer sobre a matéria, no prazo que lhe for fixado”.

Este preceito do RAN veio, no âmbito da competência que é conferida à Assembleia Nacional pela alínea a) do n.º 1 do artigo 160.º da CRA, prescrever os procedimentos a encetar após recebida a proposta de iniciativa do processo de acusação e de destituição do Presidente da República.

Na verdade, o n.º 5 do artigo 129.º da CRA nada discorre sobre os procedimentos a adoptar pela Assembleia Nacional após receber a proposta de iniciativa dos processos de responsabilização criminal e de destituição do Presidente da República, bem como não dispõe expressamente sobre a criação de uma Comissão Eventual. Estabelece, sim, este preceito constitucional, que a iniciativa dos referidos processos incumbe à Assembleia Nacional (a); mediante uma proposta de iniciativa apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções (b); sendo a deliberação aprovada por maioria de 2/3 dos Deputados em efectividade de funções e, após isso, enviada a respectiva comunicação ou petição de procedimento ao Tribunal Supremo ou ao Tribunal Constitucional, conforme o caso (c).
Perante este espaço jurídico livre, claramente, era intenção do legislador constituinte que a densificação da norma fosse realizada pelo legislador ordinário, uma vez que estamos diante de uma norma programática.t

Com efeito, a boa doutrina define as normas programáticas como aquelas (i) que são de aplicação deferida; (ii) que explicitam comandos valores; (iii) que conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; (iv) e que têm como destinatário primacial o legislador a cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios que vêm de ser revestidos de plena eficácia e, por isso, só através da lei adquirem determinabilidade (Cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 6.ª Ed. p. 285).

Revestida de tal competência, nos termos da alínea m) do artigo 161.º, a saber “promover o processo de acusação e destituição do Presidente da República…”, a Assembleia Nacional limitou-se a agir no âmbito do seu poder de auto-regulamentação, pois, estabelece o artigo 155.º da CRA que “a organização e o funcionamento internos da Assembleia Nacional regem-se pelas disposições da Constituição e da lei”.

Os procedimentos inseridos no n.º 3 do artigo 284.º do RAN apresentam-se, assim, como regras consideradas necessárias e adequadas, pelo legislador, para a prossecução dos processos de responsabilização criminal e de destituição do Presidente da República, após recebida a proposta de iniciativa apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções, tendo em conta que a Constituição da República de Angola, para além de ser a ordem normativa superior, conforme dispõe o seu artigo 6.º, não descreve os seus preceitos de forma minuciosa e acabada.

Referindo-se à Constituição angolana de 2010, Jónatas E. M. Machado, Paulo Nogueira da Costa e Esteves Carlos Hilário afirmam que “A Constituição configura um sistema aberto de valores, princípios e regras. Ao conjugar-se princípios e regras, tem-se em vista a garantia da segurança jurídica, mas sem deixar de se assegurar a indispensável abertura do sistema constitucional à realidade social, bem como a sua flexibilidade, havendo assim lugar para uma law in action para além da law in the books” (Direito Constitucional Angolano, 5.ª Edição, Petrony, p.p. 55 e 56).

Já Raul Araújo e Elisa Rangel asseveram que “A Constituição define os vários órgãos com competência legislativa - a isto se chama de pluricentrismo legislativo, ou seja, são as Constituições que definem se existem ou não uma ou mais fontes. Em Angola, a Assembleia Nacional tem competência legislativa (…)” (Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, Luanda, 2014, p. 200).
Assim, a norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN, refere-se aos trâmites a que está sujeito o momento atinente ao exercício da iniciativa dos processos de responsabilização criminal e de destituição do Presidente da República, que incumbe à Assembleia Nacional, nos termos do preceituado na alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, após recebida a proposta de iniciativa apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções.

No plano legislativo infra-constitucional, e de formas a não comprometer a eficácia do processo de acusação e de destituição do Presidente da República, o referido preceito (n.º 3 do artigo 284.º do RAN) determina procedimentos que operacionalizam a norma consagrada na alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA.

