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Jurisprudência

 

ACÓRDÃO N.º 886/2024

 

PROCESSO N.º 1064-D/2023

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

REAL SPORTS – Serviços Integrados de Desporto, Lda., melhor identificada nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido aos 21 de Dezembro de 2021, pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2668/19, que negou provimento ao recurso de apelação por si interposto e, em consequência, confirmou a decisão do Tribunal Provincial de Luanda.

A Recorrente, inconformada com a decisão inserta no Acórdão recorrido, regularmente notificada, deduziu as suas alegações, arguindo, essencialmente, que:
1. Os princípios da legalidade, da igualdade e, corolariamente, o direito fundamental de ampla defesa, consagrados nos artigos 6.º, 23.º e n.º 1 do 67.º, todos da Constituição da República de Angola determinam que os Tribunais devem tomar decisões apenas de acordo com a Constituição e a lei, tratando igual as situações que são iguais, permitindo assim que todas as partes apresentem o seu ponto de vista no processo para que, o juiz, em última instância, decida com imparcialidade e objectividade.

2. Debateu-se com dificuldades para justificar documentalmente a ausência do seu advogado com procuração nos autos, porque soube, posteriormente, que o mesmo estava ausente do país. Daí que, teve de constituir outro mandatário legal que veio aos autos apenas em Julho de 2017.

3. Apesar disso, constam dos autos situações que são do conhecimento oficioso do Tribunal que foram ignoradas e se reflectem na decisão revidada.

4. O direito positivo vigente em Angola, mais concretamente, o preceito do artigo 1268.º do Código Civil (CC), estabelece que os direitos sujeitos a registo só são oponíveis a terceiros quando estiverem registados, o que não aconteceu no bem jurídico em causa, objecto do litígio em sindicância.

5. Por outro lado, embora o advogado da autora invoque nas suas alegações consignadas no artigo 4.º, fls. 114 dos autos que “o direito da autora se encontra devidamente registado na Conservatória do Registo Predial de Luanda, 2.ª Secção, desde 22 de Setembro de 2009 e com início a 10 de Outubro de 2008, conforme certidão junta aos autos”, compulsado o processo não se vislumbra a aludida certidão, pelo que este direito não deve ser oponível a terceiros.

6. A autora proferiu inverdades ao argumentar que nos artigos 1.º, 2.º e 4.º da sua petição inicial, de fls. 57 e 58 dos autos e no artigo 3.º das suas alegações, ao aludir que adquiriu o terreno para a construção de naves, para armazenar os produtos que comercializa quando o contrato de constituição de direito de superfície que assinou com o Governo Provincial do Bengo, reza na sua cláusula 1.ª (objecto) “O Concedente concede à Concessionária o direito de superfície exclusivo de utilização de um lote de terra com a dimensão de 3 (três) hectares adiante designado por “terreno” que se destina a construção de um complexo turístico, conforme consta do projecto apresentado pela Concessionária”.

7. O Tribunal a quo deveria, igualmente, considerar oficiosamente outra situação de ordem legal, que se prende com o facto de ter sido dada à sociedade Mpozo Comércio e Indústria, Lda. (autora), o prazo de 5 dias para, dentre outras questões, juntar a acta da assembleia geral na qual foi nomeado gerente. Mais ainda, a procuração que conferia poderes forenses ao mandatário legal estava assinada por um terceiro sem instrumento legal que atestasse a sua qualidade jurídica.

8. Assim sendo, o Tribunal deveria, ao abrigo das disposições combinadas do artigo 493.º, alínea b) do n.º 1 do artigo 494.º e das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 474.º, todos do Código de Processo Civil (CPC) indeferir liminarmente a acção proposta, agravada pelo facto da procuração e a petição inicial corrigida terem sido apresentadas extemporaneamente, inobservando o prazo concedido.

9. Como se não bastasse, além das inverdades que a autora empregou para ludibriar o Tribunal a quo, o que foi conseguido, o pedido de indemnização funda-se num contrato de arrendamento nulo à luz das disposições combinadas dos artigos 220.º e 286.º, ambos do CC e do 8.º da Lei n.º 26/15, de 23 de Outubro (Lei do Arrendamento Urbano), por não se ter observado a forma pública do contrato que a lei impõe.

10. O Tribunal a quo não deveria ter atendido o pedido, tendo-o feito, todas as irregularidades legais foram ignoradas pelo Tribunal Supremo, violando, assim, o princípio da legalidade e o direito de ampla defesa.

