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ACÓRDÃO N.º 883/2024

 

PROCESSO N.º 1013-C/2022
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:


I. RELATÓRIO

Valter Felipe da Silva, Jorge Gaudens Pontes Sebastião, José Filomeno de Sousa dos Santos e António Samalia Bule Manuel, melhor identificados nos autos, vieram ao Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do artigo 49.º e do artigo 50.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão do Plenário do Tribunal Supremo.

O recorrido Acórdão, nos autos do Processo n.º 135/20, condenou-os em segunda instância, pela prática dos crimes de peculato, burla por defraudação e tráfico de influência todos na forma continuada, nas penas fixadas de cinco a oito anos de prisão maior, multa e indemnização ao Estado no valor de cinco milhões de Kwanzas a título de danos morais e oito milhões quinhentos e doze mil e quinhentos dólares norte americanos, a título de lucros cessantes e danos emergentes.

Inconformados com esta decisão, os Recorrentes notificados para apresentarem as suas alegações, no essencial, tendo em conta as questões comuns que interessam à decisão do presente recurso, enunciam:

1. O Acórdão não observou o princípio da legalidade pois, fez tábua rasa à questões prévias essenciais para a descoberta da verdade material, tais como, ter desvalorizado as resposta dadas pelo Presidente da República, na qualidade de Titular do Poder Executivo, entidade com competência para orientar, dirigir e executar toda a política económica, financeira, fiscal e outras acções do Estado Angolano, v.g. do artigo 120.º da CRA.

2. O Tribunal deu como não provado que a carta junta pela defesa, em audiência, fosse do Presidente da República, não porque não obedecia aos requisitos exigidos pelo Tribunal, nomeadamente, a assinatura reconhecida, mas pelo seu conteúdo, que se assemelhava à contestação apresentada pela defesa.

3. O teor desta decisão, que desvaloriza as respostas dadas pelo então Presidente da República, além de conter inverdades e desrespeitar um órgão de soberania e Mais Alto Magistrado da Nação, coloca em causa a idoneidade, o bom-nome, a reputação e a dignidade da pessoa humana que, na altura, era o titular deste órgão, bem como fez graves acusações de falsificação de documento e uso de documento falso.

4. Em nome da descoberta da verdade material e da realização da justiça, a título de questão prévia, foi suscitado um incidente de falsidade, por facto superveniente pois, a carta a que a decisão faz referência só chegou ao conhecimento da defesa com a notificação da decisão objecto do recurso, logo não poderia ter sido junta pela defesa em audiência, nessa altura o que foi requerido foi tão somente que o então Presidente fosse ouvido como declarante, pedido esse que não mereceu deferimento.

5. Compulsados os autos, foi possível constatar que o próprio Tribunal a quo recebeu a carta, em resposta ao questionário remetido ao então Presidente através do oficio n.º 316.GAB.J.CPRES.TS/2019 de 12 de Dezembro de 2019, do Gabinete do Venerando Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo e, o próprio Tribunal juntou aos autos.

6. Não se vislumbra nos autos qualquer orientação para que aquela entidade reconhecesse a sua assinatura, sendo que, o Tribunal tinha e tem à sua disposição, vários meios para confirmar a autoria e a veracidade do teor das respostas, uma vez que o seu Autor, na altura, estava vivo e localizado.

7. O Tribunal deve ser o sujeito processual equidistante das partes e, em homenagem aos princípios do acusatório e do contraditório ou da contraditoriedade, todos com dignidade constitucional, ex vi do artigo n.º 2 do artigo 174.º da CRA, deve considerar a versão dos factos não só apresentada pelo Ministério Público, mas também pela defesa.

8. A audição do Engenheiro José Eduardo dos Santos foi requerida pela defesa ainda na instrução preparatória ao Ministério Público, sendo desrespeito do artigo 73.º da CRA, a ausência de resposta ao requerimento de fls. 869, Volume VI dos autos, numa altura em que o declarante se encontrava em Angola.

9. Não corresponde a verdade a tese defendida por aquele Tribunal, confirmada indevidamente pelo Tribunal Pleno, segundo a qual, uma vez valorada a carta "(...) não excluiria a ilicitude do comportamento do arguido porque se trata de ordem ilegal à qual não deve obediência" pois, o Tribunal não fundamenta do ponto de vista legal esta sua conclusão como mandava o preceito do artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro (Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum). O dever de fundamentação é um imperativo do processo penal democrático e de um processo justo e equitativo sendo eles corolários do princípio da dignidade humana e da culpa (artigos 1.º, 29.º, 63.º, 67.º e 72., todos da CRA). Trata-se de um "dever" e não de um "poder" ou "poder-dever". A fundamentação da decisão judicial é uma garantia e proteção do Arguido de eventuais arbitrariedades dos tribunais e de salvaguarda do processo justo equitativo.

10. Por outro lado, não tinha como o Tribunal chegar a conclusão de que a ordem era ilegal se nunca quis confirmar, se tinha sido ou não, o então Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo o autor da carta, e se devia obediência hierárquica a aquele órgão (Presidente da República e Titular do Poder Executivo), que o nomeou e com poderes de o exonerar, não devia obedecer as suas instruções, ex vi artigos 49.º e 50.º da Lei n.º 16/10 de 15 de Julho (Lei do Banco Nacional de Angola).

11. Não se compreende que a decisão recorrida aluda que o Governador do BNA não tinha competência para proceder tal transferência sem passar pelo Conselho de Administração ou Comité de Credito, se para além de ficar provado em audiência de discussão e julgamento da causa que o Governador tinha esta competência, até como Administrador do pelouro e a operação em causa foi ordenada pelo gestor único dos dinheiros públicos (Presidente da República/Titular do Poder Executivo) em Angola e simplesmente executada pelo arguido, que não agindo desta forma, estaria a incorrer na prática do crime de desobediência e, consequentemente, a ser exonerado do cargo.

12. Outrossim, atendendo que, na audiência em que foi lido o acórdão condenatório objecto do presente recurso e do incidente de falsidade suscitado, foram usadas novas tecnologias de informação, que garantiram a participação de um dos Venerandos Juízes por videoconferência, o mesmo poderia ser feito em relação ao declarante.

13. A decisão em pauta, viola os princípios e direitos fundamentais citados, por falta de fundamentação e inobservância de regras processais básicas, como atestam as declarações de votos vencidos dos Juízes Conselheiros que não subscreveram a decisão recorrida.

14. Atendendo que o Acórdão objecto deste recurso foi apenas assinado e adoptado por 4 votos a favor e 4 votos contra, como atestam as respectivas declarações de votos, estando, desta feita, eivado de vício, o que demonstra claramente que estamos perante um empate técnico e, como corolário, não confirma nem revoga a decisão recorrida, devendo o Relator retrabalhar o projecto de acórdão, fundamentando a decisão proposta para que seja submetido à uma nova sessão de discussão e deliberação, convencendo alguns dos integrantes do Tribunal Pleno a mudar o seu sentido de voto, além de que;

15. Dizem as disposições conjugadas dos artigos 8.º, n.º 1 e 22.º n.º 2 da Lei n.º 13/1, de 18 de Março (Lei Orgânica do Tribunal Supremo) que “o Tribunal Supremo é composto por até 21 Juízes Conselheiros, incluindo o Presidente e o Vice-Presidente” e que “o Plenário do Tribunal Supremo é constituído por todos os Juízes que compõem as Câmaras e só pode funcionar com a presença da maioria absoluta dos Juízes em efectividade de funções”.

16. Nos termos do artigo 49.º da então Lei do BNA, “O Governador é um órgão unipessoal que representa e responde pelo Banco Nacional de Angola perante o Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo”…". Assim, o órgão máximo do BNA é o seu Governador e este subordina-se, somente, ao Presidente da República, de quem pode e deve receber ordens, instruções e orientações, por isso, compete ao Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo definir e dirigir a política monetária, cambial e financeira de Angola, e, ao BNA, compete participar e executar estas política

17. No caso em julgamento, o arguido Valter Filipe estava numa relação de supra-infra-ordenação, uma vez que, segundo o preceito do artigo 49.º da Lei n.º 16/10, de 15 de Julho, que diz claramente que "O Governador é um órgão unipessoal que representa e responde pelo Banco Nacional de Angola perante o Presidente da República, Titular do Poder Executivo e perante a Assembleia Nacional nos termos da Constituição e da presente lei".

18. Desde o momento em que o projecto foi apresentado ao Presidente da República e Titular do Poder Executivo à altura dos factos e atendendo à finalidade que o mesmo visava, teve sempre o seu beneplácito, a sua liderança e coordenação geral, sendo que todas as operações do processo desde o contrato principal e todos outros contratos de suporte à operação foram autorizadas pelo ex–Presidente e Titular do Poder Executivo (fls. 2295, 2296, 2302, 2302 e ss).

19. Os actos administrativos e de soberania que foram transformados em processo-crime, enquadravam-se nas competências do Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo, consagrados nas alíneas a) e b) do artigo 120.º da Constituição da República, assim, está-se perante um processo-crime juridicamente inexistente, por violar igualmente o artigo 127.º da Constituição da República, porque, com o presente processo indirectamente, sindica-se os actos administrativos e soberanos do ex-Presidente da República e Titular do Poder Executivo.

20. Ora, ficou provado nos autos, que não foi transferido e nem recebido por nenhum dos arguidos o montante da operação os €24.850.000, 00 (Vinte e Quatro Milhões e Oitocentos e Cinquenta Mil Euros). Estes valores "foram transferidos para uma conta domiciliada no Banco Millennium BCP em Portugal, em nome de empresas tituladas pela MFS, na agência DES-LISBOA com o IBAN n.º PT50.0033.0000.4550.4527.4810.5." (vide fls. 2905).

21. Refira-se que a MFS é uma pessoa jurídica distinta que dispõe de personalidade jurídica própria e nunca foi requerida o levantamento da mesma.
22. Assim, a falta de fundamentação pelo Acórdão recorrido do modo como o Arguido, supostamente, praticou os crimes de burla por defraudação e do tráfico de influência é inconstitucional por violação do dever de fundamentação e do processo justo e equitativo, previsto no n.º 4 do artigo 29.º e artigo 72.º ambos da CRA; artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos.

23. No artigo 54.º da acusação, (vide fls. 980), lê-se apenas"(...) que contactaram instituições públicas, sobretudo o antigo Presidente da República, (…) Tudo o resto que consta quer na pronúncia e no acórdão de Primeira Instância e agora confirmado pelo Acórdão recorrido, não resulta da acusação. Trata-se de pura invenção do Tribunal recorrido, substituindo-se ao Ministério Público com vista a justificar a decisão que tomou. Para além de violar o princípio da imutabilidade da acusação, violou, igualmente os princípios da legalidade no plano da determinabilidade e do acusatório (n.º 2 do artigo 174.º da CRA). Dito de outro modo, o Tribunal tem a obrigação de ser independente, imparcial e equidistante travestiu-se na qualidade de um Tribunal inquisitorial e "achou por bem" colmatar lacunas da acusação em clara violação do direito ao processo justo e equitativo.

24. O Tribunal Supremo ao afastar-se da análise factual e ter concluído como concluiu, faltou com o seu dever de fundamentação que impõe que se faça uma análise crítica dos meios de prova e que a subsunção dos factos à norma seja com base no que efetivamente se produziu em audiência e não com critérios escusos e levianos.

25. Na audiência de julgamento do dia 16 de Janeiro de 2020, fls. 2110, a defesa, em face das declarações prestadas pelo declarante Archer Mangueira, requereu ao Tribunal recorrido, em homenagem aos princípios da verdade material e objectiva, que solicitasse, por via de uma Carta Rogatória ao Tribunal Superior de Justiça de Londres, certidão do "Acordo Consensual", assinada pelas partes incluindo pelo Estado angolano representado pelo seus Advogados a NORTON ROSE FULLBRIGHT, vide fls. 1792 e ss.

26. Em resposta ao pedido supra, na audiência de julgamento do dia 18 de Fevereiro de 2020, o Tribunal indeferiu o pedido, alegando " morosidade inerente às Cartas Rogatórias, mas as cópias do mesmo "Acordo de Consenso" e do "Draft do Acordo" que cumpriram todas as formalidades legais, e que se pretendia que fosse o Tribunal da Causa a solicitar ao Tribunal Inglês para que não restassem dúvidas, foram admitidas pelo Tribunal recorrido e consideradas "documento bastante”. (fls. 2324 e ss.), mas, que de forma estranha, não foram tidas como prova!

27. Afinal, era possível emitir Carta Rogatória. Logo, andou muito mal o Acórdão recorrido que confirmou a decisão e desvalorizou o conteúdo da carta do Presidente da República de Angola, Eng. José Eduardo dos Santos a altura dos factos, violando, deste modo, os princípios da ampla defesa, contraditório e do não esgotamento do poder jurisdicional na produção da prova e mais uma vez do processo justo e equitativo. O Acórdão recorrido violou o princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, na medida em que ignorou por completo todas as provas e dúvidas que o próprio processo levanta. Em concreto, o Acórdão recorrido violou o princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, na medida em que ignorou o facto de os contratos do processo que culminariam com a obtenção do financiamento terem sido todos autorizados pelo então Presidente da República e Titular do Poder Executivo, segundo Carta sua constante nos autos e declarações dos arguidos.

28. O Acórdão recorrido que confirma a pena de prisão aplicada pelo do Tribunal de Primeira Instância e a indemnização em que o Arguido foi condenado, viola os princípios da proporcionalidade, da justiça e do processo justo e equitativo.

29. O Acórdão do recorrido violou o princípio da pessoalidade e intransmissibilidade da responsabilidade penal (n.º 1 do artigo 65.º da CRA), pois o Arguido sempre agiu em nome e no interesse da pessoa colectiva (a MFS), logo, qualquer que fosse a sua responsabilidade, caso existisse, deveria ser aferida a partir da existência ou não da responsabilidade penal das pessoas colectivas e apenas incidiria sobre o caso se concluísse pela desconsideração da personalidade jurídica, o que não ocorreu.

30. Assim, o Acórdão recorrido não tendo respeitado os princípios mais elementares de um processo penal democrático, processo justo e equitativo, da legalidade de intervenção penal, da produção e valoração da prova, do acusatório contraditório, da presunção de inocência e do in dubio pro reo, da proporcionalidade, é nulo e inconstitucional, pois transformou em culpado um inocente.