É evidente que, resulta claro, quer da Constituição (alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA), quer da lei infraconstitucional (n.ºs 1 e 2 do artigo 284.º do RAN), que a proposta de iniciativa de um terço dos Deputados em efectividade de funções é apenas uma proposta (proposição), o primeiro procedimento que tem o ônus de impulsar a iniciativa a nível da Assembleia Nacional, órgão a quem incumbe, nos termos da Constituição e da lei, dirigir activamente e providenciar pelo andamento do respectivo processo.

Ora, com a recepção da proposta de iniciativa de destituição do Presidente da República apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções, e de formas a chegar-se rapidamente à sua natural conclusão, entendeu o legislador da norma em crise tornar-se necessário verificar se esta proposta de iniciativa contém, prima facie, motivo suficiente para que se possa dar início e sequência procedimental, ou seja, se estão reunidos os pressupostos de razão e seriedade a fornecer ao Plenário da Assembleia Nacional, como órgão competente para o impulso da iniciativa do processo, nos termos da conjugação das alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA.

Como se pode verificar, a CRA cuidou de estabelecer critérios para o momento inicial e para o momento final do processo de destituição do Presidente da República, o que significa que todo o resto deixou para o livre critério do legislador ordinário, até porque a Constituição não pode (nem deve) prever tudo. A Constituição traça as linhas mestras e, no demais, deixa ao cuidado do poder legiferante. É o que de facto aconteceu, pois que, à luz do princípio da autorregulação, tal como referem Raul Araújo, Elisa Rangel e Marcy Lopes, “a Constituição define as competências da Assembleia Nacional no que respeita à sua auto-organização, nomeadamente, na elaboração e aprovação de legislação sobre a sua organização interna” (Cfr. Anotação ao Artigo 160.º, Constituição da República de Angola Anotada, Tomo II, p. 441).

No domínio da administração pública, Diogo Freitas do Amaral e Carlos Feijó, referindo-se aos Regimentos de órgãos colegiais, referem que estes órgãos “(…) têm o poder de, independentemente de norma constitucional ou legal expressa que o autorize, elaborar e aprovar os seus próprios regulamentos de organização e de funcionamento, regulamentos esses a que se dá a denominação tradicional de regimentos. Qualquer órgão colegial pode decidir como vai proceder neste ou naquele debate, nesta ou naquela votação: e quem pode fazê-lo em concreto, também há-de poder fazê-lo em norma geral e abstracta (Direito Administrativo Angolano, Almedina, 2016, p. 422).

Assim, uma vez que a CRA deixou ao critério do legislador ordinário os procedimentos subsequentes à recepção da proposta de iniciativa de destituição do Presidente da República apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções, respeitando os princípios estabelecidos na CRA, torna-se permissível que o próprio Regimento da Assembleia Nacional possa estabelecer a criação de uma Comissão ad hoc com a missão de elaborar o relatório parecer, composta por maioria absoluta e respeitando o princípio da proporcionalidade.

O legislador ordinário poderia, no âmbito das suas competências constitucionais, consagrar uma outra solução legislativa, que estabelecesse um procedimento para o exercício da iniciativa dos processos de responsabilização e de destituição do Presidente da República diferente do estabelecido no n.º 3 do artigo 284.º do RAN e mesmo, até, que não passasse pela criação de uma Comissão Eventual.

Distintos modelos de responsabilização e destituição do Presidente da República podemos encontrar, a título de exemplo, nos Estados Unidos da América (EUA) e no Brasil.

Nos EUA o pedido de impechment, que pode partir de qualquer Deputado, passa pela Comissão de Justiça da Câmara dos Representantes, que analisa as provas para formular o processo ou pedir o seu arquivamento. Caso a Comissão acolha o processo, o texto segue para votação no Plenário da Câmara onde, se o processo for aprovado, basta uma votação por maioria simples e o Presidente é declarado "impedido". Só então o julgamento do Presidente “impedido” ocorre no Senado e o Presidente perde o mandato se dois terços dos senadores votarem a favor da condenação (https://pt.wikipedia.org/wiki/Impeachment_nos_Estados_Unidos).

Já no Brasil o pedido de impeachment, que pode ser apresentado por qualquer cidadão brasileiro, deve ser aceite pelo Presidente da Câmara dos Deputados, passa pela análise de uma Comissão composta por parlamentares de todas as bancadas da Câmara para deliberação de um parecer favorável ou contrário à continuidade do processo. Se o relatório for favorável é levado a votação no Plenário pelo Presidente da Câmara e tem de ser aprovado pela maioria qualificada, ou seja, por 2/3 dos Deputados. O Julgamento é feito pelo Supremo Tribunal Federal caso o Presidente da República seja acusado de um crime comum e, se a acusação for de crime de responsabilidade, o julgamento será feito pelo Senado (https://pt.wikipedia.org/wiki/Impeachment_no_Brasil).

De acordo com Arthur Augusto Rotta (...) ”há uma considerável variedade de modelos de impeachment. Contudo, via de regra, as tipificações são bastante vagas, dá-se ampla margem de manobra aos interesses exclusivamente políticos das oposições, que podem recorrer a esse dispositivo constitucional de maneira desleal, mobilizando-o como arma política para abreviar o mandato presidencial. Indubitavelmente, o impeachment é um processo de natureza política, mas não se pode esquecer de que, ao mesmo tempo, a acusação deve ter fundamentos jurídicos respaldados pelo que está estabelecido na Constituição e, conforme o caso, em legislação complementar. Porém, como é comum a existência de dispositivos constitucionais e legislação ordinária com conteúdos amplos e vagos, muitas vezes não é tão difícil alegar haver fundamentação jurídica para um processo que, na verdade, é motivado apenas por ambições partidárias e que, por consequência, apoia-se em frágil sustentação jurídica. Arthur Augusto Rotta, Como depor um Presidente: Análise Comparada dos Modelos de Impeachment em 77 Países, Tese de Doutoramento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019, p.p. 163-164.

Todavia, a esta Corte Constitucional não compete discutir as opções legislativas, mas tão-somente apreciar a sua conformidade com a Constituição (uma vez colocadas em vigor).

Logo, o Regimento da Assembleia Nacional, no n.º 3 do artigo 284.º, não extravasa as suas competências, pois regula o processo em sentido estrito (procedimento), dizendo quais os actos a praticar e os respectivos termos e formalidades para a proposição da acção inerente à destituição do Presidente da República, prevista no artigo 129.º da CRA, que deixou em aberto como e quando tais actos devem ser praticados.

Portanto, o Tribunal Constitucional considera que, a criação da Comissão Eventual descrita no n.º 3 do artigo 284.º do RAN, decorre da própria alínea a) do artigo 129.º da CRA, razão pela qual não existe alguma inconstitucionalidade.

Mas, para concretização deste desiderato, a opção legislativa expressa no RAN (n.º 3 do artigo 284.º), é a de criar uma Comissão Eventual, a fim de elaborar relatório parecer sobre a matéria. Terá, assim, com a disposição de criar uma Comissão Eventual, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, sido estabelecido um novo momento técnico não previsto, nem conforme com a letra e o espírito do artigo 129.º da CRA?

A criação de Comissões Eventuais, para tratar de assuntos diversos, decorre da própria Constituição, conforme dispõe a alínea c) do artigo 160.º, nos seguintes termos: “Compete à Assembleia Nacional, no domínio da sua organização interna: (…) c) Constituir a Comissão Permanente, as Comissões de Trabalho Especializadas, as Comissões Eventuais e as Comissões Parlamentares de Inquérito”. (Sublinhado nosso).

Nesta perspectiva constitucional, referindo-se aos tipos de Comissões de Trabalho, o artigo 65.º do RAN estabelece que “A Assembleia Nacional pode constituir, nos termos da alínea c) do artigo 160.º da Constituição da República, os seguintes tipos de Comissões de Trabalho: a) Comissões de Trabalho especializadas; b) Comissões Eventuais; c) Comissões Parlamentares de Inquérito”.
Refere o n.º 1 do artigo 80.º do RAN que “A Assembleia Nacional pode constituir Comissões Eventuais para qualquer fim determinado, cuja organização, competência, duração e modo de funcionamento são fixados, para cada caso, de acordo com as tarefas específicas que lhes forem atribuídas.”

Destarte, com a criação de uma Comissão Eventual, após recebida a proposta de iniciativa do processo de acusação e destituição do Presidente da República, apresentada por um terço dos Deputados em efectividade de funções, a Assembleia Nacional não vai para além das suas competências constitucionalmente consagradas (alínea c) do artigo 160.º da CRA).

Ademais, a criação de uma Comissão eventual, nestas circunstâncias, não estabelece um outro momento técnico não previsto na CRA, uma vez que o n.º 3 do artigo 284.º do RAN enquadra-se, exclusivamente, no momento em que a Assembleia Nacional pretende desencadear a iniciativa dos processos de acusação e de destituição do Presidente da República, que é da sua incumbência, conforme consagra a alínea a) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA.

Por outro lado, tal como as restantes Comissões de Trabalho, estabelece o artigo 66.º do RAN que as Comissões Eventuais “são constituídas por resolução da Assembleia Nacional, conforme o previsto na alínea f) do n.º 2 do artigo 166.º da Constituição da República”.

Ora, sendo as Comissões Eventuais constituídas por resolução da Assembleia Nacional, devem ser observadas as regras inerentes às deliberações deste órgão, previstas no artigo 159.º da CRA (e reiteradas no artigo 37.º do RAN), segundo o qual “As deliberações da Assembleia Nacional são tomadas por maioria absoluta dos Deputados presentes, desde que superior a mais de metade dos Deputados em efectividade de funções, salvo quando a Constituição e a lei estabeleçam outras regras de deliberação”.

Portanto, a criação de uma Comissão Eventual, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, para elaboração de um relatório parecer sobre a matéria de destituição do Presidente da República decorre do Regimento da Assembleia Nacional, aprovado pela Lei n.º 13/17, de 6 de Julho (da Lei Orgânica), ex vi das alíneas a) e c) do artigo 160.º, das alíneas b) e f) do n.º 2 do artigo 166.º e do artigo 159.º, todos da CRA.

O n.º 3 do artigo 284.º do RAN, ao referenciar a maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções para a criação da Comissão Eventual, apoia-se, também, no artigo 159.º in fine da CRA, que confere à lei, competências para estabelecer outras regras de deliberação fora da regra geral, quando refere “(…) salvo quando a Constituição e a lei estabeleçam outras regras de deliberação” (sublinhado nosso). Quer o Grupo Parlamentar da UNITA, na interposição da presente acção, quer a Assembleia Nacional, no seu pronunciamento, referem-se a isso, nos autos (fls. 4 e 22, respectivamente).

No entanto, a criação da Comissão Eventual, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, não é o único procedimento estabelecido no artigo 284.º do RAN pois, para além deste procedimento, outras etapas procedimentais se podem observar, decorrentes da comunicação ou petição de procedimento, onde a Assembleia Nacional apresenta o pedido de destituição do Presidente da República perante o Tribunal Supremo ou Tribunal Constitucional, conforme o caso e na referência à proposta de iniciativa de um terço dos Deputados em efectividade de funções, embora esta e a respectiva resolução constituírem seus anexos (Cfr. n.ºs 5, 6 e 7 do artigo 284.º do RAN).

Nestes termos, o Tribunal Constitucional considera que a Assembleia Nacional, nas vestes de legislador ordinário, não extravasa as suas competências, nem cria um novo momento técnico e não contraria o espírito do artigo 129.º da CRA, ao prescrever, no n.º 3 do artigo 284.º do RAN, a criação de uma Comissão Eventual, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, pois no âmbito da organização e funcionamento da Assembleia Nacional, a CRA confere poderes a este órgão de soberania para constituir Comissões de Trabalho (artigos 155.º, 159.º e 160.º).

c) Sobre o Quórum de Votação (Deputados presentes e/ou em efectividade de funções)

O Requerente alega, também, que a intervenção de maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, no âmbito da votação para criar uma Comissão Eventual, nos termos do n.º 3 do artigo 284.º do RAN (norma infraconstitucional), viola os limites definidos para a organização e funcionamento da Assembleia Nacional (artigo 159.º da CRA), onde se estabelece que “as deliberações da Assembleia Nacional são tomadas por maioria absoluta dos Deputados presentes (…).

Aduz, ainda, o Requerente, que a norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN viola, igualmente (por vício material) o conteúdo do n.º 3 do artigo 169.º da CRA, segundo o qual os projectos de resolução da Assembleia Nacional são aprovados por maioria absoluta dos Deputados presentes, desde que superior a mais de metade dos deputados em efectividade de funções.

Uma vez que o legislador constituinte não estabeleceu os requisitos e procedimentos para a assumpção, por parte da Assembleia Nacional, dos processos de acusação e de destituição do Presidente da República, veio a própria Assembleia Nacional, no âmbito do seu poder regimentar, a fazê-lo; e essa é, em última instância, a mais autêntica vocação da Assembleia Nacional (órgão legislativo por excelência, porquanto a ela cabe exercer o poder legislativo do Estado, conforme dispõe o n.º 2 do artigo 141.º da CRA).

Destarte, o artigo 284.º do RAN, em toda a sua dimensão, é o corolário dessa manifestação constitucional conferida à Assembleia Nacional, e tê-lo feito através de uma Lei Orgânica (como é o caso da Lei n.º 13/17, de 6 de Julho, que aprova o RAN), reforça a dignidade das normas regimentais que vêm concretizar os pressupostos constitucionais previstos no artigo 129.º da CRA.

Ora, é, na verdade, o Regimento da Assembleia Nacional, o diploma que estabelece os procedimentos para a apreciação e votação dos processos que tramitam na Assembleia Nacional, por força dos artigos 155.º e 160.º, ambos da CRA.

A CRA e o RAN estabelecem, como princípio básico de funcionamento da Assembleia Nacional, que as deliberações deste órgão são tomadas por maioria absoluta (Cfr. artigo 159.º da CRA e artigos 37.º e 155.º n.º 1, ambos do RAN).

O artigo 159.º da CRA dispõe que “As deliberações da Assembleia Nacional são tomadas por maioria absoluta dos Deputados presentes, desde que superior a mais de metade dos Deputados em efectividade de funções, salvo quando a Constituição e a lei estabeleçam outras regras de deliberação”. (sublinhado nosso).

Atente-se que, esta é a mesma regra de deliberações do Plenário, que vem estabelecida nos artigos 37.º e 155.º, ambos do RAN, e todos estes preceitos admitem, in fine, excepções a esta regra, quando a Constituição e a lei estabeleçam outras regras de deliberação.
Só por isso não parece estranho que o mesmo Regimento estabeleça que a Comissão Eventual que tem a missão de elaborar o relatório parecer sobre o processo de destituição do Presidente da República seja composta por maioria absoluta dos Deputados e respeitando o princípio da proporcionalidade.

Porém, quis o legislador ordinário, por força do n.º 3 do artigo 284.º do RAN, que esta deliberação, a ser favorável, fosse concretizada por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções, o que é um acto absolutamente legal, decorrente das competências da Assembleia Nacional, seguindo a mesma opção das alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA. Nota-se, que todos os quóruns previstos no artigo 129.º da CRA coincidem com a referência aos Deputados em efectividade de funções e não aos Deputados presentes.

