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ACÓRDÃO N.º 884/2024

 

PROCESSO N.º 1109-A/2023

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

José Manuel Lúcia Muanda, Recorrente com os demais sinais de identificação nos autos, por não se conformar com o Acórdão proferido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, em sede do Processo n.º 644/18, veio, ao abrigo do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (adiante designada LPC), com a alteração que lhe foi introduzida pela Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por entender que o Acórdão supracitado padece de inconstitucionalidades.
O Recorrente apresenta as suas alegações, conforme consta de fls. 244 a 275, em síntese, nos termos abaixo transcritos:
1. Na sequência do seu despedimento, ocorrido em 2015, o ora Recorrente impugnou a medida disciplinar que lhe foi aplicada, por meio duma Acção de Recurso em Matéria Disciplinar intentado na Sala do Trabalho do Tribunal Provincial de Cabinda, contra a Requerida Vecto Gray, que mereceu a condenação da Requerida a pagar o total de USD 47 086,00 (quarenta e sete mil e oitenta e seis dólares americanos); no despacho saneador-sentença.

2. Porém, o Juiz a quo liquidou os salários, complementos, subsídios e indemnização com base no salário de USD 700,00 (setecentos dólares), remuneração esta que o Recorrente auferia aquando da sua contratação em 2005, e não o de USD 5 264,40 (cinco mil duzentos e sessenta e quatro dólares e quarenta cêntimos), que auferia à data do despedimento.

3. Na altura em que a Requerida recorreu do despacho saneador sentença, cuja decisão lhe era desfavorável (2016), o Requerente ora, Recorrente, também reclamou do mesmo com o fundamento nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 666.º, n.º 1 do artigo 667.º e do n.º 1 do artigo 668.º, todos do CPC, aplicáveis subsidiariamente ao processo laboral, para efeitos de rectificação do erro de escrita e de cálculo que viciava aquela decisão judicial.

4. No despacho em que admitiu o recurso da Requerida, o Mmo. Juiz relegou ao Juiz do recurso a apreciação da reclamação do Requerente.

5. Não obstante o facto de o Juiz da acção ter deixado o conhecimento da reclamação ao Tribunal de recurso e de o Requerente, nas suas contra-alegações de recurso, ter também pedido o deferimento da reclamação (para a liquidação dos direitos económicos do Requerente com base no salário em vigor à data do despedimento), o Tribunal Supremo incorreu no mesmo erro (que determinara a reclamação), liquidou os salários, complementos, subsídios e indemnização com base no salário de USD 700,00 (setecentos dólares) e não o de USD 5 264,40 (cinco mil duzentos e sessenta e quatro dólares e quarenta cêntimos), que auferia à data do despedimento.

6. Notificado do acórdão, o apelado, ora Recorrente, apresentou reclamação, para que aquele Venerando Tribunal verificasse o salário que auferia aquando do despedimento, reclamação esta que foi indeferida com o fundamento de que esta questão não havia sido alegada oportunamente (anteriormente) e que o salário de USD 700,00, é aquele que se mostra provado nos autos.

7. Assim, a negação da apreciação da reclamação do ora Recorrente constitui uma violação ao princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.

8. De igual modo, ao proferir uma decisão que restringe e viola direitos do trabalhador, a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo departiu-se da sua obrigação de garantir e observar a Constituição e as leis. Por isso, o seu acórdão viola o princípio do direito a julgamento justo e conforme.

Termina pedindo que se dê inteiro provimento ao presente recurso e, por via dele, seja revogado o Acórdão recorrido por estar desconforme com a Constituição, designadamente, por violação do princípio do direito a julgamento justo e conforme.
O processo foi à vista do Ministério Público que se pronunciou nos termos constantes de fls. 342 dos autos.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.


II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da LPC, norma que habilita a interposição de recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional das “(…) sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.

Sendo que, atento ao disposto no artigo 53.º da LPC, é o Plenário do Tribunal Constitucional, o órgão jurisdicional competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.

III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte legítima, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, que estipula que “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, têm legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é o Acórdão de 04 de Novembro de 2021, proferido pela Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, em sede do Processo n.º 644/18, cabendo a esta Corte verificar se o mesmo ofendeu princípios ou violou direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na CRA.

V. APRECIANDO
Afirma o Recorrente, no âmbito das suas alegações que, “não obstante o facto de o Juiz da acção ter deixado o conhecimento da reclamação ao Tribunal de recurso e de o Recorrente, nas suas contra-alegações de recurso ter também pedido o deferimento da reclamação (para a liquidação dos direitos económicos do aqui Recorrente com base no salário em vigor à data do despedimento), o Tribunal Supremo incorreu no mesmo erro (que determinara a reclamação), liquidou os salários, complementos, subsídios e indemnização com base no salário de USD 700,00 (setecentos dólares americanos) e não o de USD 5 264,40 (cinco mil duzentos e sessenta e quatro dólares e quarenta cêntimos), que auferia à data do despedimento, por isso, violou os princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e do direito a julgamento justo e conforme”.

Terá razão? Vejamos.

Ilustram os autos, que foi intentada aos 30 de Abril de 2015, a Acção de Recurso em Matéria Disciplinar pelo aqui Recorrente, contra a sua entidade empregadora, Sociedade Comercial - Vecto Gray Limitada, no Tribunal Provincial de Cabinda, na qual requereu a declaração de nulidade da medida disciplinar de despedimento que lhe foi aplicada com as respectivas consequências legais, por irregularidade do processo disciplinar.

No seu requerimento inicial (fls. 4 a 6), bem como no articulado adicional de aperfeiçoamento (fls. 45 a 47), o Recorrente reitera que o contrato de trabalho teve início de vigência aos 10 de Dezembro de 2005 e que à data do despedimento (2015), auferia o salário mensal de USD 5 264,40 (cinco mil duzentos e sessenta e quatro dólares americanos e quarenta cêntimos).
Notificada para contestar (fls. 53) a entidade empregadora, Requerida, fê-lo por excepção e impugnação (fls. 54 a 69). Porém, em momento algum contestou o salário declarado pelo Recorrente à data do despedimento.

Entretanto, do Despacho Saneador-Sentença que deu provimento a acção de recurso em matéria disciplinar, condenando a Requerida no pagamento global do equivalente em kwanzas a USD 47 086,00 (quarenta e sete mil e oitenta e seis dólares americanos). Inconformada esta interpôs recurso para a Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo, instância para onde o Juiz da causa, expediu igualmente a apreciação da Reclamação efectuada pelo aqui Recorrente ao abrigo do disposto no artigo 667.º e seguintes do CPC, relativa à fixação do seu salário na decisão recorrida.

É neste contexto que, notificado das alegações da entidade empregadora, o Recorrente reafirmou, em sede de contra-alegações no tribunal ad quem, que houve erro de cálculo ou material na sentença, pelo facto de nesta se ter especificado que o trabalhador auferia o salário de USD 700,00, quando na realidade, a data do despedimento auferia a quantia de USD 5 264,00.
O aresto ora sindicado revogou parcialmente a decisão recorrida e condenou a Apelante/Requerida no pagamento global do equivalente em kwanzas a USD 27 300,00 (vinte e sete mil e trezentos dólares americanos). Isto é, claramente prejudicando o apelado aqui Recorrente, que assim viu, mais ainda, diminuído o valor dos seus direitos económicos já arbitrados em seu desfavor pela sentença do Tribunal a quo.

Ora, resulta do artigo 676.º do CPC, que as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos, sejam eles ordinários ou extraordinários, isto porque, “os recursos são meios de obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vícios substanciais ou de erro de julgamento. O mecanismo através do qual opera o recurso define-se nestes termos: pretende-se um novo exame da causa por parte do órgão jurisdicional hierarquicamente superior” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, p. 212).

Razão pela qual foi interposto o recurso de apelação porque também cabe do despacho saneador que conhece do mérito da causa, como aconteceu nos presentes autos (n.º 1 do artigo 691.º, do CPC).

Segundo o mesmo autor, a “Apelação é um recurso amplo ou completo. Quando qualificamos a apelação de recurso completo, queremos significar o seguinte: a apelação tanto pode incidir sobre a matéria de direito, como sobre a matéria de facto. É índole da apelação que o tribunal de recurso seja chamado a apreciar tanto a decisão de direito proferida pelo tribunal a quo, como a decisão que ele emitiu sobre a matéria de facto”.

Assim, em decorrência da norma processual civil acima referenciada, a Câmara do Trabalho do Tribunal ad quem tinha competência para julgar de facto e de direito a decisão que lhe foi submetida, paralelamente em conformidade com alínea a) do n.º 1 do artigo 34.º da Lei n.º 13/11, de 18 de Março (Lei Orgânica do Tribunal Supremo) e da alínea a) do artigo 12.º da Resolução n.º 1/14, de 29 de Agosto (Regulamento da Lei Orgânica do Tribunal Supremo), ambas vigentes à data de interposição do recurso.

Por este motivo, as partes aquando da apresentação das suas alegações no âmbito do competente recurso interposto, apresentaram razões de facto e de direito que fundamentaram o interesse de impugnar a decisão da primeira instância.

Tendo em atenção aos motivos apresentados nas alegações e sobretudo nas conclusões tanto do Apelante, como do Apelado, que em respeito ao princípio do dispositivo e do contraditório, deveriam ter sido objecto de apreciação pelo Tribunal ad quem, e não apenas as enxertadas nas conclusões apresentadas pelo apelante. Isto porque, a ambos cabe o ónus de alegar, até porque, o convite feito ao Recorrente para alegar é notificado à parte contrária para responder, em obediência ao disposto no n.º 4 do artigo 690.º, do CPC.

O ónus de alegar concretiza-se de formas diferentes em relação às partes controvertidas, com as respectivas consequências. Assim, para o Recorrente o ónus representa um dever, tendo em conta o necessário impulso do recurso no âmbito do princípio do dispositivo, por isso, o recurso deve ser julgado deserto quando há falta das alegações (n.º 1 do artigo 292.º, combinado com n.º 2 do artigo 690.º, ambos do CPC), ao passo que para o Recorrido a actuação é facultativa, não importando, desde logo, semelhante cominação, para a ausência das mesmas.
Porém, embora seja facultativa a apresentação das contra-alegações do apelado, quando este o faz, elas devem ser consideradas e inclusas na apreciação do recurso no seu todo, seja quanto às matérias de direito, bem como as de facto.

Aliás, é jurisprudência vincada da Câmara do Trabalho do Tribunal Supremo que “o âmbito e o objecto do recurso são delimitados, para além das meras razões de direito e das questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões formuladas pelas partes (artigos 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1, todos do CPC), aplicáveis, ex vi, o artigo 292.º da LGT)” (Acórdão n.º 497/20).

In casu, o apelado, nas conclusões das suas alegações, termina solicitando como se transcreve: “Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, devendo ser confirmado o douto saneador-sentença recorrido (com excepção da matéria que foi objecto reclamação), relativamente à nulidade do despedimento do Autor e ao pagamento dos salários e complementos que deixou de receber e às indemnizações legais, devendo estes serem liquidados com base no salário real auferido pelo trabalhador aquando do seu despedimento nulo”.

Está aqui patente a omissão decisória, que se consubstancia num facto de suma importância para a decisão, e que não mereceu qualquer atenção no recurso de apelação julgado pelo Tribunal ad quem, apesar da questão ter sido oportunamente alegada como aliás demonstram os autos, ou seja, a decisão sob censura ao não considerar as contra-alegações do Recorrente não só desrespeita o princípio da imparcialidade do julgador, corolário de demais princípios constitucionais, como colide com o direito fundamental do Recorrente, a justa indemnização, prevista no n.º 4 do artigo 76.º da CRA (que estabelece que, o despedimento sem justa causa é ilegal, constituindo-se a entidade empregadora no dever de justa indemnização ao trabalhador despedido, nos termos da lei), que dispõe que desse modo restringindo-o ilegitimamente.

Ademais, como atrás se deixou explicitado, tratando-se de matéria objecto do recurso de apelação interposto no Tribunal ad quem, a este competia a rogada apreciação, ao contrário do que sucedeu, em que o tribunal de recurso, pura e simplesmente se omitiu e não apreciou os fundamentos da oposição da parte recorrida, fazendo tábua rasa dos mesmos, em nítido prejuízo do apelado que em diversos momentos processuais, reivindicou o erro de julgamento operado na instância a quo.

Ora, o princípio do contraditório, previsto no n.º 1 do artigo 67.º e no n.º 2 do artigo 174.º, ambos da CRA, encontra-se imbricado em princípios constitucionais como o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva, tal como o julgamento justo e conforme, que proíbem as situações de indefesa ou violações da igualdade ou proporcionalidade e na prolacção de decisões surpresa, garantindo a participação efectiva dos litigantes no desenvolvimento de toda a lide, de forma a poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.

Respeitante a matéria em causa, a generalidade da doutrina pronuncia-se de modo explícito, tal como sustenta Adlezio Agostinho, no sentido segundo o qual “o princípio do contraditório garante que o tribunal deve assegurar, durante todo o processo, um estatuto substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso dos meios de defesa e na aplicação de comunicações ou sanções processuais. As partes devem, pois, possuir os mesmos poderes, direitos, ónus e deveres perante o Tribunal. O direito do contraditório estipula a regra de que nenhum conflito é decidido sem que à outra parte seja dada a possibilidade de deduzir oposição” (Manual de Direito Processual Constitucional Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre Garantias Constitucionais, AAFDL, 2023, p. 403).

No mesmo diapasão Albertino Morais A. António assevera que “o princípio do contraditório impõe, em geral, que seja dada oportunidade de intervenção efectiva a todos os participantes no processo, com finalidade de permitir ao juiz uma decisão imparcial e fundada, atendendo às razões de ambas as partes litigantes” (in Manual de Direito do Contencioso Administrativo Angolano, Vol. I Opus Academius, 2023, p. 154).

Este princípio representa a garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de toda a lide e de uma decisão justa e legal, por conseguinte reitera-se que ao Tribunal da instância máxima da jurisdição comum, cabia solucionar o diferendo tendo em atenção todos os fundamentos carreados ao processo, tanto pelo apelante como pelo apelado. Pelo que, tal não se extraindo da decisão sub judice, resta a esta Corte propugnar pela inconstitucionalidade da mesma por afectar directamente a Constituição em decorrência da inobservância dos princípios da legalidade e do contraditório, plasmados no artigo 6.º e n.º 2 do artigo 174.º.

Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POR TEREM SIDO OFENDIDOS OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DO CONTRADITÓRIO, PREVISTOS NO ARTIGO 6.º E NO N.º 2 DO ARTIGO 174.º, AMBOS DA CRA.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 03 de Abril de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dr. João Carlos António Paulino

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva (Relatora)

Dr. Vitorino Domingos Hossi