11. Entretanto, se os Tribunais devem obediência à Constituição e à lei, como se pode admitir que uma decisão judicial se funde em um título que viola a lei, que deve ser do conhecimento oficioso do Tribunal, ex vi dos artigos 286.º e 294.º do CC, em conjugação com os preceitos dos artigos 43.º e 68.º da Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro, Lei de Terras.

12. Reconhece o Tribunal ad quem que o título exibido pela Mpozo Comércio e Indústria, Lda., faz referência a três hectares de terreno, sendo que o Governo Provincial só tem competência para conceder um hectare. Apesar disso, o Tribunal decidiu condenar a Recorrente na restituição de três hectares.

13. Por tudo isso, as decisões dos Tribunais a quo e ad quem violam as disposições conjugadas dos artigos 220.º, 286.º, 294.º do CC; 493.º, 494.º, n.º 1, alínea a) e 474.º, n.º 1 alínea b) e c), todos do CPC; 43.º e 68.º, ambos da Lei de Terras e 8.º da Lei do Arrendamento Urbano (LAU).

Concluiu requerendo a procedência do presente recurso e, em consequência, que seja declarada a inconstitucionalidade do Acórdão recorrido, por ostensiva desconformidade com a CRA e a lei.
O processo foi ao Ministério Público que, no essencial, promoveu a seguinte vista:
(…) Ora, atento ao acórdão em crise, pode se concluir facilmente que o mesmo cuidou de dar tratamento as questões suscitadas pela Recorrente, partindo da doutrina e da legislação sobre a matéria.
Os elementos probatórios juntos aos autos pela parte e valorados pelo tribunal, seguindo o princípio da livre apreciação da prova, sugerem o caminho incensurável trilhado pelo Acórdão recorrido.
Deste modo, não se vislumbram as alegadas violações de normas consagradas na Constituição da República de Angola (CRA), conforme entende a Recorrente.
Nestes termos, pugnamos pelo não provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais dos Juízes Conselheiros, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos previstos na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola.

Além disso, foi observado o princípio do prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previsto nos tribunais comuns e demais tribunais, conforme o estatuído no parágrafo único do artigo 49.º da LPC, pelo que, conjugado com o artigo 53.º da LPC, tem o Tribunal Constitucional competência para decidir este recurso.

III. LEGITIMIDADE

A Recorrente foi apelante do Processo n.º 2668/19, que correu termos na 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo e não viu o seu pedido atendido. Por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, no caso de sentenças, podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional, o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário.

IV. OBJECTO

O presente recurso tem por objecto verificar se o Acórdão prolactado pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 2668/19, ofendeu princípios, direitos, liberdades e garantias fundamentais previstos na Constituição da República de Angola (CRA).

V. APRECIANDO

A Recorrente interpôs recurso extraordinário de inconstitucionalidade nesta Corte Constitucional, porque entende que o Acórdão recorrido violou os princípios da legalidade, da igualdade e o seu direito de defesa, previstos nos artigos 6.º, 23.º e n.º 1 do 67.º, todos da CRA.

A título prévio, cabe frisar que a Recorrente arrolou nas suas alegações os mesmos fundamentos de facto e de direito (fls. 253 a 258), que apresentou no Tribunal Supremo em sede do recurso ordinário. Ora, não é despiciendo sublinhar que o Tribunal Constitucional não pode constituir-se numa nova instância de recurso da jurisdição comum, isto é, como se de mais uma instância interpretativa e aplicativa do direito infraconstitucional se tratasse. As competências atribuídas a esta magna Corte Constitucional estão consagradas nas disposições conjugadas dos artigos 181.º da CRA e 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), com a redacção dada pela Lei n.º 24/10, de 3 de Dezembro e são, no geral, de administração da justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional. Nesta acepção, o ônus de especificação somente a si é imputável (Recorrente) a quem incumbe o dever de densificar as suas pretensões na perspectiva da justiça constitucional e não da justiça comum.

Com efeito, na sua abundante jurisprudência fixada nos Acórdãos n.ºs 613/2020, 777/2022 e 791/2022, é esclarecedor e bem fundamentado o sentido de que, por não ser mais uma instância de recurso comum, lhe é vedado por lei proceder à reapreciação e julgamento da matéria de facto ou mesmo proceder ao reexame da respectiva prova (www.tribunalconstitucional.ao).

Sobre essa questão, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, firmada no Acórdão n.º 621/2020, de 26 de Maio sedimentou o entendimento de que: (…) não basta, para assegurar um problema de inconstitucionalidade judicial, fazer referência a um ou vários preceitos normativos, e remeter genericamente para uma sua interpretação. Na verdade, há que atender à distinção, formal e funcional, no âmbito do sistema de fiscalização da constitucionalidade, entre a (s) norma (s), princípios ou interpretação normativa que constitui objecto de julgamento cometido ao Tribunal Constitucional, e a fundamentação, de facto ou de direito, onde se aloja o critério ou padrão de decisão efectivamente aplicado como determinante do julgado.

Ora, no caso sub judice, a Recorrente enuncia a violação dos princípios da legalidade, da igualdade e do direito de defesa previstos nos artigos 6.º, 23.º e n.º 1 do 67.º, todos da CRA que, alegadamente, a decisão recorrida ofendeu.

Revelam os autos que o Acórdão recorrido negou provimento ao recurso interposto pela Recorrente e confirmou a decisão do Tribunal de primeira instância. Ou seja, o Tribunal a quo julgou procedente a acção de reivindicação do direito de superfície intentada pela empresa Mpozo Comércio e Indústria, Lda. e, consequentemente, condenou a Ré, agora Recorrente, a reconhecer o direito de superfície da autora sobre o prédio rústico com uma área de três hectares, sito no município do Bom Jesus, km 44, e a pagar uma indemnização no valor de Kz 20 000 000,00 (vinte milhões de Kwanzas).

Inconformada com a decisão do Tribunal ad quem, a Recorrente alega, ainda, que a mesma violou a CRA e diversas normas da legislação ordinária, designadamente os artigos 220.º e 294.º, ambos do CC; alíneas b) e c) do n.º 1 do 474.º, 493.º, alínea a) do n.º 1 do 494.º do CPC; 68.º da Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro – Lei de Terras (LT) e 8.º da Lei n.º 26/15, de 23 de Outubro – Lei do Arrendamento Urbano (LAU).

Veja-se a questão:

1. Sobre a alegada ofensa do Princípio da Legalidade

O princípio da legalidade é um princípio basilar do Estado Democrático de Direito cuja consagração mereceu guarida no n.º 2 do artigo 6.º da CRA, segundo o qual o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis.

A sua essência material determina que o juízo de livre convicção e ponderação do julgador afere-se nos marcos da estrita e imperiosa observância da CRA e da lei. É reconhecida a reputada importância que o mesmo reveste, firmada na pluri-dimensão da sua aplicação e alcance catalogado em todos os actos praticados pelos Tribunais e os órgãos constitucionais. Com efeito, a dialética da vida hodierna impõe cada vez mais a exigência de densificação deste princípio, mormente na vertente da legalidade administrativa, ao determinar a obrigatoriedade dos poderes públicos na sua actuação compatibilizarem o exercício das suas atribuições ao prius da legalidade.

No contexto da aludida norma jusfundamental preceituada no artigo 6.º da Constituição, este princípio cumpre uma dupla função, assente na salvaguarda da prossecução dos princípios do interesse público e da protecção dos direitos e garantias legalmente protegidos dos cidadãos.

A doutrina angolana, postulada por Raul Carlos Vasques Araújo e Elisa Rangel Nunes, proclama que: O Estado de Direito não é apenas um Estado Constitucional. Ele é na sua essência um Estado de direito que se funda no respeito da legalidade pelo que na sua actividade e dos seus órgãos e agentes se deve pautar pelo estrito respeito da lei (Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, Luanda 2014, pp. 200 e 201).

Nos seus arrazoados argumentativos, discorre a Recorrente que o pedido de indemnização se funda num contrato de arrendamento nulo à luz das disposições combinadas dos artigos 220.º e 286.º do CC e 8.º da LAU, por não se ter observado a forma pública do contrato que a lei impõe, referindo que o Tribunal a quo não deveria ter atendido o pedido da Recorrente, nem o Tribunal ad quem deveria ter ignorado este facto em obediência ao princípio da legalidade.

Porém, adentrando no Acórdão sindicado percebe-se que o Tribunal ad quem fez uma análise cuidadosa à volta de duas questões nucleares: sendo a primeira, a de saber se a Decisão recorrida violou as disposições conjugadas dos artigos 220.º, 286.º e 294.º do CC; 493.º, alínea a) do n.º 1 do 494.º e alínea b) do n.º 1 do 474.º, todos do CPC; 43.º e 68.º da Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro (Lei de Terras) e 8.º da Lei n.º 26/15, de 23 de Outubro (LAU). E a segunda, a de saber se o facto de não existir nos autos qualquer certidão que ateste o registo do direito real da Apelada na acção impede a mesma de não proceder contra a apelante pelo facto de ser terceira e, como tal, não lhe ser oponível o direito em causa.

Em virtude disso, o Tribunal ad quem concluiu que não tendo a apelante (Recorrente) qualquer título legítimo que justificasse a ocupação do terreno em causa, a decisão do Tribunal a quo não violou as disposições conjugadas dos artigos 286.º e 294.º do CC, 493.º, alínea a) do n.º 1 do 494.º e alínea b) do n.º 1 do 474.º, todos do CPC, 43.º, 68.º da Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro (Lei de Terras). Acrescenta ainda que, em face do exposto, não havendo alguma ligação entre o que se alega e as provas carreadas para os autos, os argumentos da ora apelante falecem logo à partida.

Refira-se, porque de elementar importância, que o Julgador na actividade judicante assenta o seu juízo valorativo apreciando as provas arroladas ao processo, usando de forma racional as regras da ciência, a experiência comum, em busca de um convencimento lógico, motivado, no alcance da verdade material, na lisura do poder judicial e na realização da justiça republicana, estando-lhe vedado enredar-se em contradições e imprecisões eivadas de subjectivismo ou de um non liquet da prova que incredibilizem à justiça objectiva ou promovam um viés à confiança na justiça.

Assim, quanto a este aspecto, não se descortina nenhum melindre na observância da conformação da legalidade, nem tampouco na legitimação do Julgador no exercício da livre apreciação da prova que, eventualmente, tivesse “contaminado” de vício de inconstitucionalidade à decisão em sindicância.

2. Sobre a Alegada ofensa do Princípio da Igualdade e do Direito de Defesa

A tramitação do processo judicial decorre de cânones constitucionais e legais que embasam o Estado Democrático de Direito e a salvaguarda da edificação da dignidade da pessoa humana, afirmando a abordagem de valores sacrossantos de cariz constitucional. No ordenamento jurídico angolano, a dignidade da pessoa humana exerce uma função normogenética que se consubstancia na possibilidade de, a partir da dignidade da pessoa humana, se deduzir um conjunto de princípios jurídicos estruturantes do estado de direito cuja aplicação será decisiva para permitir a um poder judicial independente consoante a verificação da observância desses princípios distinguir entre restrições admissíveis e restrições inadmissíveis. É esse o caso dos princípios da igualdade, da proibição de excesso, da segurança jurídica e protecção da confiança (...) (Jorge Reis Novais, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional, AAFDL EDITORA, 2017, p. 53).

Nesta seara, a dignidade é o cerne valorativo do ordenamento jurídico angolano que coloca o indivíduo, enquanto pessoa humana, no núcleo dos direitos e garantias fundamentais proclamadas na Constituição que buscam o respeito e o desenvolvimento integral do ser humano em posição equânime.

Ora, o titulado princípio da igualdade de armas ou da igualdade das partes, de concretização constitucional, é um princípio geral dos direitos fundamentais previsto no artigo 23.º da CRA, corolário da dignidade da pessoa humana. Este normativo simboliza o positivismo jurídico, a justeza e a equidade do processo permitindo às partes litigantes pleitearem em condições isonómicas, ou seja, radica no primado de que se deve tratar de forma igual o que é igual, e de forma diferente o que é diferente, na medida da própria diferença. Neste âmbito, a sua potencialidade jurídica impõe ao Julgador o respeito de um prius fundado numa tradição jurídica ancorada no equilíbrio, na paridade e na não discriminação, em que os direitos e as garantias processuais reconhecidas pela CRA e a Lei aos sujeitos processuais se desenvolvam num parâmetro balizado pela ética-jurídica e uma participação igualitária que inspire confiança. Com efeito, a essentialia legis do princípio em pauta é dominado pelos princípios da universalidade e da conformação constitucional e legislativa das distintas fases processuais, de modo a evitar decisões injustas, discriminatórias, parciais e arbitrárias, adversas ao Estado de Direito.

A esta luz, J.J. Gomes Canotilho comunga que: todos os cidadãos são iguais perante a lei – significava, tradicionalmente, a exigência de igualdade na aplicação do direito. Numa fórmula sintética, sistematicamente repetida, escrevia Anschutz: as leis devem ser executadas sem olhar às pessoas. A igualdade na aplicação do direito continua a ser uma das dimensões básicas do princípio da igualdade constitucionalmente garantido e, como se irá verificar, ela assume particular relevância no âmbito da aplicação igual da lei (do direito) pelos órgãos da administração e pelos tribunais (…) (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, p. 426).

De igual modo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece no seu artigo 1.º que: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Esta ideia de igualdade está directamente ligada ao sentimento de justiça e deve ser analisado do ponto de vista da igualdade material e formal.

A dimensão formal, refere-se à expressão de que todos são iguais perante a lei. É a igualdade diante da lei vigente e da lei a ser elaborada, impedindo privilégios a qualquer grupo e proibindo tratamento diferenciado aos indivíduos, com base em critérios como: raça, sexo, classe social, religião e convicções filosóficas e políticas.

Ao passo que a material, pressupõe que as pessoas inseridas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual, tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades.

No caso sub judice, invoca a Recorrente nas suas clamorosas alegações a violação deste princípio sem concretizar em que circunstâncias palpáveis e concretas terá ocorrido, porquanto, revelam os autos, inconteste, que a Recorrente constituiu mandatário legal, praticou todos os actos processuais que visaram a sua melhor defesa e contradita, com oportunidades de pleitear em igualdade de circunstância à posição da contraparte, bem como de carrear todas as provas que julgou necessárias para efectivar a sua contradita e a ampla defesa na lide.

Neste contexto, as garantias de defesa da ora Recorrente em momento algum foram restringidas ou mitigadas, pelo contrário, os meios de prova carreados por si foram devidamente valorados pelo Tribunal ad quem, isto é, foi no plano do princípio da livre convicção do Julgador previsto no artigo 655.º do CPC que actuou o Juiz ad quem ao prolactar o Acórdão recorrido. Perante este quadro, acresce-se que não pode o Julgador afastar-se da ordem jurídico-constitucional fundamental, pois os deveres de construção da justiça e do direito harmonizam-se com o primado da CRA e da Lei.

Destarte, parece correcto frisar que a convicção inferida pelo Julgador na apreciação da causa judicanda, não deve ser entendida de forma subjectiva, aleatória ou despropositada. A contrario sensu, explica-se pela irradiação da recolha da prova, da oralidade, do contraditório, da experiência comum e demais critérios e elementos processuais que lhe permitam obter a verdade material e decidir com base na valoração das provas materiais arroladas nos autos, como de resto ocorreu desde os primórdios da antiguidade clássica grega em que a cultura da “paideia” já instituía a lisura e o decoro profissional na conceituação de valores éticos, morais e espirituais na formação e educação humana.

Outrossim, no que respeita à invocada violação do direito de defesa previsto no n.º 1 do artigo 67.º da CRA, a actuação dos Julgadores a quo e ad quem proporcionaram à Recorrente a sua efectiva concretização, abrangente ao princípio do contraditório, por se constatar dos autos que o mesmo teve oportunidade de intervir na causa e participar de modo activo, procurando influenciar a decisão e convencer o Julgador, em cada momento e ao longo de todo o processo da bondade da sua posição quer a nível dos factos e das provas, quer a nível do exercício de ampla defesa, em igualdade de circunstâncias e de justas oportunidades.

Aqui chegados, o Tribunal Constitucional entende que, assertivamente, no caso em apreço, foram observados os princípios fundamentais previstos na CRA. Nesta vertente, não se vislumbram no Acórdão censurado os vícios de inconstitucionalidade arrazoados pela Recorrente.

Pelos motivos expendidos, o Tribunal Constitucional conclui que o Acórdão recorrido não ofendeu os princípios da legalidade, da igualdade e o direito a ampla defesa previstos na Constituição da República de Angola.

Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO.

Custas pela Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 14 de Maio de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva
Dr. Gilberto de Faria Magalhães
Dr. João Carlos António Paulino
Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto
Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Relatora)
Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Dr. Vitorino Domingos Hossi