Destarte, a eleição feita pelo legislador ordinário ao estabelecer no n.º 3 do artigo 284.º do RAN como quórum uma maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (e não dos Deputados presentes) segue o princípio do paralelismo de forma para a matéria em questão, estando em plena harmonia com o comando constitucional previsto nas alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 129.º (que são normas especiais sobre a matéria), na medida em que para o processo de destituição do Presidente da República, a regra plasmada é a da “maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções”. Portanto, a actuação do legislador garantiu a necessária coerência às normas sobre a matéria sub judice, evitando antinomia normativa, culminando na consagração de uma solução legislativa pragmática. Por outro lado, dispunha a Assembleia Nacional de competência para estabelecer outras regras de deliberação (artigo 159.º in fine da CRA).

A alegação do Requerente, que a norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN viola, igualmente (por vício material), o conteúdo do n.º 3 do artigo 169.º da CRA, não colhe, pois, esta disposição legal enquadra-se, no âmbito do Processo Legislativo, nas situações de aprovação, in casu, de resoluções, o que não é o caso.

No caso vertente está em causa a deliberação do Plenário da Assembleia Nacional para a criação de uma Comissão Eventual e não um acto integrado no âmbito do Processo Legislativo, o que se verificaria apenas na aprovação da resolução sobre o relatório parecer da referida Comissão Eventual. A criação de uma Comissão Eventual pela Assembleia Nacional deve enquadrar-se no âmbito da sua organização e funcionamento.

Neste contexto, a norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN, ao estabelecer como quórum de votação para a criação de uma Comissão Eventual, a maioria dos Deputados em efectividade de funções e não a maioria dos Deputados presentes, não viola os parâmetros definidos nos artigos 159.º e 169.º, n.º 3, ambos da CRA e o Tribunal Constitucional não vislumbra qualquer inconstitucionalidade.

d) Sobre os poderes conferidos aos Tribunais Supremo e Constitucional obstruídos pela Assembleia Nacional

O Requerente alega a inconstitucionalidade parcial da norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN, porque o artigo 129.º da CRA confere ao Tribunal Supremo e ao Tribunal Constitucional poderes para conhecer e decidir sobre os processos de destituição do Presidente da República, e esses poderes não podem ser condicionados ou obstruídos pela Assembleia Nacional, pois, a este órgão de soberania incumbe tomar a iniciativa e fundamentar os processos.

Importa, assim, apreciar em que medida o teor da norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN condiciona ou obstrui os poderes conferidos ao Tribunal Supremo e ao Tribunal Constitucional, pelo artigo 129.º da CRA, para conhecer e decidir sobre os processos de acusação e de destituição do Presidente da República.

Vejamos:

No âmbito do processo de destituição do Presidente da República, o n.º 3 do artigo 129.º da CRA estabelece que “Compete ao Tribunal Supremo conhecer e decidir os processos crimi¬nais a que se referem as alíneas a), b) e e) do n.º 1 do presente artigo instaurados contra o Presidente da República”, estabelecendo no n.º 4 do mesmo preceito constitucional que “Compete ao Tribunal Constitucional conhecer e decidir os processos de destituição do Presidente da República a que se referem as alíneas c) e d) do n.º 1, bem como do n.º 2 do presente artigo”.

Verifica-se, assim, que, no ordenamento jurídico vigente, a destituição do Presidente da República é, em todos os casos, decidida judicialmente, por um Tribunal Superior, contrariamente ao que sucede em alguns países em que o mesmo processo decorre de “(…) um procedimento jurídico intentado por um órgão legislativo que se erige em tribunal (…), (ver Guy Hermet, Bertrand Badie, Pieer BirnBaum e Philippe Braud, Impeachment, Dicionário de Ciência Política e das Instituições Políticas, Escolar Editora, p. 137).

Porém, para que, quer o Tribunal Supremo, quer o Tribunal Constitucional, possam decidir sobre a destituição do Presidente da República, carece de impulso processual por parte da Assembleia Nacional ex vi do n.º 5 do artigo 129.º da CRA, e, não o fazem de forma arbitrária ou improvisada. Pelo contrário, o processo obedecerá a regras, que são, precisamente, as que constam da norma do artigo 284.º do RAN, cujos trâmites terão de ser respeitados.

Da leitura do sistema do artigo 129.º da CRA e das normas do RAN (artigos 283.º, 284.º e 285.º) pode-se concluir que, no processo de destituição do Presidente da República, o Legislador Constituinte não atribui tal função apenas ao Parlamento, mas optou por um modelo caracterizado pelo instituto da autorização a proceder e por uma comparticipação entre a Assembleia Nacional (órgão promotor) e os órgãos jurisdicionais, Tribunal Supremo ou Tribunal Constitucional, dependendo da natureza da infração (órgão julgador).

Neste modelo de justiça política, o instituto da autorização a proceder, é condictio sine qua non para a concretização do processo de destituição do Presidente da República, pois constitui a permissão para o desenvolvimento do processo. A autorização a proceder é a faculdade que o Plenário da Assembleia Nacional (2/3 dos Deputados em efectividade de funções) tem, de deliberar positiva ou negativamente sobre o processo de destituição do Presidente da República, nos termos da alínea c) do n.º 5 do artigo 129.º da CRA. A decisão do Parlamento neste caso é um acto habilitante do processo, concretizado por meio do mecanismo do voto, cuja tramitação é determinada pela Constituição e pelo Regimento da Assembleia Nacional.

Por conseguinte, o processo da tomada de decisão nos termos da Constituição e do Regimento da Assembleia Nacional segue uma tramitação consagrada na Constituição e na lei, no caso o Regimento da Assembleia Nacional. O processo de destituição do Presidente da República no ordenamento jurídico angolano não é um acto de exclusiva competência dos Tribunais, depende da intervenção dos dois órgãos de soberania, nomeadamente, a Assembleia Nacional – órgão promotor - e os Tribunais – órgãos julgadores. A função destes últimos só é concretizada quando decidida pelo primeiro. A intervenção dos Tribunais neste processo é tão necessária quanto a deliberação da Assembleia Nacional.

As competências conferidas aos Tribunais Superiores referidas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 129.º da CRA encontram-se constitucionalmente condicionadas a uma iniciativa da Assembleia Nacional, cuja atribuição lhe cabe com exclusividade, de acordo com o estabelecido no n.º 5 do artigo 129.º da CRA.

Assim sendo, quer o Tribunal Supremo, quer o Tribunal Constitucional, conforme o caso, não podem promover a responsabilização criminal e a destituição do Presidente da República sem que haja o impulso acusatório da Assembleia Nacional.
Não se descortina, assim, qualquer dissonância entre o n.º 3 do artigo 284.º do RAN e as disposições constitucionais aplicáveis aos processos de responsabilização criminal e de destituição do Presidente da República, que obstrua ou condicione o exercício das competências do Tribunal Supremo e do Tribunal Constitucional, previstas no artigo 129.º da CRA, que devem ser exercidas após a aprovação da proposta de iniciativa e deliberação da Assembleia Nacional.

Pelo acima expendido, considera esta Corte Constitucional que não existem desconformidades entre a norma do n.º 3 do artigo 284.º do RAN com os comandos dos n.ºs 3, 4 e alíneas b) e c) n.º 5 do artigo 129.º da CRA, e que a norma regimentar em causa não viola o princípio da supremacia da Constituição e legalidade consagrado no artigo 6.º da Constituição da República de Angola.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA DO N.º 3 DO ARTIGO 284.º DO REGIMENTO DA ASSEMBLEIA NACIONAL.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 02 de Abril de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto (Votou com Reserva)
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi