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Jurisprudência

 

ACÓRDÃO N.º 893/2024

 

PROCESSO N.º 1097-A/2023

Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Rodrigo Augusto Correia da Silva, melhor identificado nos presentes autos, veio interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade do Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que negou provimento ao recurso por si interposto e, em consequência, confirmou a decisão recorrida, no âmbito do Processo n.º 2647/2019.

O Recorrente apresenta, em síntese, as seguintes alegações:

1. O Apelante [Recorrente] é dono e legítimo possuidor do talhão n.º 55, da zona do Centro Ortopédico em Viana, com a área total de 500 m2, que é reclamado pela Apelada, dele tem posse titulada, de boa fé, pacífica e pública, desde o dia 21-01-04, data a partir da qual recebeu o ofício n.º 231/01.08.18.07.01/2003, subscrito pelo então Administrador Municipal de Viana, o Sr. Júlio Sebastião Fernandes de Carvalho, que distribuiu ao aqui Apelante o referido talhão.

2. Na data atrás mencionada foi, igualmente, o Apelante autorizado a efectuar a vedação do referido talhão, através da Licença de Vedação n.º 503/04, bem como autorizado a construir e em consequência pagou a renda anual que lhe foi estabelecido, conforme o n.º 4, do artigo 5.º, da Lei n.º 21-C/92, de 28 de Agosto.

3. Com as autorizações atrás mencionadas, o aqui Apelante, como era sua obrigação, vedou completamente o referido talhão e construiu um tanque de água com a capacidade de trinta mil litros, tal como demonstram claramente as fotografias que juntou aos autos.
4. Importa referir que o Apelante ocupou uma parcela de terreno que o próprio Estado - Administração Municipal distribuiu, daí que é suposto que antes da distribuição a Administração Municipal de Viana tivesse cuidado de verificar a situação jurídica da referida parcela de terreno, ou seja, só distribuiu porque não tinha nenhum ocupante.

5. Contra todo o inesperado, a 13 de Julho de 2009, o Apelante foi notificado pela Repartição Jurídica e Contencioso da Administração Municipal de Viana para lhe informar que devia entregar o referido talhão a Apelada, a Senhora Catarina Afonso Santiago por ser a legítima possuidora.

6. Inesperado, porque o Apelante em 13-07-09 já tinha a posse titulada, pacífica, de boa fé e pública da parcela de terreno atrás identificada há cerca de cinco anos, artigos 1258.º a 1262.º do Código Civil.

7. Acresce o facto de que o Apelante durante os cinco anos em que esteve na posse do terreno nunca foi interpelado por quem quer que fosse, a reclamar a posse da referida parcela de terreno, para além de que durante a construção das referidas obras a Apelada, em momento nenhum, foi a Juízo, como era seu dever, para intentar o procedimento cautelar de embargos de obra nova, tal como determina o artigo 412.º do Código de Processo Civil.

8. Por isso, foi com bastante surpresa que o Apelante se viu confrontado na Repartição Jurídica e Contencioso da Administração Municipal de Viana, com a informação segundo a qual a parcela de terreno que o Apelante possui, pertence a Apelada – Catarina Afonso Santiago, desde 1994 e já detentora do direito de superfície e por esse facto, a Apelada deverá retomar a posse do referido terreno e em consequência o Apelante contactar a ROTUA onde deverá solicitar outro terreno.

9. O documento acima indicado e que serviu de base ao Despacho do Sr. Administrador Municipal de Viana, de 17-7-09, com o seguinte teor: “Encerrar o processo a favor da Senhora Catarina Afonso Santiago, que me parece de mais evidente ser a legítima proprietária do terreno até porque já possui direito de superfície autenticado pela Sra. Governadora da Província de Luanda”.

10. Na verdade, de acordo com a documentação junta aos autos, resulta claro que o Apelante não esbulhou a posse da parcela de terreno à Apelada Catarina Afonso Santiago nem entrou na posse do terreno à margem das directivas e regulamentos da Administração Municipal de Viana e muito menos fez as obras a noite ou as escondidas de quem quer que fosse. Pois, a posse do Apelante relativamente a parcela de terreno em causa, dura, desde 21-1-04, ininterruptamente, portanto, é actual, efectiva e titulada. Portanto, o Apelante tem, sim, a posse do talhão em litígio.

11. Na verdade, a Meritíssima Juíza a quo só decidiu a favor da Apelada porque interpretou e aplicou de forma errada o n.º 2 do artigo 1278.º do Código Civil, que diz o seguinte, “Se a posse não tiver mais de um ano, o possuidor só pode ser mantido ou restituído contra quem não tiver melhor posse”.

12. O Apelante, em momento nenhum foi informado da existência e do paradeiro da Apelada – Catarina Afonso Santiago, de 1994 a 2004, (dez anos passados) e de 2004 a 2009, (cinco anos passados), perfazendo 15 anos de ausência e nem a razão por que não fez o aproveitamento útil e efectivo da parcela do terreno e principalmente porque não interpelou o Apelante.

13. A posse do Apelante durou cinco anos, ininterruptos, daí que, obviamente, a Apelada, juridicamente, em 2009 já não tinha a posse sobre o terreno em causa.

14. Sucede que a Apelada – Catarina Afonso Santiago desde 1994 a 2004 (10 anos), data da atribuição do terreno ao Apelante não fez nenhum aproveitamento do terreno e de 2004 a 2009 nunca interpelou o Apelante.

15. Ora, “a falta de uso e aproveitamento ou interrupção culposa do uso e aproveitamento durante mais de 2 anos é causa de Revogação do direito de concessão de terreno”, artigo 22.º al. a), da Lei n.º 21-C/92, de 28 de Agosto. Daqui resulta claro de que em 1996, a Apelada – Catarina Afonso Santiago, legalmente, já havia perdido o terreno por revogação do direito de concessão.

16. Também, “é causa de extinção dos direitos fundiários o seu não exercício ou pela inobservância dos índices de aproveitamento útil e efectivo durante três anos consecutivos ou seis interpolados, qualquer que seja o motivo” artigos 7.º, n.º 4, 18.º e 64.º, al. b), ambos da Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro.

17. Na verdade, o Apelante fundamentou também, para a manutenção da parcela de terreno na sua esfera jurídica com a figura do direito de superfície, mas que, incompreensivelmente, quer o Tribunal a quo, quer o Tribunal Supremo não fizeram considerações sobre as referidas figuras jurídicas.

18. O Tribunal ad quem, de igual modo, analisou e aplicou de forma superficial e errada o regime do direito de superfície ao decidir como o fez, confirmando a decisão do Tribunal a quo.

19. Com efeito, e de acordo com a alínea d) do n.º 1 do artigo 34.º da Lei de Terras, o direito de superfície é um dos direitos que pode ser constituído sobre a terra, no domínio privado do Estado.

20. Na verdade, a natureza do direito de superfície é das duas propriedades paralelas, a saber:
a) Primeira propriedade – é a do solo que é do dono do solo,
b) Segunda propriedade – é a das obras que é do superficiário.

21. Com a construção do muro de vedação com o respectivo portão e fechadura e do tanque de trinta mil litros, o Apelante cumpriu (1.º momento) o conteúdo das autorizações recebidas (Contrato promessa) e por este facto ganhou o direito ao contrato prometido (2.º momento – direito de superfície), artigo 410.º do Código Civil.
22. E também, constituiu-se proprietário superficiário das referidas obras construídas em solo alheio e em consequência, surgiu uma propriedade paralela à propriedade do dono do solo, artigo 1525.º do Código Civil.

23. Assim, o Estado-Administração Municipal de Viana, ficou sendo o proprietário do solo e o Apelante ficou sendo proprietário das obras.

24. Como dispõe o artigo 1525.º do Código Civil, o direito de promessa de superfície (1.º momento), foi constituído a favor do Apelante.

25. Portanto, é fácil concluir que o Apelante é proprietário das obras implantadas no talhão em litígio, daí que não é um possuidor precário tal como a Meritíssima Juíza a quo, afirmou na fundamentação do douto Despacho Saneador Sentença, ora recorrido.

26. O Apelante, quer no douto Despacho Saneador Sentença do Tribunal a quo quer no douto Acórdão do Tribunal ad quem, ora recorridos, tal como se retira de tudo quanto atrás ficou exposto, não foi julgado de forma justa e de acordo com a lei, violando assim o artigo 72.º da Constituição. Daí que a decisão proferida pelo Tribunal ad quem, confirmando a decisão do Tribunal a quo é inconstitucional;

27. Outrossim, sendo a propriedade um bem protegido constitucionalmente, (artigo 89.º, n.º 1, alíneas d) e e) da Constituição) não há dúvidas de que a decisão ora recorrida ofende frontalmente o direito de propriedade do Apelante e por este facto é inconstitucional.

O Recorrente termina pedindo a esta Corte Constitucional a revogação dos doutos Acórdãos ora recorridos e que, em consequência, declare nula a Escritura de direito de superfície celebrada pela Apelada, de forma fraudulenta, ao arrepio da lei e com todas as consequências legais.

O processo foi à vista do Ministério Público, que, promoveu, em síntese, o seguinte:
“(...) constata-se que o Recorrente apesar de lhe ter sido atribuído um terreno localizado no Bairro do Centro Ortopédico em Janeiro de 2004 pela Administração Municipal de Viana, não registou o respectivo direito de superfície, ao contrário da Catarina Afonso Santiago Bartolomeu que sendo-lhe atribuído o mesmo terreno pela referida Administração, procedeu o registo do direito de superfície na Conservatória do Registo Predial.

Desta constatação resulta que, a solução do conflito dos dois direitos sobre a posse do terreno, passa por determinar a melhor posse e, no caso subjudice, a melhor posse é da Catarina Afonso Santiago Bartolomeu que é a mais antiga e titulada nos termos do artigo 1278.º do CC.
Portanto, sobre esta questão, o acórdão em análise clarificou de forma suficientemente sustentada a matéria de facto e procedeu correctamente o seu enquadramento na doutrina e ao direito aplicável, não deixando dúvidas quanto a sua compreensão e convencimento.

Conclui-se, deste modo que, o aresto em crise não violou os princípios e o direito evocados pelo Recorrente”.
Nestes termos, o Ministério Público inclina-se pelo não provimento do recurso”.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea a) e do artigo 49.º e do 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como da alínea m) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho – Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC).

Além disso, foi observado o prévio esgotamento dos recursos ordinários legalmente previstos nos tribunais comuns, conforme estatuído no § único do artigo 49. º da LPC, pelo que tem o Tribunal Constitucional competência para apreciar o presente recurso.

III. LEGITIMIDADE
O Recorrente é parte no Processo n.º 2647/2019, que correu os seus termos na 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, pelo que, tem legitimidade para recorrer, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual, “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional (…) as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.

IV. OBJECTO
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade tem como objecto apreciar e decidir se o Acórdão proferido pela 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, Processo n.º 2647/2019, que negou provimento ao recurso interposto sobre o Despacho Saneador-Sentença, proferido pela 1.ª Secção da Sala do Cível e Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, ofendeu, ou não, os princípios do julgamento justo e conforme, do respeito e protecção à propriedade e iniciativa privadas e da função social da propriedade.

V. APRECIANDO
Em face da decisão da 1.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro do Tribunal Supremo, que negou provimento ao recurso interposto pelo Recorrente e, em consequência, confirmou a decisão recorrida, este interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, invocando, nas suas alegações, a convicção de terem sido violadas disposições constitucionalmente consagradas nos artigos 72.º e 89.º da CRA.

Preliminarmente, urge referir que o Recorrente invoca, em linhas gerais, nas suas alegações (fls. 294 a 309), os mesmos fundamentos de facto e de direito, que apresentou no Tribunal Supremo em sede do recurso ordinário e, até mesmo, no Tribunal a quo. Ora, não é despiciendo sublinhar que o Tribunal Constitucional não pode constituir-se numa nova instância de recurso da jurisdição comum, como se se tratasse de mais uma instância interpretativa e aplicativa do direito infraconstitucional, conforme se depreende de abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que se destaca a fixada nos Acórdãos n.ºs 613/2020, 777/2022 e 791/2022 (ver www.tribunal constitucional.ao).

As competências atribuídas a esta magna Corte Constitucional estão consagradas nas disposições dos artigos 181.º da CRA e 16.º da LOTC, e consistem, no geral, na administração da justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional.

No caso sub judice, o Recorrente enuncia a violação dos princípios do direito a Julgamento Justo e Conforme, do respeito e protecção à propriedade e iniciativa privadas e da função social da propriedade, consagrados, respectivamente, no artigo 72.º e nas alíneas d) e e) do artigo 89.º, ambos da CRA.

Veja-se então.

a) Sobre a violação do direito a Julgamento Justo e Conforme

O Recorrente alega que o Acórdão ora recorrido, ao decidir nos mesmos termos que o douto Despacho Saneador-Sentença, torna-se inconstitucional porque não respeitou o princípio do direito a julgamento justo e conforme prescrito no artigo 72.º da CRA.

Alega ainda o Recorrente que o Tribunal Supremo decidiu contra lei expressa, permitindo a interpretação e aplicação errónea do n.º 2 do artigo 1278.º do Código Civil, decidindo, assim, a favor da então Apelada, quando a melhor posse só prevalece contra o possuidor que não tiver a posse por mais de um ano.

Outrossim, diz, ainda, que o Acórdão em crise não fez as devidas considerações sobre as figuras jurídicas do direito de superfície, em que o aqui Recorrente alegou em sede daquela instância, pois, analisou e aplicou de forma superficial e errada o regime do direito de superfície, ao decidir como o fez, confirmando a decisão do Tribunal a quo, de acordo com a alínea d) do n.º 1 do artigo 34.º da Lei de Terras (Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro).

O princípio do julgamento justo e conforme está relacionado com a protecção jurídica e as garantias processuais. A este respeito aflora J.J. Gomes Canotilho que “Do princípio do Estado de direito deduz-se, sem dúvida, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a Constituição contém alguns princípios e normas designados por garantias gerais de procedimento e de processo” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, 17.ª Reimpressão, Almedina, 2003, p. 274).

Segundo Raul Araújo e Elisa Nunes, o direito a um julgamento justo e conforme (…) “é um pressuposto do Estado Democrático de Direito e uma garantia que supõe a existência de uma administração da justiça funcional, imparcial e independente. Ela tem de assegurar um julgamento público e num prazo razoável e garantias de defesa material” (Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, 2014, p. 398).

O direito a julgamento justo e conforme está amplamente consagrado em inúmeros instrumentos jurídicos do direito internacional e também incorporado no ordenamento constitucional e infraconstitucional da maioria dos países contemporâneos.

O julgamento justo inclui, essencialmente, o direito de estar presente em tribunal; de ter um julgamento público, célere, perante um tribunal independente e imparcial e de ter um advogado de escolha. Este direito é amplamente garantido pelos artigos 72.º e 174.º, n.º 2, ambos da CRA.

Estas características estão implícitas também no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (artigo 8.º), aplicadas na República de Angola por força dos artigos 13.º e 29.º da CRA.

Neste sentido podemos eleger o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) que estabelece que “Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

O artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981) dispõe que, “1. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja apreciada. Esse direito compreende: a) O direito de recorrer aos tribunais nacionais competentes de qualquer acto que viole os direitos fundamentais que lhe são reconhecidos e garantidos pelas convenções, as leis, os regulamentos e os costumes em vigor; b) O direito de presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja estabelecida por um tribunal competente; c) O direito de defesa, incluindo o de ser assistido por um defensor de sua escolha; d) O direito de ser julgado num prazo razoável por um tribunal imparcial. 2. Ninguém pode ser condenado por uma acção ou omissão que não constituía, no momento em que foi cometida, uma infracção legalmente punível. Nenhuma pena pode ser prescrita se não estiver prevista no momento em que a infracção foi cometida. A pena é pessoal e apenas pode atingir o delinquente”.

O direito a um julgamento justo e conforme é um direito fundamental, que visa, essencialmente, concretizar o afastamento dos casos de injustiça e amparar os cidadãos contra intervenções estatais arbitrárias, dando-lhes segurança, para que não sejam privados dos seus direitos e interesses legalmente previstos e protegidos, sem antes enfrentarem um julgamento nos termos da lei vigente.

Um julgamento é considerado justo quando são acautelados e respeitados, pelos tribunais, os princípios da imparcialidade, independência e de equidade no tratamento das partes e seus representantes.

O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 738/2022, p. 10, entende que “(...) o direito a julgamento justo e conforme assenta os seus pressupostos na prerrogativa que é conferida às partes de pleitearem, contradizerem, oferecerem e carrearem para o processo, todos os elementos de prova conducentes à aferição da verdade material”.

Outrossim, o Acórdão n.º 741/2022, p. 5, ressalta que, “... para que o julgamento seja justo e conforme, é essencial que se verifique o pressuposto da imparcialidade e independência dos juízes, que o julgamento seja baseado na equidade e igualdade de armas, que as garantias processuais das partes sejam asseguradas durante todo o processo, que seja dado direito a assistência e patrocínio judiciário das partes, para que estas possam exercer na plenitude o direito a ampla defesa, o direito a recurso e que a demanda tramita e seja decidida dentro dos parâmetros constitucionais e legais”(disponível em www.tribunalconstitucional.ao).

A qualificação de um processo como justo, legal e adequado, diz JJ Gomes Canotilho, “deve pender para a realização da justiça. O julgamento justo e conforme tem de obedecer à lei, e esta compreensão resulta do princípio da legalidade, sem olvidar a devida adequação com o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 2003, p. 494).

Ora, na judicação do presente litígio, ao Recorrente foram dadas todas as possibilidades para pleitear e, através dos seus mandatários legais, praticou todos os actos processuais, tendo-lhe, assim, sido proporcionado o exercício de direitos, liberdades e garantias. Daí que da decisão do Tribunal de primeira instância interpôs recurso para o Tribunal Supremo e, inconformado com o Acórdão desta última instância da jurisdição comum, interpôs o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade, nos termos da CRA e da lei.

Por outro lado, na fundamentação do Acórdão recorrido (fls. 241-242), está evidente que: “1. A Co-Ré detém o direito de superfície sobre a parcela de terreno, situada no Município de Viana, Bairro do Centro Ortopédico (doc. de fls. 71 e 72 dos autos); 2. A Co-Ré registou o documento que lhe confere o direito de superfície sobre o terreno objecto da presente lide, em 2009 (doc. de fls. 71 e 72 dos autos); 3. O terreno objecto da presente lide foi atribuído à Co-Ré aos 11 de Agosto de 1994 (doc. de fls. 73 dos autos); (...) 6. O Autor efectuou um pedido de concessão de um terreno ao Administrador Municipal de Viana, em Maio de 1992 (doc. de fls. 10 dos autos); 7. A Administração Municipal de Viana atribuiu o terreno em litígio ao Autor em Janeiro de 2004 (doc. de fls. 11 dos autos); (...) 13. No dia 20 de Julho de 2009, o Autor foi informado pela Administração Municipal de Viana que o processo relativo ao litígio que tem com a Co-Ré foi encerrado favoravelmente para esta (doc. de fls. 20 dos autos).”

Fica provado, desde logo, que o terreno em litígio foi atribuído à Requerida cerca de dez anos antes de ser, também, atribuído ao Recorrente e que, não obstante, a Requerida é a única que registou a sua aquisição, ou seja, adquiriu um direito real (fundiário) sobre o terreno, mormente o direito de superfície.

Ademais, como bem expressa o Acórdão recorrido, (…) “a Administração de Viana reconheceu o erro que esta cometeu aquando da atribuição do terreno em causa a favor do Autor/Apelante e reconhece a titularidade do direito de superfície autenticado pela Governadora Provincial de Luanda a favor da Co-Ré/Apelada (doc. de fls. 21 dos autos). Ademais, ficou justificada a ausência da Co-Ré no País, por ter beneficiado, através da Junta Nacional de Saúde, de tratamentos médicos (docs. de fls. 78 e 79 dos autos), facto que terá, por um lado, sustentado o despacho da Administração Municipal de Viana, que vai no sentido de manter o direito de superfície sobre a parcela de terreno em causa a favor da Co-Ré/Apelada.”

Assim, o Tribunal Constitucional considera que não foi violado o direito a julgamento justo e conforme.

b) Sobre os princípios do respeito e protecção à propriedade e iniciativa privadas e da função social da propriedade

O Recorrente alega que ao proceder à construção do muro de vedação e do tanque de água de trinta mil litros constituiu-se proprietário das referidas obras em terreno alheio e, em consequência, surgiu uma propriedade paralela à propriedade do dono do solo, ex vi dos artigos 1524.º e 1525.º do Código Civil, sendo que, assim, carece de protecção constitucional.

Acentua, pois, que a decisão ora recorrida ofendeu os princípios do respeito e protecção à propriedade e iniciativa privadas e da função social da propriedade, estabelecidos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 89.º da CRA, uma vez que se procedeu a uma interpretação e aplicação errónea do n.º 2 do artigo 1278.º e dos artigos 1524.º e 1525.º, todos do CC.

Com a consagração do princípio do respeito e protecção à propriedade e iniciativa privadas na alínea d) do n.º 1 do artigo 89.º (…) “a Constituição demonstra a importância que o direito de propriedade privada (artigos 14.º e 37.º) e o direito à iniciativa privada (artigos 14.º e 38.º) assumem no contexto da opção pelo sistema de economia de mercado, reafirmando a necessidade de lhes ser conferida a máxima garantia, de modo a que não seja, em caso algum, colocado em causa o seu exercício, sob pena de desvirtuamento de dois direitos que constituem os alicerces do sistema económico e deste em si mesmo considerado” (Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, Constituição da República de Angola, Anotada, Tomo I, 2014, pp. 454-455).

No caso vertente, o Recorrente obteve da Administração Municipal de Viana, em Janeiro de 2004 (fls. 12), o mesmo terreno que já havia sido atribuído à Apelada, em Agosto de 1994 (fls. 74). Porém, contrariamente ao que fez a Apelada (fls. 72), o Recorrente não logrou proceder ao registo do direito de superfície sobre o terreno em disputa.

Tão logo tomou conhecimento do litígio, a Administração do Município de Viana, em actos de reconhecimento do erro, legitimou o direito de superfície efectuado pela Apelada Catarina Afonso Santiago junto da 2.ª Secção da Conservatória do Registo Predial de Luanda, através de parecer emitido pela Repartição Jurídica e Contencioso da Administração do Município de Viana (fls. 82) e de Despacho do Administrador do Município de Viana (fls. 21).

Verifica-se, assim, que o Recorrente nunca possuiu direito de propriedade, nem qualquer outro direito fundiário que o Estado pode transmitir ou constituir sobre os terrenos concedíveis integrados no seu domínio privado em benefício de pessoas singulares ou colectivas, previstos nos termos do artigo 34.º da Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro, Lei de Terras, que pudesse confrontar com o direito de superfície sustentado pela Apelada, no âmbito do princípio da compatibilidade ou da exclusão dos direitos reais.

Tal como afirma Orlando de Carvalho “o princípio da compatibilidade ou da exclusão, princípio que quer dizer simplesmente que só pode existir um jus in re sobre determinada coisa na medida em que ele seja compatível com outro jus in re que recaia sobre ela: ou — o que é o mesmo — na medida em que ele não seja excluído por força de um prevalente ou pré-existente jus in re” (Direito das Coisas, 1.ª Ed., Coimbra Editora, 2012, p. 170).

A decisão ora recorrida não ofendeu o princípio do respeito e protecção à propriedade e iniciativa privadas estabelecido na alínea d) do n.º 1 do artigo 89.º da CRA, pois, aliás, o Acórdão do Tribunal ad quem prediz que o Recorrente “(..) não detém o imóvel em causa como proprietário ou em exercício de um outro direito real. Com efeito, resulta dos autos que o Autor/Apelante adquiriu o referido imóvel da Administração Municipal de Viana, aquisição que se enquadra no regime de Concessão de terrenos do Estado, nos termos da Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro. Portanto os artigos acima citados não se aplicam ao caso sub judice, já que se referem à posse enquanto direito real, o que não é o caso.”

Por outro lado, ofendeu a decisão recorrida o princípio da função social da propriedade?

De acordo com Raul Araújo e Elisa Rangel Nunes, “A propriedade privada surge, na Constituição, como um princípio fundamental e como um direito subjectivo fundamental, mas também como um princípio de organização económica, o que vai determinar que apareça como inerente ao seu conteúdo uma vocação virada para interesses sociais, uma função social, o que permite que lhe seja assacado um carácter dualista, pois se por um lado a sua constitucionalidade lhe confere o estatuto de direito subjectivo, por outro essa constitucionalidade atribui-lhe a natureza de princípio de organização económica, determinando que ela se coloque ao serviço de interesses sociais e económicos direccionados para os fins do Estado social.

Assim, a propriedade consagrada constitucionalmente encerra em si dois vectores que a caracterizam: o fim individual do proprietário e o fim social da coletividade, cabendo ao legislador proteger os interesses individuais, mas ao mesmo tempo prosseguir interesses gerais.

O carácter ou função social da propriedade reflecte o interesse geral ou colectivo subjacente ao direito de propriedade, conforme ele é concebido, actualmente, (ficaram arredadas as concepções antropomórficas do direito de propriedade do liberalismo) e aparece vertido na Constituição.

Esse interesse geral coexiste a par do interesse individual, não constituindo um seu mero limite externo, sendo inerente ao direito de propriedade.” Ibidem, pp. 455-456.

O princípio da função social da propriedade, que encontra acolhimento expresso na alínea e) do artigo 89.º da CRA, positiva o interesse supra individual na propriedade privada, sem que esta perca o seu carácter individual de liberdade, mas relativizando-a em busca da igualdade social, como princípio estruturante da ordem jurídica vigente.

Entre os princípios fundamentais que norteiam a transmissão, constituição e exercício de direitos fundiários sobre os terrenos concedíveis do Estado, Lei de Terras (Lei n.º 9/04, de 9 de Novembro), estabelece na alínea c) do artigo 4.º e no artigo 7.º, o princípio do aproveitamento útil e efectivo da terra.

Porém, as consequências do não cumprimento do aproveitamento útil e efectivo do terreno em causa pela Apelada, e solicitadas pelo Recorrente, não foram levadas em conta pelo Tribunal ad quem pois, a declaração de extinção em função do não aproveitamento das concessões de terrenos carece sempre de despacho da autoridade administrativa concedente, o que não ocorreu no caso em apreço, tendo a Apelada apresentado a justificação da sua ausência do País, por motivos de tratamento médico que beneficiou, através da Junta Nacional de Saúde (fls. 77 a 79).

Não se verifica, in casu, qualquer dissídio entre o interesse social e o interesse privado das partes, pois está em causa a litigância de interesses meramente particulares sobre um mesmo prédio rústico (terreno) que ambos adquiriram do mesmo transmitente (Administração Municipal de Viana), que foi judicialmente resolvido a favor da Apelada por esta ter sido a primeira concessionária do terreno e, além disso, ter efectuado o registo do direito de superfície sobre o mesmo, o que não foi feito pelo ora Recorrente.

Destarte, a decisão ora recorrida não ofendeu o princípio da função social da propriedade, estabelecido na alínea e) do n.º 1 do artigo 89.º da CRA, cujo corolário consiste em evitar as desigualdades sociais provocadas pela distribuição de terras rurais ou urbanas, o que não é o caso.

Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, POIS O ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO VIOLA PRINCÍPIOS, DIREITOS OU GARANTIAS, CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA.
Custas pelo Recorrente, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 04 de Junho de 2024.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Dra. Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)

Dra. Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)

Dr. Carlos Alberto B. Burity da Silva (Relator)

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dr. João Carlos António Paulino

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira

Dra. Maria da Conceição de Almeida Sango

Dra. Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva

Dr. Vitorino Domingos Hossi