31. O Acórdão em causa não conheceu, nem julgou o recurso apresentado pelo aqui Recorrente António Samalia Bule Manuel, limitando-se a conhecer e a julgar (grosso modo) o recurso apresentado pelo Co-Réu Jorge Gaudens P. Sebastião, como se este fosse o único Recurso apresentado, violando o n.º 2 do artigo 660.º do CPC. Aplicável “ex vi” do n.º 2 do artigo 3.º do CPP), o que o torna nulo por omissão de pronúncia (alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, aplicável "ex vi" do n.º 2 do artigo 39.º CPP) e traduz-se igualmente na violação do princípio da legalidade (n.º 2 do artigo 6.º da CRA).

32. O Tribunal "a quo", em clara violação do princípio da vinculação temática, corolário do princípio constitucional do acusatório, e da imparcialidade (n.º 2 do artigo 174.º e 175.º da CRA), condenou o Recorrente pelos crimes de burla por defraudação e peculato, quando este foi acusado e pronunciado apenas pelos crimes de associação criminosa e peculato, tendo sido posteriormente despronunciado do crime de associação criminosa, o que torna nulo o acórdão recorrido por violação do artigo 407.º , (alínea b) do n.º 1 do artigo 426.º).

33. Não ficou provado nos autos, porque tal não se verificou, que o Co-Arguído António Manuel tenha usado de algum artifício fraudulento, falsificando o que quer que seja ou usando de uma qualquer falsa qualidade, para que lhe fosse entregue os USD 500.000.000,00 (valor transferido para conta da Perfectbtit, sociedade da qual o Recorrente não tem qualquer relação seja de que natureza for), sendo que o mesmo nunca recebeu e nem usufruiu de tal valor (o único em relação ao qual o Tribunal "a quo" diz que o visado terá participado da sua transferência).
Terminam as suas alegações, requerendo que a decisão judicial impugnada, seja declarada inconstitucional, pois, violou, o artigo 2.º, n.º 2 do artigo 6.º, artigo 23.º, artigo 29.º, n.º 1 do artigo 65.º, artigo 63.º, n.°s 1 e 2 do artigo 67.º, artigo 72.º, n.º 2 do artigo 174.º, artigo 175.º, todos da CRA, artigo 5.º, n.º 3 do artigo 44.º, 18.º, 44.º, parágrafo único 3 do artigo 313.º, todos do CP vigente à data dos actos, artigo 407.º, artigo 431.º, ambos do CPP, n.º 2 do artigo 660.º e alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º, ambos do CPC, aplicáveis "ex vi" do n.º 2 do artigo 39.º do CPP, bem como o artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, pelo que, tal decisão judicial deve ser declarada inconstitucional.

O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora, apreciar, para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE

Os Recorrentes, são partes no processo sobre o qual recaiu a decisão proferida pelo Plenário do Tribunal Supremo, que confirmou a decisão da 2.ª Secção da Câmara Criminal daquele Tribunal, pelo que têm pois, interesse directo em que a causa seja apreciada pelo Tribunal Constitucional, decorrendo disto a legitimidade para a interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto apreciar o Acórdão do Plenário do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 135/20, e verificar se a decisão recorrida violou ou não princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIANDO

A presente sindicância constitucional é fundamentada na alegada violação dos princípios da legalidade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, da ampla defesa e da presunção de inocência, do processo justo e equitativo, do dever de fundamentação das decisões judiciais e do contraditório constantes do n.º 2 do artigo 6.º, 29.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 67.º, artigo 72.º, n.º 2 do artigo 174.º, respectivamente, todos da Constituição da República.
Embora em sede das suas alegações os Recorrentes tenham exposto várias razões de facto e de direito que os trouxeram a esta Corte, invocando questões de fundo, principalmente, no que diz respeito às provas carreadas aos autos, e que culminaram com as respectivas condenações, conforme atestam fls. 3068 a 4046, a apreciação deste Tribunal Constitucional, no legítimo interesse de administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional, irá recair sobre as questões de direito que manifestamente se consubstanciem na ofensa dos princípios constitucionais e na violação dos direitos alegados, não cabendo a apreciação do mérito da causa, nem tão pouco a valoração da prova efectuada pelo Tribunal ad quem.

Outrossim, não obstante os Recorrentes terem procedido a apresentação das suas alegações de modo individual no que diz respeito à exposição dos factos e dos fundamentos de direito, em sede da apresentação das suas conclusões, constatou-se que as mesmas são similares, na medida em que mencionam os mesmos princípios e direitos e, neste sentido, este Tribunal irá apreciar em conjunto as questões colocadas por cada um dos Recorrentes e fá-lo-á nos seguintes termos e fundamentos:

a) Quanto à alegada ofensa aos Princípios da Presunção de Inocência, da Ampla Defesa e do Contraditório

Alegam os Recorrentes que o Acórdão recorrido violou os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, na medida em que ignorou por completo todas as provas e dúvidas que o próprio processo levantou.

Alegam ainda os Recorrentes, que o Acórdão recorrido violou os referidos princípios na medida em que ignorou o facto de os contratos do processo que culminariam com a obtenção do financiamento terem sido autorizados pelo antigo Presidente da República e Titular do Poder Executivo, segundo Carta sua constante nos autos e declarações do Recorrente Valter da Silva e demais co-arguidos. Mais grave, ainda, é o facto de o Acórdão recorrido ter sancionado de forma negativa as referidas declarações, pelo não cumprimento de formalidades.

Os princípios do contraditório ou da ampla defesa e o da presunção de inocência são particularidades que consubstanciam o princípio do direito a um julgamento justo e conforme, que se encontra estabelecido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 67.º e no n.º 2 do artigo 174.º, ambos da CRA.

A presunção de inocência é o princípio que estabelece ser o réu inocente até prova contrária. Em particular, o n.º 2 do artigo 67.º da Constituição afirma que “presume-se inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. Este princípio responde a duas necessidades fundamentais afirmar a presunção de inocência e prever a prisão preventiva antes que a pena se torne irrevogável. O arguido, de facto, não é equiparado ao culpado até o momento da sentença final. Isto implica a proibição de antecipação da pena, ao mesmo tempo que permite a aplicação de medidas cautelares. Este é também o sentido do Tribunal Constitucional Italiano (sentenza della Corte Constituzionalle n.º 124/1972). Esta disposição deve ser interpretada no sentido de que o arguido não deve ser considerado culpado, mas apenas “acusado”.

Com base neste princípio, o ónus da prova da culpa do arguido recai sobre o Ministério Público, enquanto a defesa tem a função de provar a existência de factos favoráveis ao arguido. Por outras palavras, não cabe a este último demonstrar a sua inocência, que deve, de facto, ser presumida, mas sim à acusação demonstrar a sua culpa. Dada a presunção de inocência, para declarar publicamente que um indivíduo é culpado, é necessário, portanto, provar, para além de qualquer dúvida razoável que ele é responsável pelo crime, demonstrando que foi realmente o autor do crime. Nos casos em que as provas sejam omissas, insuficientes ou contraditórias, o juiz deverá proferir a sentença de absolvição (Luigi (LUCCHINI, Elementi di procedura penale, 2.ª ed., Firenze: G. Barbèra, 1899, p. 15; Giulio ILLUMINATI, La presunzione d'innocenza, Bologna, 1979, p. 5).

A Constituição, em sua formulação, estabeleceria a proibição de considerar o acusado culpado antes da sentença final, mas não o presumiria inocente. Portanto, o n.º 2 do artigo 67.º, simplesmente afirmaria que durante o processo não há culpado, mas apenas um acusado. É fácil objectar que tal conclusão é tão óbvia que a sua consagração na Constituição seja tautológica. É evidente, de facto, que durante o julgamento não pode haver culpado mas apenas um “acusado”, pois é a própria função do julgamento, através da verificação da ilegalidade criminalmente relevante, a verificar a culpa.

Para compreender plenamente o alcance da norma contida no n.º 2 do artigo 67.º da Constituição, a interpretação sistemática das normas é de máxima utilidade constitucional que envolve a jurisdição criminal. Como já afirmado por importantíssimos doutrinadores, aqui citados, surge essencialmente um modelo garantístico: seus quatro axiomas de referência (Nulla poena, nulla culpa sine iudicio; nullum iudicium sine accusatione; nulla accusatio sine probatione; nulla probatio sine defensione) são facilmente obtidos a partir da leitura coordenada dos artigos. 29.º, 63.º, 64.º, 65.º 66.º, 67.º, 72.º e n.º 2 do artigo 174.º todos da Constituição. Portanto, de uma perspectiva constitucional, para um julgamento "justo" deve ser entendido como aquela série de actividades realizadas pelo juiz imparcial, nas formas prescritas por lei e visa a formulação, em interrogatório público entre acusação e defesa, de um julgamento que consiste na verificação ou falsificação empírica de uma hipótese acusatória e na subsequente condenação ou absolvição de um arguido.

Este modelo baseia-se em premissas epistemológicas precisas: o cânone da legalidade, antes de tudo, para a qual o processo penal não é uma explicação do princípio da autoridade, mas sim a síntese de valores partilhados na sociedade civil e que se expressam através da lei e, com igual dignidade, do método de jurisdição; se a norma substancial tem carácter constitutivo, no modelo garantístico a sentença penal tem carácter "recognitivo" em relação a este último.

Mas o carácter essencial do modelo garantístico – reconhecido, convém reiterar, na nossa Constituição – é no conceito de verdade que ela se apropria: trata-se da verdade que emerge das formas do procedimento probatório e que, como tal, surge definida como verdade formal, "que não afirma ser a verdade" precisamente porque é fraca como todo facto humano.

O princípio da presunção de inocência representa uma das garantias fundamentais do processo penal e corresponde ao sentido jurídico de não atribuição da culpa ao cidadão, em toda a fase processual, até que haja trânsito em julgado da decisão condenatória. É este o sentido que se extrai do n.º 2 do artigo 67.º da CRA, nos termos do qual presume-se “inocente todo o cidadão até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Ora, o princípio em causa decorre da não repartição do ónus da prova entre o arguido e a acusação. Ou seja, o arguido não tem a obrigação de provar a sua inocência para ser absolvido, cabendo este papel ao Ministério Público.
Segundo Jorge Miranda e Rui Medeiros, o princípio da presunção de inocência “assenta na ideia-força de que o processo deve assegurar todas as necessárias garantias práticas de defesa do inocente e não há razão para não considerar inocente quem não foi ainda solene e publicamente julgado culpado por sentença transitada em julgado. Daqui resulta, entre outras consequências, a inadmissibilidade de qualquer espécie de culpabilidade, por associação ou colectiva, e que todo o acusado tenha direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular…” (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2005, pp. 722 e 723).
Do princípio da presunção de inocência decorre o princípio do in dubio pro reo e, a este respeito, Vasco Grandão Ramos defende que “sempre que a prova produzida seja insuficiente e não conduza à formação do juízo de certeza sobre a existência da infracção ou de que foi o arguido que a cometeu, deve ser absolvido” (Direito Processual Penal, 2.ª Edição, Escolar Editora, 2015, p. 81).
Por seu turno, o princípio do contraditório é um mecanismo jurídico que permite ao arguido exercer o seu direito de defesa, em relação à sua apreciação. Este princípio fundamenta-se na expressão latina audiatur et altera pars (que significa que ninguém pode ser acusado sem ser ouvido, as partes devem ter as mesmas prerrogativas durante o desenvolvimento da relação jurídica processual), expressão essa que visa garantir a ciência bilateral de todos os actos e termos processuais de tal modo que tem como objetivo garantir a efetivação do binômio informação acusação - defesa.

De acordo com Carlos Blanco de Morais, em sede de processo constitucional, implica fundamentalmente o direito assistido a cada parte de conhecer as condutas do juiz, da contraparte (nomeadamente das questões de constitucionalidade por ela suscitadas) ou de sujeitos processuais com interesse no processo, assim como a faculdade de tomar posição sobre elas mediante o exercício do direito a resposta. A sua concretização dá-se sobretudo na fase das alegações, aplicando-se para o efeito as disposições do Código de Processo Civil com as devidas adaptações (Cfr. Justiça Constitucional, Tomo II, Direito do Contencioso Constitucional, Coimbra editora, Coimbra, 2011, p. 728).

O tribunal não pode resolver o conflito de interesse que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição, fundamentado no artigo 29.º e 72.º da CRA, o qual estabelece que em todos os processos deve ser observado o contraditório entre as partes, em condições de paridade e diante de um juiz terceiro e imparcial. O princípio do contraditório garante que o tribunal deve assegurar, durante todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de comunicações ou de sanções processuais. As partes devem, pois, possuir os mesmos poderes, direitos, ónus e deveres perante o Tribunal.

O direito do contraditório estipula a regra de que nenhum conflito é decidido sem que à outra parte seja dada a possibilidade de deduzir oposição. Nesta perspectiva, este princípio proíbe a prolacção de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, e aplicando-se tal regra não apenas na 1.ª Instância, mas também na regulamentação de diferentes aspectos atinentes à tramitação e julgamento dos recursos. Não é suficiente ouvir as razões do queixoso. Terá de se conceder à parte contrária a faculdade de se defender. Trata-se de uma estrutura dialéctica, em que o impulso de uma parte confere à outra a possibilidade de realizar outro para contrariar o primeiro, exteriorizando-se no direito á audiência e no direito de resposta (Carlos Pedro Mondlane, Código de Processo Civil, Anotado e Comentado, Escolar Editora, 2.ª Ed., Maputo, 2016, p. 149).

Salvo disposição em contrário da lei, não pode pronunciar-se sobre qualquer pedido, se a parte contra à qual foi proposta não tiver sido citada e não comparecer. A observância pelo princípio do contraditório não diz respeito apenas à fase inicial do processo; nela se deve basear todo o procedimento, dentro do qual devem ser estabelecidos métodos e prazos pré-determinados para a dedução das afirmações e contra-argumentos das partes, bem como das instâncias instrutoras contrapostas, além dos necessários mecanismos de recuperação.

No âmbito do processo penal, o princípio do contraditório, entendido em suas linhas essenciais, evoca a ideia da participação simultânea e oposta das partes. A vocatio in judicium e a contestação do acusado garantem a sua actuação. Do lado objectivo, indica o método de apuração judicial dos factos, do lado subjetivo deve ser entendido como o direito do acusado de confrontar o seu acusador.

Parte da doutrina acredita, dando uma interpretação restritiva desta regra, que a prova válida para a decisão final pode ser formada exclusiva e oralmente durante o interrogatório. Desse modo, as afirmações feitas durante as investigações preliminares e secretas, ainda que contestadas a quem forneceu uma versão diferente, não seriam absolutamente utilizáveis para fins de prova do facto anteriormente declarado.

No mesmo sentido está Paolo Tonini, que amplia o sentido do contraditório e leva-nos a deduzir que o princípio consagrado na Constituição, encontraria plena aplicação mesmo quando as declarações anteriores, feitas no circuito das diligências preliminares, fossem impugnado em audiência aquele que der versão diferente dos factos, neste caso a prova válida para efeitos da decisão do julgamento será formada de forma complexa, num processo em que será respeitada a dialética entre acusação e defesa (Il contraddittorio: diritto individuale e metodo di acertamento in Revista Diritto penale e processo, Anno: 2000 - Volume: 6 - Fascicolo: 10 – pp. 1388 – 1393).

O declarante que mudar de versão não evitará o interrogatório, pois as partes poderão fazer perguntas por meio das quais será possível esclarecer os motivos das divergências em relação ao que foi anteriormente exposto. Os proponentes da interpretação restritiva argumentam que o preceito contido na primeira parte do artigo 67.º da Constituição, em virtude do qual “o julgamento criminal se rege pelo princípio da contradição da prova na formação da prova”, implicitamente impõe a sanção de nulidade nos casos em que este princípio não seja observado. A base é que ninguém pode ser sujeito de uma decisão ou provimento da parte do juiz se não for regularmente citado em julgamento ou não tenha tido a possibilidade de participar no processo a fim de fazer valer suas próprias razões.

O princípio do contraditório é um princípio fundamental no ordenamento jurídico angolano, apresenta-se como consequência do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, plasmado no artigo 29.º da CRA. isto significa que o contraditório aparece como decorrência deste artigo. Tal disposição é consubstanciada na garantia do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito a defesa das partes colocando dois fundamentais princípios que deveriam caracterizar o iter processual. Entre estes princípios encontramos de facto o do contraditório entre as partes, a ser garantido durante o decurso de todas as fases processuais. De facto, o objectivo fundamental é de garantir a posição de paridade entre todos os sujeitos mediante a garantia de um confronto dialéctico no curso do julgamento. Este princípio tem como corolário os da imparcialidade e da independência do juiz.

Para J. J. Gomes Canotilho, o direito de acesso aos Tribunais reconduz-se fundamentalmente no direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar num prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de causas e outras (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 274).

Com efeito, a garantia do exercício do contraditório que se encontra plasmado no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, visa, enquanto princípio estruturante de todo o processo (civil ou penal), evitar surpresa baseada em fundamentos que não tenham sido previamente considerados pelas partes, consequentemente reforçar, assim o direito de defesa. A violação da garantia do exercício desse direito consubstancia-se na nulidade de natureza processual.

Com base no princípio do contraditório, em geral, nenhuma pessoa pode ser julgada e sentenciada por um Juiz se não tiver sido devidamente notificada para o julgamento ou não tiver tido oportunidade de participar do julgamento para fazer valer os seus motivos. Países existem em que o arguido mesmo conduzido ao estabelecimento prisional, não é colocado no interior da cela sem que compareça o seu advogado e faça valer os seus fundamentos.

Em sede do processo penal, este princípio assume maior relevância, ao ponto de encontrar lugar nas garantias do processo criminal no próprio texto constitucional. O artigo 67.º da CRA, no n.º 1 estabelece que “Ninguém pode ser detido, preso ou submetido a julgamento senão nos termos da lei, sendo garantido a todos os arguidos ou presos o direito a defesa, de recurso e de patrocínio judiciário”. Em substância, a garantia do contraditório deve ser actuado, seja na fase da instrução preparatória, através da informação do arguido, seja na fase instrutória e discussão com o direito a paridade de posição. Tudo isto é válido, salvo nos casos de impossibilidade de natureza objectiva ou por efeito de provada conduta ilícita.

Por seu turno, o princípio do contraditório é um mecanismo jurídico que permite ao arguido exercer o seu direito de defesa. Em relação à sua apreciação, impõe- se dizer que consta dos autos de fls. 2623 a 2789, que foi dada aos Recorrentes a oportunidade de exercerem o direito a defesa. Porém, nem todos os elementos de prova oferecidos pelos arguidos foram admitidos, com particular realce da carta-resposta do declarante o antigo Presidente da República e Titular do Poder Executivo, José Eduardo dos Santos.

A não admissibilidade da Carta em referência, segundo os Recorrentes, viola o princípio do contraditório e o direito à defesa.

Vejamos, pois, se assiste razão aos Recorrentes:


Este Tribunal não tem vocação institucional de, em sede de recurso, ajuizar a valoração da prova feita pelo Tribunal recorrido, em respeito ao princípio da livre apreciação da prova que impende ao julgador, pelo que a análise cingir-se-á à admissibilidade dos meios de prova, no quadro do princípio do contraditório e do direito a defesa.

Nos presentes autos, constata-se que houve uma desconsideração pelo Tribunal a quo e pelo Tribunal ad quem da referida prova junta aos autos antes do julgamento, o que conduziu a um julgamento sem a valoração da mesma, considerada essencial, para a descoberta da verdade material colocando assim em causa, a salvaguarda de garantias constitucionalmente consagradas, rectius, o direito à defesa e o princípio do contraditório.

Na fase de instrução contraditória, a defesa requereu a audição do declarante, o antigo Presidente da República, Engenheiro José Eduardo dos Santos, que foi aceite pelo Tribunal, tendo sido o próprio Tribunal a fixar os procedimentos a serem adoptados para o efeito e a diligenciar no sentido de escolher a melhor via para entrega do questionário ao declarante.

Por intermédio da fundação (FESA) de que era patrono, o declarante remeteu um ofício ao Tribunal Supremo respondendo ao questionário enviado pelo Tribunal através do Ofício n.º 316.GAB. J. CPRES.TS/2019, de 12 de Dezembro, e tendo o Tribunal ordenado a junção aos autos (fls. 2301);

Perante o conteúdo das respostas, o Tribunal ad quem desvalorizou a carta-resposta por considerar não se terem cumprido os requisitos de autenticação da assinatura do declarante, nem mesmo o procedimento legal de envio. O Tribunal entendeu que, de acordo com fls. 2934 dos autos “neste concreto e, sem necessidade de outros argumentos, sob pena de estarmos a ser tautológicos, consideramos que, de facto, a Carta, nos moldes em que foi elaborada e enviada, nunca poderia constituir meio de prova independentemente do seu conteúdo, porque a lei não o permite”. Neste sentido, esta Corte entende que se configura, assim, tratar-se de um “venire contra factum proprium”.

Na verdade, a audição de um declarante, em sede do processo penal, constitui um acto judicial tendente à descoberta da verdade material e, no caso em concreto, a sua admissibilidade resulta do artigo 219.º do CPP em vigor à data dos factos.

Consta dos autos que, apresentada a testemunha pelos Recorrentes, a iniciativa de contactar o declarante, a determinação dos meios mais eficazes para o efeito, bem como o estabelecimento dos termos procedimentais para a resposta ao questionário, foram todos determinados pelo Tribunal.

A esse respeito, Jesus Gonzalez Pérez, assevera que “está indefeso aquele que sofre uma limitação ao direito de defesa alcançável por vias que não foram disponibilizadas pelo próprio órgão estatal, na medida em que ao julgador é exigível a atividade de proporcionar os meios de defesa necessários para o exercício pleno deste direito fundamental” (ibdem. p. 114). Apud. Rui Alves Henriques Filho, in Direitos Fundamentais e Processo, Renovar, 2008, p. 113.

No mesmo sentido, é jurisprudência firmada neste Tribunal (Acórdãos n.ºs 121/2010 e 336/2014, vide www.tribunalconstitucional.ao) que “o princípio da igualdade de oportunidades consiste em conferir à defesa e à acusação igual oportunidade para intervir em todas as fases do processo”.

Em face do exposto, esta Corte entende que, por não ter sido admitida a carta- resposta do antigo Presidente da República, nos termos em que ocorreu, o Acórdão objecto do presente recurso violou os princípios da presunção da inocência e do contraditório, bem como o direito à defesa, previstos, respectivamente, no n.º 2 do artigo 67.º e no n.º 2 do artigo 174.º, ambos da CRA.

Este Tribunal conclui, igualmente, nos termos do disposto no artigo 11.º da LPC, do n.º 3 do artigo 26.º e do artigo 72.º, ambos da CRA, dos artigos 10.º e 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do artigo 9.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, bem como do artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, que foi violado o direito a julgamento justo e conforme.

b) Quanto a alegada ofensa ao Princípio da Imutabilidade da Acusação

Alegam os Recorrentes que, em sede da acusação formulada pelo Ministério Público, lhes foram imputados os crimes de associação criminosa, crime continuado de peculato e crime de branqueamento de capitais.

Alegam ainda que, no despacho de pronúncia, para além dos crimes constantes da acusação, o Juiz imputou aos Recorrentes o crime de burla por defraudação, quando estes nunca tinham antes sido acusados por este crime.

Segundo os Recorrentes, o aumento de um tipo legal de crime no despacho de pronúncia, mas que não consta da acusação, pressupõe uma alteração substancial da mesma, constituindo uma violação dos princípios da legalidade, da igualdade e do acusatório, segundo o qual a entidade que julga não deve ser a mesma entidade que acusa conforme previsto no n.º 2 do artigo 174.º da CRA.

Vejamos, pois, se assiste razão aos Recorrentes;

O artigo 65.º da CRA é uma garantia constitucional especial de confiabilidade do sistema jurídico que fornece orientação clara sobre o que é punível e o que é impune no Estado de direito, e não está sujeito a consideração. O direito processual penal, salvaguardado no artigo 65.º, é garantido sem reservas e está apenas sujeito a restrições constitucionais (n.º 2 do artigo 57.º), sempre que estas servirem para proteger leis constitucionais conflituantes, por um lado podem ser interesses constitucionais objectivos, como a segurança jurídica e a funcionalidade da administração da justiça e por outro lado, direitos fundamentais de terceiros (Hemann MANGOLDT; Friedrich KLEIN e Christian STARCK, GG Grundgesetz Kommentar, C.H.BECK, Munchen, 2018, pp. 1042 ff). A caracterização normativa da área de protecção não exclui a possibilidade de interferência nos direitos fundamentais (BVerfGE 101, 106 (130).

A proibição de penas múltiplas do artigo 65.º está ligada à dignidade da pessoa humana e ao príncipio do Estado de direito (Schulze – Fielitz, in Dreier III, Art. 103 II Rn. 37). No seu âmbito de aplicação, a protecção da dignidade da pessoa humana é especificada principalmente nos artigos 67.º, 72.º e 174.º, todos da CRA.

A acusação é um acto formal através da qual o Ministério Público em nome do Estado formula o pedido para que o arguido seja julgado por factos a si imputados durante a fase da instrução preparatória.

A este respeito, Vasco Grandão Ramos defende que “(…) os factos incluídos na acusação e, mais tarde, julgados, não podem ser objecto de nova acusação nem de nova decisão”. Direito Processual Penal, 2.ª Edição, Escolar Editora, 2015, p. 68.

Todos os pedidos significativos de provas contidas numa declaração escrita devem ser tidas em conta, posto que o artigo 67.º da CRA confere aos envolvidos no processo o direito de que o tribunal lide com as provas que oferecem, desde que sejam significativas. No entanto, este artigo não protege contra provas que não tenham sido recebidas por razões de direito formal ou substantivo (vide: BVerfGE 50, 32 (35 f.); 96, 205 (2016). Nos processos baseados no princípio da investigação oficial, o tribunal deve esclarecer os seus próprios factos, movimentos e colectar as evidências relevantes. Portanto o Tribunal é obrigado, especialmente nestes processos, a investigar todos os pedidos de provas formalmente correctos e processualmente significativos sobre questões relevantes para decisão. No entanto, o Tribunal não é obrigado a ter em conta os pedidos de obtenção de provas se considerar que as provas apresentadas são irrelevantes com base nos resultados da investigação até ao momento ou irrelevantes por razões jurídicas. O factor decisivo é a relevância do pedido de prova para decisão. Certas regras de prova, como a imediatez de obtenção de provas, só pode ser garantida por lei. Caso contrário a apreciação factual da prova enquanto tal não pode ser contestada. Se as provas que violam os direitos de terceiros podem ou devem ser tidas em conta é uma questão a ser vista casuisticamente.

Constata-se nos autos, a fls. 967 a 983, que os Recorrentes foram acusados do crime de associação criminosa, p.p. pelo n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 3/14, de 10 de Fevereiro (sobre a Criminalização das Infrações Subjacentes ao Branqueamento de Capitais); crime continuado de peculato, p.p. pelo artigo 313.º com referência ao artigo 437.º, ambos do Código Penal em vigor à data dos factos e do crime de branqueamento de capitais p.p. pelo n.º 1 do artigo 60.º da Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro (Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento ao Terrorismo).

Entretanto, no Despacho de pronúncia, o Juiz imputou aos Recorrentes, o crime de burla por defraudação que não constava da acusação.

Sobre a questão em pauta, e seguindo de perto Vasco Grandão Ramos, retenha- se que “a pronúncia representa a confirmação do juízo de probabilidade expresso na acusação pública ou privada a respeito da existência do crime, das circunstâncias em que foi cometido, da forma de participação do réu e do seu grau de responsabilidade” (Direito Processual Penal – Noções Fundamentais, Colecção Faculdade de Direito – UAN, 2006, p. 346).

Ainda segundo o mesmo autor, “deduzida a acusação, pode suceder que o juiz entenda que se provam factos diversos dos apontados pelo Ministério Público, de que resulte uma alteração substancial da acusação. Se assim for, ordenará que o processo lhe volte com vista para deduzir nova acusação”. Esta visão do autor encontra enquadramento pleno no texto da norma do artigo 351.º CPP ao consagrar que “se o Juiz entender que se provam factos, diversos dos apontados pelo Ministério Público, de que resulte uma alteração substancial da acusação, assim o declarará em despacho fundamentado, ordenando que o processo lhe volte com vista para poder deduzir acusação”.

Da norma referida, extrai-se, assim, a convicção de que, o legislador quis não só limitar os poderes do Juiz, como também, salvaguardar o princípio do acusatório, decorrendo deste, a necessidade de se dar a conhecer aos Recorrentes as imputações contra si feitas de modo a formularem uma melhor defesa.

Não se pode de forma alguma dizer que uma decisão ou despacho tenha sido justa se não se tiver dado às partes a possibilidade de a poder contestar (vide: o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 491/2018, disponível em www.tribunalconstitucional.ao). Importa salientar que o princípio do acusatório (Anklagegrundsatz; maxime d'accusation) é um dos princípios fundamentais do Estado de Direito e surgiu com o movimento reformista do século XIV.

Entretanto, atentamente, entendeu o Tribunal Pleno e de Recurso afastar da moldura penal concreta o crime de burla por defraudação por não estarem reunidos os elementos do tipo e nesta condição este Tribunal infere que não foi posta em causa a alegada violação do princípio da imutabilidade da acusação.

c) Quanto à alegada violação do dever de fundamentação das Decisões Judiciais e do Processo Justo e Equitativo

Alegaram os Recorrentes Valter da Silva e António Manuel que o Acórdão recorrido não fundamenta em que medida ficaram provados os crimes de que vêm condenados, ou seja, não elaborou o exigido exame crítico da prova e um escrutínio entre os factos e o direito.

Nos termos do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro, em vigor à data dos factos, “as decisões dos juízes sejam por via de acórdãos, sentença ou meros despachos são sempre fundamentados de facto e de direito”, descreve ainda o n.º 2 da referida norma que, “a fundamentação não pode consistir na mera evocação de uma norma legal nem na adesão, por parte do juiz, às razões e alegações evocadas por qualquer das partes, incluindo o Ministério Público”.

Neste sentido, para que a fundamentação seja considerada suficiente, necessário será que dela constem as razões de facto e de direito que justifiquem a decisão, de modo que, o seu destinatário a possa compreender, não podendo, pois, os motivos apresentados para justificar a decisão serem obscuros ou padecerem de qualquer vício, sob pena de nulidade da sentença, cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC.

Revisitando a decisão revidenda, fls. 2898 a 2925, constata-se que esta patenteia o conjunto dos elementos factuais de que resultou a cominação penal aplicada, pelo que se acha despiciendo voltar a enunciá-los.

Tal como já referenciado supra, o Tribunal Constitucional, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, limita-se a verificar se a decisão recorrida violou ou não princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, em cumprimento do que vem estabelecido na alínea a) do artigo 49.º da LPC e não fazer juízos de valor sobre a decisão ou reapreciar questões já anteriormente discutidas no Tribunal ad quem, contrariamente à pretensão dos Recorrentes.

d) Quanto à alegada ofensa ao direito a Julgamento Justo e Conforme

A propósito do referido direito, reivindicam os Recorrentes a violação do mesmo, igualmente escudados no facto de não ter o Acórdão recorrido fundamentado a decisão, ao não indicar que elementos considerou provados para sustentar a condenação pelos respectivos crimes, nomeadamente, apresentando o exame crítico feito à prova ou o escrutínio feito entre os factos e o direito.

As modernas Constituições, consagram os princípios e as garantias para que cada cidadão seja julgado de forma justa e equitativa. O conceito de justo processo tornou-se o ideal para todos os órgãos jurisdicionais e organismos a estes equiparados. E no Estado Constitucional, não se concebe um “processo” que não respeite os princípios: do justo processo regulado por lei; do contraditório das partes em condição de paridade; da imparcialidade do Juiz; e por último da duração razoável do processo.

Sob a fórmula “justo processo” estabelecido no texto constitucional (artigo 72.º - julgamento justo e conforme) o devido processo legal, inclusive os instrumentos internacionais: artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, assim como a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, artigo 7º, definitivamente exprime, a síntese coordenada de mais garantias pertencentes ao processo, aberta e susceptível de integração, cujo significado vai além do descrito nos textos constitucionais, porque permite até a compreensão de outros princípios processuais já reconhecidos nas Constituições e nas Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos.

Resulta também da interpretação da leitura combinada dos artigos 72.º e 29.º, ambos da CRA. O processo justo (devido processo legal) é considerado como garantia da realização da justiça, um objectivo fundamental de todos Estados que sejam ou que pretendam ser ou parecer legítimos e democráticos. Ainda que o processo justo não assegure a justeza das decisões, e que elas possam, surgir em meio a processos injustos, decisões justas usualmente decorrem de processo justo e processo injusto usualmente produzem decisões injustas. Da análise legislativa, deixa em evidência uma inegável similitude no que toca aos contornos gerais da regulação do processo e das suas garantias. Chega-se mesmo a falar de uma internacionalização das garantias do processo (GREMENTIERI, Le garanzie Internazionale del Processo Civile, In RTDP, Milano, Giuffrè, 1969, p. 577; TROCKER, Processo civile e Costituzione, Milano, Giuffrè, 1974, p. 4 ss.).

As garantias da justiça processual consagradas na Constituição da República de Angola – CRA, seguem as suas raízes no princípio do Estado de direito e, têm referências a outros princípios processuais constitucionais que foram desenvolvidos para além dos direitos processuais fundamentais. Dentre estes, o que deve ser mencionado em particular é o direito a um julgamento justo e conforme no Estado ou de acordo com o Estado de direito em conjugação com os artigos 29.º, 67.º, 72.º e nº 2 do 174.º todos da CRA. Independentemente de qualquer dificuldade na delimitação em casos individuais, isto cria um direito processual fundamental geral. O direito a um julgamento justo em geral, bem como o direito de ser ouvido nos termos do artigo 72.º da CRA e outros direitos processuais fundamentais, em particular, garantem os direitos envolvidos no decurso do processo judicial (Klaus STERN e Florian BECKER, Grundrechte- Kommentar. Die Grundrechte des Grundgesetzes mit ihren europaischen Bezugen, 4. Auflage, Carl Heymanns VERLAG 2024, Hurth, 2024, p. 1823).

O direito processual fundamental a um julgamento justo, obriga o juiz a organizar o processo de uma forma que as partes possam esperar dele, ou seja, a não se comportar de forma contraditória e a não obter quaisquer desvantagens para as partes devido a omissões judiciais. Um aspecto parcial da justiça processual é, portanto, o direito a um procedimento previsível, no sentido de um direito fundamental, o direito processual fundamental geral a um julgamento justo está por trás dos direitos processuais especiais como o direito de ser ouvido e também cobre esses aspectos parciais dos procedimentos que não podem ser atribuídos a nenhum dos direitos fundamentais processuais especiais, incluindo a restrição do acesso ao tribunal no interesse dos envolvidos no processo (Klaus STERN e Florian BECKER, Grundrechte-Kommentar. Die Grundrechte des Grundgesetzes mit ihren europaischen Bezugen, 4. Auflage, Carl Heymanns VERLAG 2024, Hurth, 2024, p. 1824).

Expressão com a qual se indica o conjunto de formas processuais necessárias para garantir, a qualquer titular de direitos subjectivos ou interesse legítimo violado ou inatual, a faculdade de agir e de defender-se em julgamento. O justo processo legal não tem em si uma definição hermeticamente fechada, ao contrário, carrega consigo uma qualidade de mutabilidade grande, que permite uma adaptação gradual, ou ainda evolutiva de acordo com o progresso das respectivas sociedades.
Comumente conhecido como due processo of low, considerado um dos princípios basilares na defesa dos direitos da pessoa. Este princípio contém outros princípios como: o da igualdade entre as partes ou igualdade de armas, o do juiz natural, do direito ao acesso a tutela jurisdicional, da proibição de prova ilícita, da publicidade dos actos processuais do duplo grau de jurisdição e da motivação das decisões judiciais.

Este princípio é válido, tanto no âmbito civil, penal ou administrativo, constituindo um núcleo mínimo de imprescindibilidade de garantia. Entre estes, o direito de participação ao processo, em que se exprime o princípio do contraditório, que se manifesta de forma diferenciada de acordo com a natureza do processo civil, penal e administrativo. No processo civil se realiza de uma forma mais plena na contraposição paritária entre os sujeitos em causa, que ambos têm uma posição de igualdade até mesmo na modalidade de assumpção de meios instrutórios. É frequente chamar à colação o princípio da paridade das armas durante o decurso do processo, isto é, a efectiva igualdade inter-partes: ambas as partes veem acordados os instrumentos técnicos-processuais idóneos a condicionar a seus favores o pleno convencimento do juiz. Assumem, portanto, um carácter multifacetado, apresentando inúmeros afloramentos como o direito a um processo equitativo, direito de acesso à justiça, o direito a um processo célere e sem dilações indevidas, o direito a um processo público, perante um tribunal imparcial e independente e o direito a um recurso efectivo (Cfr. Catarina Santos BOTELHO, A tutela directa dos direitos fundamentais. Avanços e recuos na dinâmica garantística das justiças constitucional, Administrativa e Internacional, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 322-323).

Por outra, a disciplina jurídica do direito processual (72.º da CRA) enriquece-se de uma série de garantias constitucionais que com o tempo adquirem um valor autónomo que são implementados tais quais, nos casos em que sua actuação possa alcançar uma desaceleração da funcionalidade do processo. Por conseguinte, a jurisprudência do Tribunal Constitucional angolano, tem vindo a demonstrar nos seus acórdãos, que as garantias constitucionais do processo (designados por princípios), constituem um imperativo categórico do Estado democrático de direito, e que todo operador do direito e executor público e privado estão proibidos a prescindir delas. Tal certeza doutrinária encontramos nos pensamentos de Heyde e Canotilho; Heyde ao afirmar que as garantias constitucionais do processo são imposição do princípio do Estado de direito (L. HEYDE. Manual de Derecho Constitucional, 2.ª ed. Marcial Pons, Madrid, 2001 p. 789). No mesmo diapasão Gomes Canotilho afirma que do princípio do Estado de direito, deduz-se, sem dúvida a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e a realização do direito (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 2003, p. 255).

O jurista italiano Ferrajoli, afirma ser hoje, “largamente difusa a ideia de que os direitos fundamentais reclamam, inafastavelmente, a existência de uma garantia secundária, de acionabilidade em juízo” (Diritti Fondamentali, Laterza, Roma, 2001, p. 12). Ideia secundada por Ronnie Duarte, ao afirmar que, direito subjectivo sem processo, ou um processo sem determinadas garantias procedimentais, nada mais seria que um mero flatus vocis do legislador, uma proclamação carente de mínimas condições de concretização prática, até mesmo os direitos fundamentais acabariam por se revelar como meras exaltações áfonas, fruto de uma retórica constitucional que haveria de se fiar na boa- vontade dos homens para alcançar a respectiva concretização (Ronnie Preuss DUARTE, Garantia de acesso à justiça ... cit. p. 17). Por esta razão, Gomes Canotilho afirma que o princípio do Estado de direito se pode deduzir sem dúvidas a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição ... cit. p. 274).

O direito a julgamento justo e conforme, constitui garantia a concretizar e assegura uma justiça materialmente funcional, imparcial e independente, capaz de permitir o acesso aos tribunais a todos os cidadãos, no propósito de obter uma tutela jurisdicional efectiva. Nesta linha caminhou entre inúmeros, o Acórdão n.º 449/2018, o Acórdão n.º 677/2021 e o Acórdão n.º 602/2020, vide www.tribunalconstitucional.ao.

Como afirmado precedentemente, o princípio do direito ao julgamento justo e conforme abrange todos os actos, decisões e provimento adotados pelas partes, pelo Ministério Público e pelo Juiz e está interligado com os demais princípios constitucionais, nomeadamente, o princípio da presunção de inocência, da ampla defesa, do contraditório, da igualdade de uso de armas, da legalidade, da fundamentação da decisão e outros conexos. Entretanto, da análise do conteúdo da decisão, objecto do recurso, se podem verificar a desconformidade constitucional de certos procedimentos tomados no decurso do processo, como é o caso da não admissibilidade de prova documental relevante (Carta do antigo Presidente da República de Angola) a qual poderia além de constituir base da fundamentação da própria decisão, determinar a conformação dos actos aos preceitos normativos, pelo que, resta-nos concluir pela violação do direito a julgamento justo e conforme, nos termos aflorados supra.

e) Quanto à alegada ofensa ao princípio da legalidade em função do quórum

Quanto à alegada ofensa ao princípio da legalidade por inexistência de quórum do Tribunal Pleno e de Recurso e o voto de qualidade do Juiz Presidente do Tribunal Supremo, vem sendo, entendimento desta Corte, plasmado, vg. no Acórdão n.º 797/2023 que “decorre do n.º 2 do artigo 660.º do CPC que os Tribunais, quer da primeira, quer da segunda instância, devem apreciar todas as questões invocadas pelas partes nos seus expedientes processuais, sob pena de inquinar a sua decisão. Todavia, estão exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada as outras”.

Em face do exposto o Tribunal Constitucional entende que esta questão fica prejudicada, tornando-se despiciendo apreciá-la, por força do n.º 2 do artigo 660.º do CPC, posto que, a decisão recorrida, com os argumentos expendidos acima é, hic et nunc, inconstitucional.

Destarte, o Tribunal Constitucional, conclui que o aresto posto em crise violou os princípios constitucionais da legalidade, do contraditório, do julgamento justo e conforme e do direito à defesa, nos termos dos artigos 6.º, 67.º, 72.º e o n.º 2 do 174.º, todos da CRA, pelo que, procede o presente recurso, devendo os autos baixar à instância devida, para que sejam expurgadas as inconstitucionalidades verificadas, ao que se seguirão os trâmites subsequentes que se mostrarem cabíveis, nos termos do n.º 2 do artigo 47.º da LPC.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO, POR VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, DO CONTRADITÓRIO, DO JULGAMENTO JUSTO E CONFORME E DO DIREITO À DEFESA.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 03 de Abril de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS

Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Dr. Gilberto de Faria Magalhães (Relator)
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite da Silva Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima D’ A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi