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ACÓRDÃO N.º 885/2024

 

PROCESSO N.º 1111-C/2023

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

PRAXIS – Gestão Imobiliária S.A, melhor identificada nos autos, por não se conformar com a decisão vertida no Acórdão proferido pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, nos autos de recurso de agravo, Processo n.º 1860/20, que manteve a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância, veio nos termos das alíneas a) do artigo 49.º, a) do artigo 50.º e do n.º 1 do artigo 51.º todos da Lei n.º 03/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional, interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Para o efeito, a Recorrente alega, em síntese, o seguinte:


1. A Recorrente PRAXIS - Gestão de Imobiliária SA, opoente (em incidente de instância espontâneo) no processo principal em que são partes o Sr. Paulo Francisco (Autor) e Angola Offshores Security Lda (Ré), interpôs, no quadro do processamento do incidente de instância, um recurso de agravo da decisão do Tribunal de primeira instância que extinguira o incidente por falta de pagamento do preparo inicial.

2. Após admissão do recurso, a Meritíssima Juíza do processo ordenou a notificação do respectivo Despacho, tendo sido notificado somente o Autor no processo principal, Sr. Paulo Francisco, e recepcionado a notificação a Sra. Márcia Marcolino no dia 17 de Março de 2015, conforme certidão de fls. 151 dos autos.
3. No dia 19 de Março de 2015, conforme certidão de fls. 151 dos autos, o despacho de admissão do recurso de agravo foi notificado à Ré no processo principal, a Angola Offshore Security Lda., tendo recebido a notificação a Sra. Ana Rodrigues, trabalhadora da Ré, que à certidão justapôs o carimbo daquela empresa.

4. Apenas as partes no processo principal foram notificadas do despacho de admissão daquele recurso, sendo que quem interpôs o recurso de agravo foi a Recorrente que não foi notificada do despacho de admissão do recurso.

5. Não existe nos autos qualquer documento ou elemento que confirme ou prove ter sido a agravante notificada da admissão do recurso, contando-se-lhe, a partir daí o prazo para apresentação das suas alegações.

6. Bastaria a Meritíssima Juíza do processo, no cumprimento dos seus deveres de boa gestão processual, ter tido o cuidado de ver as certidões de notificação existentes nos autos para reparar que apenas as partes do processo principal tinham sido notificadas do despacho de admissão do recurso, estando em falta, caricatamente, a notificação mais importante, a da agravante.

7. A certidão de fls. 151 mostra que foi notificado o Autor, Sr. Paulo Francisco, sendo pessoa estranha à agravante.

8. A certidão de fls. 152 mostra que foi notificada a Ré Angola Offshore Security Lda. (e não Angola Offshore Services Lda. como errada e reiteradas vezes consta no acórdão), que é uma pessoa jurídica distinta da agravante/opoente e a ela processualmente estranha.

9. A conclusão do Venerando Tribunal Supremo de que a Sra. Ana Rodrigues não é pessoa estranha à agravante e que foi alinhada à decisão tomada, fundamentando-a é, pois, incorrecta, contra a verdade processual e contra as mais elementares regras de Direito.

10. Além de que, os argumentos de que o Venerando Tribunal Supremo se socorreu para justificar a sua conclusão carecem de sustentação, quer de facto, quer de direito.

11. Segundo o Venerando Tribunal Supremo, o facto de a Ré no processo principal e a agravante/opoente terem o mesmo mandatário judicial transformá-las-ia numa espécie de intervenientes processuais siameses, sem autonomia e direitos processuais próprios, que seriam consumidos pela ligação resultante daquele facto.

12. O afastamento, pelo Venerando Tribunal Supremo, da conclusão inerente ao comando legal do n.º 1 do artigo 253.º do CPC e o não reconhecimento do dever de respeito desta norma pelo Tribunal de primeira instância, sem qualquer fundamento legal ou jurisprudencial sólida ou, no mínimo, conhecível, concluindo-se assim pela improcedência da nulidade arguida pela agravante, é sem dúvidas um acto de puro arbítrio do Venerando Tribunal Supremo, violador das regras processuais e da legalidade constitucional vigente.

A Recorrente termina as suas alegações requerendo que este Tribunal dê provimento ao presente recurso e declare a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido por violação dos princípios do Estado de Direito e do Dever de Legalidade (artigos 29.º, n.º 1, 6.º, n.º 2, 175.º, 177.º, n.º 1 e 226.º da CRA), do direito a processo equitativo, justo e conforme (artigos 29.º nº 4 e 72º da CRA) e do direito à justiça e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA), revogando-se o Acórdão recorrido.
O processo foi à vista do Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como das disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º, da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

III. LEGITIMIDADE
A Recorrente é parte sobre a qual recaiu a decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo nos autos do Processo n.º 1860/2020 que manteve a decisão da Sala do Cível e Administrativo da 3.ª Secção do Tribunal Provincial de Luanda, tendo, pois, interesse directo que a decisão seja apreciada pelo Tribunal Constitucional, decorrendo daí a sua legitimidade para a interposição do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 50.º da LPC e do n.º 1 do artigo 26.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 2.º da LPC.


IV. OBJECTO
O presente recurso tem por objecto, verificar se a decisão proferida pela Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo nos autos do Processo n.º 1860/2020, ofendeu os princípios da legalidade, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito a julgamento justo e conforme, previstos na Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIANDO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, resulta da inconformação da Recorrente Praxis - Gestão Imobiliária S.A, em relação ao Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal Supremo que, no âmbito do Processo n.º 1860/2020, negou provimento ao recurso de agravo e, em consequência, manteve a decisão do então Tribunal Provincial de Luanda, conforme Despacho de fls. 181 e 182 proferido pela Meritíssima Juíza no âmbito do Processo n.º 701/012-C.

Consta dos autos de manutenção de posse que Paulo Francisco moveu contra Angola Offshore Security Lda., cujo processo principal corre trâmites no Tribunal da Comarca de Luanda, em que a aqui Recorrente PRAXIS – Gestão Imobiliária SA deduziu ao abrigo do artigo 342.º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC), um incidente de oposição, tendo sido este admitido por Despacho de fls. 117, datado de 25 de Setembro de 2014, não havendo, portanto, qualquer objecção por parte do Autor.

Notificada da sentença proferida a fls. 140 dos autos e inconformada com a mesma, a Recorrente, interpôs um recurso de agravo, tendo o mesmo sido admitido conforme atestam fls. 148 dos autos.

Contudo, alegou a Recorrente não ter sido regularmente notificada, pelo que, viu-se impossibilitada de apresentar as suas alegações. Entretanto, entendeu o Tribunal que a mesma foi devidamente notificada e, por Despacho de fls. 160, datado de 30 de Junho de 2015, o recurso foi julgado deserto nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 690.º, do n.º 1 do artigo 743.º e do n.º 1 do artigo 292.º, todos do CPC.

Assim, por não se ter conformado com esta decisão, a Recorrente arguiu a nulidade do acto de notificação do Despacho de fls. 148, pois, alegou, que jamais fora notificada para alegar em sede do recurso interposto quer seja por si ou por intermédio do seu mandatário judicial, ou ainda, por qualquer outro funcionário do seu escritório.

Entende por isso, que a decisão do Tribunal a quo e sustentada pelo Tribunal ad quem violou direitos, liberdades e garantias processuais estabelecidos por lei e consagrados na Constituição.

Neste contexto, incumbe ao Tribunal Constitucional verificar se no caso sub judice, foram efectivamente violados ou não os princípios do Estado de direito e da legalidade bem como, o direito a processo equitativo, justo e conforme e do direito à justiça e à tutela jurisdicional efectiva.

Vejamos se procedem as alegações da Recorrente.

Sustenta a Recorrente, que o Acórdão recorrido que sufragou a decisão/despacho do Tribunal de primeira instância, que julgou improcedente a arguição de nulidade do acto de notificação do Despacho do Tribunal a quo, ofendeu o princípio constitucional e fundamental da legalidade, emanação maior do sacrossanto princípio do Estado de Direito e o direito a processo equitativo, justo e conforme e do direito à justiça e à tutela jurisdicional efectiva.

A Constituição da República de Angola, estabelece que os Tribunais são órgãos de soberania, com competência para administrar a justiça em nome do povo, o que pressupõe dizer que no exercício da função jurisdicional, cabe a estes garantir e assegurar a observância da Constituição, das leis e demais disposições normativas vigentes no ordenamento jurídico angolano conforme o artigo 174.º da CRA.

Nesta senda, ensinam Jónatas Machado, Paulo da Costa e Esteves Hilário, que “Ao poder judicial cabe aplicar os princípios fundamentais no âmbito do processo equitativo (due process of law), assegurando a todos os indivíduos garantias de defesa e de julgamento justo. Ele desempenha também uma importante função de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais de igual dignidade e liberdade de todos os indivíduos, bem como dos próprios direitos sociais” (Direito Constitucional Angolano, 4.ª Edição, Petrony, 2017, pág. 235).

Por sua vez Bacelar Gouveia, na análise comparativa entre o direito constitucional e o direito processual, diz que “regulando o direito processual nas suas múltiplas divisões, a tramitação do poder jurisdicional do Estado no seu lado material, e não tanto institucional na dialética que se estabelece com os diversos sujeitos intervenientes, ao Direito Constitucional reconhece-se a preocupação pela imposição de certos direitos fundamentais de cunho processual, em ordem a proteger o núcleo fundamental daquela dialética” (Direito Constitucional de Angola, Instituto do Direito de Língua Portuguesa, 2014, pág. 37 e 38).

A Constituição da República estabelece um conjunto de direitos e princípios enquanto garantias contra o abuso de poder ou de acções arbitrárias, dentre outros riscos daí advindos e na mesma medida, contribuindo para estabelecer os direitos e obrigações aos quais estão submetidos os indivíduos.

Ensina J. J. Gomes Canotilho, que “o direito de acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de actos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar num prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de causas e outras” (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, 17.ª Reimpressão, Almedina, 2003, pág. 433).

O princípio da legalidade é uma garantia fundamental por meio do qual se estabelecem os limites no exercício da administração da justiça e dos demais actos praticados pelos Tribunais. Neste sentido, impõe a lei processual que os sujeitos jurídicos intervenientes no processo tomem conhecimento dos actos praticados por estes por via da notificação ou da citação.

A razão que aqui nos apresenta a Recorrente prende-se com o facto de se ter notificado a Angola Offshore Security Lda., na pessoa da Sra. Ana Rodrigues funcionária afecta àquela empresa ao invés da PRAXIS - Gestão de Imobiliária S.A, na pessoa do seu mandatário judicial, uma vez que esta constituiu mandatário nos termos do artigo 253.º do CPC.

De facto, embora haja coincidência na constituição do mandatário judicial por parte da Angola Offshore Security Lda e da Praxis - Gestão Imobiliária S.A, aqui Recorrente, a questão fundamental a resolver será a de saber se notificada a Angola Offshore Security Lda. dever-se-á considerar também notificada a opoente Praxis - Gestão Imobiliária S.A.

A norma do artigo 253.º do CPC, impõe que “As notificações às partes que constituíram mandatário em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais (…) que tenham escolhido domicílio para as receber”, o que pressupõe dizer, que são os próprios mandatários judiciais que terão de criar as condições necessárias para que as notificações ocorram, sem quaisquer constrangimentos nos seus domicílios.

E quando estes indiquem os seus domicílios, significa que todas as notificações que não puderem ser feitas na própria pessoa do mandatário, poderão ser feitas em qualquer pessoa que esteja ligada a este no mesmo domicílio profissional.

Ora, vista a questão neste prisma, este Tribunal não pode sufragar o posicionamento do Venerando Tribunal Supremo, na medida em que aquela instância ignorou os procedimentos legais relativos à notificação conforme estabelecido na lei processual.

Não existe nos autos qualquer documento ou elemento que confirme ou prove que a agravante, e aqui Recorrente, tenha sido notificada enquanto opoente, no processo principal para alegar nos termos do que estabelecem os artigos 253.º e 690.º, ambos do CPC.

Deste modo, entende este Tribunal Constitucional que à Recorrente não foi assegurada toda a possibilidade de pleitear em igualdade de armas, colocando em causa o princípio da legalidade, o direito à tutela jurisdicional efectiva e a um processo equitativo, justo e conforme, enquanto corolários daquele, resultando assim numa clara violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados.

Nestes termos,

DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.

Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Maio de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Gilberto de Faria Magalhães (Relator)
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi